QUEM CONTA UM CONTO...
Quem não tem, em casa — nessa época de Natal em que os familiares se reúnem para uma ceia , almoço ou jantar — um contador de histórias, de “causos”, de ocorridos em outros tempos que já se passaram e que não voltarão jamais ?
Eu tenho: meu pai.
Ele sempre contou histórias: do príncipe que ajudou a diversos pequenos animais — um peixe, uma águia, um morcego etc — em situações críticas mas que, depois, só conseguiu conquistar sua amada com a ajuda desses mesmos animais, em contexto diferentes; as histórias ocorridas com sua família: pai falecido muito jovem , irmãos, primeiro trabalho, promoções, decepções, meu nascimento; histórias do futebol de Rui , Bauer e Noronha, Zizinho; histórias resumidas das óperas, das quais ele sempre gostou tanto, de suas experiências nas quermesses da São José e das peças de teatro apreciadas, diz ele, por Frei Benvindo da Congregação Mariana.
Esses momentos ficam gravados a ferro e fogo em nossas mentes e corações, e sempre acabam servindo , de uma forma ou outra, como parâmetros de conduta moral em alguns momentos de nossas vidas, ou como base para , da mesma forma, cuidarmos da educação de nossos filhos.
Já alfabetizado, vim a descobrir que essas histórias estavam, aos milhares , nos livros, e então foi aí o momento da grande descoberta da minha vida: a biblioteca Altino Arantes substituiu meu pai, que não deixou de contá-las, ainda hoje, passados mais de cinqüenta anos, quando nos encontramos para colocar os assuntos em dia.
Comecei com almanaques anuais do Tico-Tico, passei pelo Tesouro da Juventude, emprestado por uma vizinha, e a seguir devorei obras completas de Machado, Alencar, Tolstoi, Dostoievski, Cronin, Shakespeare, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Jorge Amado, e outros, muitos outros.
E tudo isso vem à minha lembrança, nesse momento,após assistir ao filme Peixe Grande, um misto surrealista de comédia, drama e aventura, direção de Tim Burton, baseado no livro de Daniel Wallace, Big Fish.
Não penso o mesmo que Will Bloom, jornalista, pensa sobre seu pai, Ed Bloom, contador de histórias, advogado bonachão, no início e no decorrer do filme. Não precisei pesquisar para encontrar as verdades no emaranhado de fantasias, não desejei ter, em nenhum momento, a vontade de separar ficção da realidade, porque nunca me senti enganado, e eu soube avaliar a importância dos sonhos na obtenção de forças para suportar a dura realidade de uma existência humana.
Meu pai, que nunca foi um homem de grandes leituras, conseguiu com experiências práticas de uma vida difícil, entender a mensagem desse filme que ele nunca viu — “ se um peixe-dourado é mantido num pequeno aquário ou compartimento, ele não crescerá, mas que, com mais espaço, ele poderá dobrar e até triplicar seu tamanho” — e aumentou, a seu modo, meu espaço de menino que sempre se resumiu, fisicamente, a uma pequena casa, num pequeno bairro, numa cidade média do interior paulista.
Que sejam sempre bem-vindas as sagas épicas, surreais, as pequenas/grandes histórias que compõem a vida de cada um de nós, misturando gigantes e lobisomens, grandes amores, poetas que viram ladrões de Bancos e depois barões na Wall Street, unindo cantoras coreanas, bruxa de olho de vidro, donos e animadores de circos itinerantes, e, é claro, um peixe grande que se recusa a ser capturado.
ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO
PRESIDENTE DA ACADEMIA RIBEIRÃOPRETANA DE EDUCAÇÃO
ancartor@yahoo.com