A JANGADA DO MEDUSA: epopéias, viajantes e o confronto dos tempos
A JANGADA DO MEDUSA: EPOPÉIAS, VIAJANTES E O CONFRONTO DOS TEMPOS
“Escuto um exército em carga pela terra,
E estrondo de cavalos se arrojando, a espuma nos joelhos:
Arrogantes, com armadura negra, atrás deles se erguem,
Desdenhando as rédeas, com chicotes flutuantes, os cocheiros.
Eles bradam para a noite os seus nomes de guerra:
Choro dormindo ouvindo ao longe o vórtice da gargalhada.
Eles cindem o escuro onírico, fulgor que cega,
E martelam, martelam meu peito como a uma bigorna.
Eles vêm sacudindo em triunfo a verde e longa cabeleira:
Eles surgem do mar e aos berros correm pela praia.
Coração, não tens prudência nenhuma, com tal desespero?
Amor, amor, amor, por que me deixaste só ?”
(James Joyce. Música de Câmara, XXXVI)
(“ I hear an army charging upon the land
And the thunder of horses plunging, foam about thei knees.
Arrogant, in black armour, behind them stand,
Disdaining the reins, with fluttering whips, the charioteers.
They cry unto the night their battle-name:
I moan in sleep when I hear afar their whirling laughter.
They cleave the gloom of dreams, a blinding flame,
Clanging, clanging upon the heart as upon an anvil.
They come shaking in triumph their long green hair:
They come out of the sea and run shouting by shore.
My heart, have you no wisdom thus to despair?
My love, my love, my love, why have you left me alone?”)
VIAGENS EM TEMPOS PASSADOS E NA MODERNIDADE
O canto épico narra a precária relação entre os homens e a natureza confundida com os próprios deuses. Surpreendido com a estranheza do mundo que se abre em abismos, o herói aproxima-se dele, narrando-o. Em águas desconhecidas navega a jangada de Odisseu:
“ _ Ai de mim, desventurado! Que me acontece agora por último? A deusa, receio, em tudo me disse a verdade , quando me declarou que teria no mar a conta inteira de sofrimentos, antes de chegar à terra pátria. Eis que a predição se cumpre inteira, de tais nuvens cobre Zeus a imensidão do céu e conturba o mar, enquanto me assaltam os ímpetos dos ventos de todos os rumos. Agora é certo o meu fim abismal. Três, quatro vezes ditosos os dânaos que sucumbiram lá na Tróade vasta, pra bem merecerem os filhos de Atreu! Morresse eu também assim, deparando a minha sina, no dia em que hordas de troianos dispararam sobre mim seus dardos, disputando o corpo do filho de Peleu! Eu teria então exéquias e os aqueus espalhariam a minha fama; o destino decretou, ao invés, que eu pereça de morte mesquinha.
Enquanto assim falava , um grande vagalhão desabou do alto sobre ele, com tremenda violência, fazendo girar a jangada ...” (Od. , pp.66-67)
Entretanto, a deusa marinha Leucotéia (guia dos marinheiros nas tempestades) tomou conhecimento da viagem mal sucedida do herói grego Odisseu, vindo rápido em seu auxílio. Ofereceu-lhe, então, um véu, pedindo que o estendesse sobre o peito. Dessa forma, o herói estaria a salvo da morte iminente. Odisseu, em meio ao tormento dos mares, a princípio duvidou das palavras da deusa. Por fim, atendeu-a quanto ao pedido. Abandonou a jangada, despiu-se e colocou o véu contra o peito. Durante dias o herói permaneceu subjugado aos desejos perversos dos deuses marítimos, que tentavam retirar-lhe a vida. Após muitos sofrimentos, e acreditando que a morte estivesse próxima, Odisseu avistou terras ao longe. Era a paradisíaca ilha dos feácios.
Do seio da epopéia homérica o jogo intertextual aponta para o insondável desconhecido, encontrando acolhimento renovado na epopéia virgiliana. O poeta latino narra as desventuras da viagem do herói Enéias, de Tróia ao Lácio; elas consistem em provas iniciáticas para a ascensão dos homens mortais à condição de heróis.
“Negra a noite o mar todo recobre. Troam os pólos; aos raios freqüentes o mar se ilumina. Tudo à visão dos troianos são formas variadas da Morte. Súbito, o frio percorre de Enéias os membros, deixando-os paralisados; aos astros as mãos elevando, por entre fundos suspiros, bradou: ‘_ Oh, três vezes e quatro felizes os que morreram à vista dos pais, sob o muros de Tróia! Ó tu, valente Tidida, o mais forte dos filhos de Dânao! Não ter eu tido a ventura, ao lutar nas campinas de Tróia de perecer sob os golpes dos teus fulminantes ataques, no mesmo ponto em que Heitor sucumbiu sob a lança de Aquiles, onde Sarpédone ingente, onde tantos escudos lascados e capacetes e corpos de heróis o Simoente carrega!’
Não acabara, e o violento Aquilão em reforço à tormenta bate de frente na vela maior e até aos astros a atira; quebram-se os remos; a proa se volta , deixando os costados à mercê d’ água.” (En. , p.11-12 )
Contudo, Netuno (deus do mar), não apreciando espetáculo tão triste, invoca os ventos propícios, tornando o mar manso. Assim, Enéias e seus sócios conseguem desembarcar nas costas da Líbia. Aproximam-se da morada das ninfas e ali descansam. Em seguida, partem em longa jornada rumo à fundação de Roma.
