CÍRIO DE BELÉM
Alguém nascido no Pará pode morrer, sem antes deixar registrado o pouquinho que viu, escutou ou leu sobre a festa maior dos paraenses?
Como já passei dos cinqüenta e, ainda mais, como o Círio de Belém completa mais de dois séculos de existência, achei por bem não facilitar e deixar consignado um pouco da sua história.
SURGIMENTO DA DEVOÇÃO
Apesar de a devoção à Santa ser demonstrada pelos paraenses desde o final do século XVIII, já existe há mais de um milênio. Até a imagem chegar ao Mosteiro de Caulina na Espanha, ela peregrinou por Galiléia, Belém e África, onde foi remetida para o Mosteiro de Caulina por Santo Agostinho.
Em 714 d.C., na batalha de Guadalete, o rei Rodrigo (ou Rodérico), dos Godos (povo da antiga Germânia), foi vencido pelos muçulmanos. Para fugir disfarçou-se de pastor e acompanhado por um abade romano rumou para Portugal. Conta a lenda, que foi nas escarpas do monte Siano que o abade mostrou ao rei uma pequena imagem da Virgem de Nazaré.
Rodrigo e o abade combinaram ficar em lugares próximos e, diariamente, acenderiam uma fogueira para sinalizar que estavam com saúde.
Numa das noites, como o abade não acendesse a fogueira, Rodrigo se dirigiu ao acampamento e o encontrou morto.
Entretanto, a pequena imagem não foi recuperada. Provavelmente, receoso pela profanação dos muçulmanos, o abade deve ter escondido a imagem em local onde fosse muito difícil encontrá-la.
Por certo, deve ter sido o que ocorreu, pois em 1179, quatro séculos depois, pastores portugueses vieram a encontrar a pequena imagem e a colocaram para ser venerada, num monte fronteiro ao Siano.
Dentre os muitos que compareciam para venerar a imagem estava Dom Fuas Roupinho.
Em 14 de setembro de 1182, com o milagre responsável pela salvação da vida de Dom Fuas Roupinho, nascia em Portugal a devoção à Virgem de Nazaré.
O MILAGRE PRIMEIRO
Contam que nesse dia, Dom Fuas caçava em mata envolvida por forte nevoeiro. Ao avistar um veado, passou a persegui-lo.
De repente, percebe que o mesmo despenca e cai num precipício.
Vendo-se perdido,suplica a proteção da Virgem de Nazaré e dá-se o milagre. No local se conservam, até hoje , as marcas que as patas produziram sobre o solo, no momento em que o cavalo estancou, empinou e rodou sobre os cascos traseiros.
Impressionado com o milagre, Dom Fuas mandou erigir no local uma capela para a Virgem de Nazaré, Capela da Memória.
ORIGENS DA TRASLADAÇÃO E DO CÍRIO
A procissão chamada Círio acontecia anualmente, na Vila de Nazaré da província de Estremadura, situada a sudoeste da península ibérica.
Atualmente, sempre em 14 de Setembro, os portugueses se reúnem para reverenciar Nossa Senhora de Nazaré.
Somente cinco séculos mais tarde, século XVII, é que ocorreu o início da difusão da devoção à Nossa Senhora de Nazaré, que foi trazida por padres jesuítas e fundadores de uma cidade a sudeste do Pará de topônimo Vigia.
Em outubro de 1700, o caboclo Plácido encontra, onde hoje se acha construída a Basílica de Nazaré, a imagem da Santa protegida pela sombra de um pé de taperebá que, até hoje, é venerada pelos fiéis da Amazônia.
Contam que Plácido levou a imagem para casa e que desapareceu em seguida, sendo reencontrada no mesmo lugar. Contam, ainda, que este fenômeno repetiu-se várias vezes. Este mesmo fenômeno, anos mais tarde, viria inspirar a Trasladação.
A história registra que foi também esse fenômeno que determinou a construção de uma pequena ermida no lugar onde a Santa foi encontrada. Somente em 22 de outubro de 1909 é que foi lançada a primeira pedra da atual basílica.
O PRIMEIRO CÍRIO E A EVOLUÇÃO DE SEUS ELEMENTOS
Em 08 de setembro de 1793, aconteceu o primeiro Círio de Nazaré e, desde aquela ocasião, os políticos pegam carona no prestígio da Santa. Relatam que, no primeiro Círio, o governador acompanhava a procissão com uma vela maior que sua própria estatura.
Até o ano de 1853, a procissão era realizada nas tardes dos segundos domingos de outubro. A partir de 1854, passou a ser realiza pelas manhãs por causa das chuvas vespertinas de Belém, as mesmas que servem de referência para a marcação de encontros ou compromissos.
Os elementos da procissão do Círio: a Berlinda; a Corda; os Anjos; e as Barcas foram sendo introduzidas com o passar do tempo. Em 1805 é incorporada a Barca que simboliza o milagre de Dom Fuas Roupinho.
Em 1826, aparece na procissão a Barca dos Fogos , que era ornamentada com as bandeiras das nações católicas. Somente em 1882, a Berlinda é introduzida para conduzir a imagem. Esta primeira berlinda encontra-se na cidade de Bragança e a segunda, na cidade de São Miguel do Guamá.
