O consumo consumado

Virou clichê dizer que as crises abrem perspectivas. Mas é preciso considerar que muitas vezes as crises passam e os problemas ficam, configurando cenários clássicos de oportunidades perdidas.

A atual crise global – que logo saiu do mundo especulativo virtual para o plano real – poderia ser uma chance de se repensar a própria lógica do mercado, e sua vinculação com outra crise, muito mais grave: a crise civilizatória que ameaça não apenas as bolsas de valores, o crédito bancário e a indústria de automóveis, mas surge como uma sombra sobre a permanência da espécie humana neste planeta.

Trata-se de uma questão aparentemente nova, se tomado como marco a Conferência de Estocolmo, em 1972, quando o horizonte de recursos naturais disponíveis para a manutenção da vida foi posto em xeque oficialmente pela primeira vez. O título do documento-base para a conferência, realizada pela ONU para debater a relação entre desenvolvimento e meio ambiente, era sintomático: Uma só Terra: o cuidado e a manutenção de um pequeno planeta.

Após pouco mais de três décadas, a cultura dos 3R’s (reduza, reutilize, recicle) não consegue prevalecer sobre o que podemos chamar de a cultura dos 3C’s (corra, compre, consuma). Sim, porque não é suficiente “comprar” – é preciso “comprar logo”, para consumir e comprar de novo. Seja na visão do mercado como um ser vivo que precisa de comida – no caso, dinheiro – seja na propaganda onipresente instalada na cabeça das pessoas, o padrão de consumo é um fato consumado. E não pode ser objeto de negociações, ao contrário das perdas gigantescas dos grandes jogadores do cassino financeiro.

Pesquisa divulgada pelo jornal The Washington Post revela que dois terços dos norte-americanos estão preocupados com o seu padrão de vida. Praticamente o mesmo percentual apóia medidas de estímulo à economia através do aumento dos gastos federais, paradoxalmente gerados pelos tributos ao consumo. Pressionados pelo susto, um pouco mais da metade dos entrevistados declarou que iria comprar menos no Natal de 2008, o que seria a maior retração desse tipo desde 1985. O medo de ter de gastar menos, no entanto, não é prerrogativa de um país. Da China ao Brasil, pacotes pró-consumo são lançados pelos governos, em resposta ao aperto da crise.

O problema é que o padrão do “corra, compre e consuma” é insustentável para os limites da biosfera. Um americano produz, em um ano, dezoito vezes mais gases do efeito estufa do que um indiano, e o país de Obama responde por nada menos do que um quarto das emissões mundiais desses gases. O que acontecerá quando a Índia, e a China, se aproximarem desses níveis de consumo? Basta fazer a conta.

A crise ambiental é maior do que a crise financeira, e cedo ou tarde irá gerar uma assustadora crise econômica, caso as cúpulas e os tratados internacionais continuem a não dar em nada. Isso não é novidade na trajetória humana. Para o historiador Ronald Wright, autor do livro Uma breve história do progresso, as civilizações em geral são como projetos comerciais do tipo “pirâmide”, em que a prosperidade atinge o cume à custa do consumo maciço dos recursos que possibilitam o seu crescimento. Ao contrário do capital financeiro, o capital natural demora a se regenerar.

A febre da Terra – o aumento da temperatura, o derretimento do gelo, o avanço das marés – é provavelmente o primeiro sintoma da enfermidade planetária. E não será o último. O meio ambiente é solapado pelo consumo galopante. O consumismo é uma das faces da crise ecológica. Ou a civilização que se tornou global diminui a marcha e busca novos padrões de consumo, ou não haverá energia renovável que baste e “créditos de carbono” que revertam o processo que poderá culminar com a diminuição drástica de nossa presença no velho paraíso terrestre.

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 21/12/2008
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