Atravessando séculos e séculos - do tempo mítico para o tempo histórico -, o percurso do herói moderno tende a constituir-se no reverso do percurso do herói épico. Se os heróis clássicos se definem como homens de descendência divina, destacando-se dos comuns dos mortais pela coragem ou pela interpelação do auxílio divino, no alvorecer da modernidade, com a potência civilizatória engendrada pelas Revoluções Francesa e Industrial, surge um novo tipo de herói, agora secundado pela expansão ilimitada do domínio racional, tornada fundamento auto-suficiente de uma política utópica dotada de um espírito tecno-científico que se pretende muito eficaz em matéria de controle da natureza - o futuro é a terra prometida! Assim, a “deusa Razão” deseja realizar-se na história humana, denunciando tiranias e superstições e proclamando o fim das fronteiras entre os povos. Nesse sentido, o heroísmo não é mais singular, mas plural: ele é polifônico, ele é coisa de todos, na medida em que o povo é “convidado” a participar do referido empreendimento utópico. Se antes os deuses salvavam os seus heróis, elevando-os à condição sobre-humana, agora, em tempos modernos, aparece um novo recurso: a Razão é convocada para salvar os homens de todos os abismos.
Na tela “A Jangada do Medusa” (1), Théodore Géricault figura o novo tempo com seus heróis anônimos gestados por intermédio do movimento do pensamento iluminista. Os personagens da tela são inspirados em quê? Num fato histórico, isto é, o pincel do pintor age como a pena do repórter, cujo grau de realismo busca reconstituir todos os detalhes de um trágico acontecimento. Mas qual é o realismo que está por detrás dessa imagem dantesca? O realismo traduz a esperança dos sobreviventes de um naufrágio à vista do “Argus” - o “navio redentor”, irmão do “Medusa”. Homens desgraçados e em situações emocionais extremas de pânico, angústia e desespero olham e acenam, num estupor de esperança e desesperança, para o engenho humano “Argus” - a derradeira tábua de salvação dos náufragos.
A pintura parece “narrar” uma verdade poética, na medida em que age como uma metáfora da violenta e feroz “odisséia” da modernidade, cumpridora da “epopéia” de uma nova ordem político-econômica rumo ao privilegiado futuro.
Quem são precisamente os personagens d’ “A Jangada do Medusa”?
No verão de 1816, uma fragata real francesa – “Medusa” - naufraga nas costas da África, enquanto levava soldados e colonos franceses para a missão de colonizar o Senegal. O capitão do navio foge, e a jangada com os seus sobreviventes fica à deriva em alto mar à mercê de violentas tempestades, durante quinze dias. Procurando cumprir exemplarmente as ordens da burguesia e do comércio, dentro da jangada vemos homens nus e seminus nutridos por suas ânsias e esperanças vãs, verdadeiros espectros cambaleando ao ritmo da dança macabra regida pelos vagalhões do violento mar. Na jangada, no decorrer dos acontecimentos, foi instaurada a prática do canibalismo entre os infelizes partícipes da ação histórica fracassada, traduzindo-se numa metáfora da brutalidade política do Estado Moderno recém-instituído. Homens são orientados a mergulhar no futuro - sem o auxílio de deuses e sem as palavras das ninfas - somente com os olhos fixos no prodigioso e ameaçador espetáculo da natureza, e em busca do prometido admirável mundo novo, a fim de satisfazer os desejos titânicos dos novos poderes estabelecidos. Entretanto, o cenário natural desvenda os novos e mortais caminhos tão ambicionados pelos rumos da História recente que, com freqüência, trai os seus protagonistas. Nesse sentido, a fragata agitada e “engolida” pelos imensos vagalhões pode servir de metáfora para um Estado que abandona aqueles que o servem.
Ao fitarmos o céu desta paisagem dantesca - ou para a polaridade entre a luz e a sombra, que se desdobra sobre o mar revolto - parece-nos que Géricault procurou estabelecer os limites entre a clareza e a obscuridade ou entre o racionalismo e o irracionalismo do novo empreendimento humano, no qual o sagrado perde o direito de existir à luz da razão. Com o movimento dramático das figuras no quadro, Géricault nos comove com forte dose emotiva: a exposição dos cadáveres pelos cadáveres representa um marco político. Nela o pintor procura exprimir com intensidade dramática e épica os fatos contemporâneos.
Metáfora de uma sociedade que devora os próprios filhos, o quadro representa uma tragédia coletiva com suas esperanças e desesperanças igualmente coletivas (“Argus”, ao longe, pode, também, representar aos sobreviventes a esperança depositada nas novas formas políticas). A pintura, exercendo o papel de desvendamento da história oficial de uma época, se faz metáfora do absurdo, convertendo-se duplamente no emblema perverso do tempo burguês e numa manifestação de uma das doenças da Razão: da redenção da humanidade pelo progresso histórico. Como cenário de uma tragédia moderna, “A Jangada do Medusa” parece retratar a nossa aventura errante nos quadros de uma modernidade indiferente às multidões ou às massas anônimas lançadas ao abandono no interior das sociedades contemporâneas.
NOTAS
1. Cf. a referida tela no seguinte site: http:/www1.uol.com.br/bienal/24flash/nuh/frag_rabelais_g.htm
(outras referências: GÉRICAULT – 1791/1824 – A Jangada do Medusa, 1819. Paris, Museu do Louvre.)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOMERO. “Odisséia”. Tradução Jaime Bruna. 13 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
JOYCE, James. “Música de Câmara”. Tradução Alípio C. Franca Neto. São Paulo: Iluminuras, 1998.
VERGÍLIO. “Eneida”. Tradução Carlos A. Nunes. São Paulo: UnB e A Montanha, 1983.
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Coleção:
“A Grande Arte na Pintura”. Tradução Virgínia Guimarães. Barcelona: Salvat Editores S/A, 1987 (vários volumes).
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
Campinas, é outono de 2006
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SÍLVIO MEDEIROS.