A terceira surgiu inovada na sua arquitetura, entretanto foi abandonada por desagradar os fiéis. Hoje, a imagem é conduzida pela quarta berlinda, que tem arquitetura semelhante à primeira e à segunda.
Se a memória não falha, o anjo Custódio, o primeiro a acompanhar à procissão do Círio, era filho do Governador do Pará ou de importante personalidade do meio político da época. A partir deste momento, outros anjos passaram a ser destaques oficiais da procissão e também muitos romeiros passaram a expressar a pureza das crianças, vestindo-as como anjos.
A Corda para puxar a Berlinda é introduzida em 1885, pois no percurso, principalmente às margens da Baía de Guajará , existiam, naquela época, lugares alagados o que dificultavam a movimentação da Berlinda.
Foi introduzida, também, a Barca das Velas, destinada ao recolhimento das peças em cera. Essas peças, normalmente, representam ou os pedidos ou as promessas dos romeiros.
TRASLADAÇÃO
A Trasladação, procissão que acontece na noite do sábado, segue o mesmo itinerário, só em sentido inverso ao do Círio que acontecerá na manhã do domingo seguinte, ou seja do Colégio Gentil Bittencourt, ao lado da Basílica de Nazaré, para a Catedral da Sé.
A Trasladação encena o percurso feito por Plácido: do local onde foi encontrada a imagem até a sua casa. O Círio encena o mistério do desaparecimento e o reaparecimento da imagem da Santa no berço por ela escolhido à sombra de um pé de taperebá.
TRADIÇÃO DE FÉ DOS PARAENSES
Foi assim, é assim e sempre será. Todos os anos, na noite do segundo sábado e na manhã do segundo domingo de outubro, os paraenses se reúnem para, com a alegria de foliões e a devoção dos humildes, realizar a Festa da Fé.
Nas manhãs de domingo, são mais de um milhão de romeiros e mais outro tanto, às margens do percurso que participam diretamente do evento.
É um momento mágico onde o gelo das almas é derretido, a mente é carregada de pensamentos positivos e o coração se enche de esperanças.
São milhares caminhando descalço sobre as brasas dissimuladas do asfalto. São milhares a disputar a ação mais nobre: de acompanhar o Círio transportando a Corda. Nesses, a convicção de que quanto maior o flagelo, maior será a graça ou o perdão.
São milhares a depositar nas Barcas: cabeças, mãos, pernas, e braços moldados em cera simbolizando ou uma graça pedida ou o pagamento por uma outra alcançada.
São milhares com casas e barcos em miniaturas, da mesma forma, rogando ou demonstrando gratidão.
São todos cantando, desde 1909, os versos do poeta maranhense Euclides Faria, transformados no hino oficial do Círio: “Vós Sois o Lírio Mimoso”.
No colorido das roupas, na alegria tropical de lenços, ventarolas e outros adereços, bem como no coral de milhões de vozes entoando o Hino,todos interpretam a festa apoteótica dos romeiros de Nazaré.
O retorno da Imagem à Basílica encontra um ambiente universal onde a maçaranduba da Amazônia, os vitrais parisienses e o mármore toscano de Carrara se esforçam para reconstruir o primeiro berço à sombra de um pé de taperebá .
O Círio chega ao seu final, todos voltam para seus lares, uns em trajetos onde é gasto pouco tempo, outros levarão mais que semana, entretanto todos renovados pela transfusão de uma energia fulgurante procedente da egrégora gerada pela magia do Círio.
Acreditamos que seja: essa peregrinação de todos os anos com muita fé e esperança; esse acompanhar e segurar juntos a Corda, as ações plasmadoras das características de solidariedade e hospitalidade do povo paraense. Essas características são percebidas quando um caboclo de doce olhar, de sotaque aberto e franco nos chama de maninho.
Maninhos: é muito importante que essa vivência da fé em festa ou da festa da fé, se manifeste em comportamentos e compromissos para a construção de uma sociedade mais justa e melhor equilibrada.
“Círio de Nazaré” são nossas rimas cheias de preocupação com o registro e com a comemoração do evento mágico que consagrou, como Padroeira do Pará e Rainha da Amazônia, o Lírio Mimoso a Virgem Santa Maria de Nazazé.
CÍRIO DE NAZARÉ
É Belém, é magia de Sábado.
O navegar de rostos e de velas
anunciam, como Plácido,
o encontro da imagem singela.
Pé de taperebá, o seu berço.
É Belém, é noite de oração.
Dedos se perdendo nas contas dos terços.
e vozes, pelos cânticos da Trasladação.
É Outubro, é segundo Domingo.
Nos corações, de D. Fuas, a devoção.
É madrugada, quase aurora,
rios e estradas de homens de fé
invadem a cidade, berço de Nossa Senhora,
a Virgem Santa de Nazaré.
São gratos em cera pela graça.
São anjos flutuando na emoção.
São as barcas navegando pela massa.
São aplausos, flores e fogos da gratidão.
É Belém, é Passarela-Santa
de devoção, gratidão e fé.
No murmúrio da benção
a certeza do amor da Mãe de Nazaré.
A Basílica, outrora ermida,
à sombra de um pé de taperebá
escuta a canção da despedida:
volta Mamãe Divina, para nos abençoar.
É Outubro, é segundo Domingo,
é a festa da gratidão e da fé.
È meio-dia , é sol a pino,
viva Nossa Senhora de Nazaré.