Será Arte?
“As tuas praias
estavam nos quadros
começavam ventar
barcos de vela iam
as casinhas do mar
ficavam cheirando a sal
apenas o sol amarelo
não saía do lugar
para que a tarde
ficasse presa ali
num prego de parede.
Contemplava depois
as tuas mãos mornas
elas tinham ainda
as marcas das areias
e eu admitia estarem
segurando estas praias
de barcos e casas vivas
de uma tarde sem fim.”
(João Marques, em Partições do Tempo)
Perceber o “velho mundo” com olhar do novo, de admiração, é uma dádiva inerente apenas à condição humana. A capacidade de ver tudo ao redor rompendo os limites do visível, transcendendo as barreiras do concreto e do possível é fazer arte. É a arte.
Nesse poema acima, o autor tenta apreender uma realidade extensa e infinitamente maior de que uma simples moldura. Com o olhar artístico sobre a obra plástica transcende as cores e pinceladas do quadro para uma realidade interpretada por ele.
O quadro, por sua vez, consegue parar o tempo, conter o oceano numa tela, movimentar o barco e dar a impressão ao autor do texto de que ali existe “... praias de barcos e casas vivas de uma tarde sem fim”.
Estamos diante da arte.
O ser humano como transformador da natureza, do mundo exterior a ele, como senhor da história e da ciência, não se limita ao palpável, ao concreto, ao empírico. Falar do mundo, de sociedade, de política é sem dúvida falar do homem, este que consegue encerrar em si mesmo todo o sentido da existência, uma vez que a partir dele tudo é valorado, interpretado e transformado.
No entanto, e é nessa parte que repousa a grandeza da obra divina, à medida que transforma o mundo ao seu redor o homem também é transformado. Ele opera o exterior e o seu interior também é operado.
As paixões humanas são as forças por trás das ideologias, da cultura de cada povo, da sociedade. Ainda que Aristóteles discursasse acerca do perigo delas, a sua supressão é quase que impossível, uma vez que o homem é finito, cheio de desejos, frustrações e mistérios.
Diante de um mundo sensível aos sentidos, surgiu à necessidade de algo maior, perfeito, que completasse o vazio existente, descobriu-se o sagrado, o divino, o religioso.
Criou-se muito debaixo desse sol e desse céu. Várias gerações apareceram e se foram, no entanto, coube ao olhar artístico perceber de forma nova o velho, de eternizar o fugaz. É a “surpresa do novo da redescoberta do antigo”. Essa é a função da arte. É atentar de maneira original para aquilo que todos vêem, sentem, sofrem, mas de forma inovada.
A arte consegue harmonizar os extremos, dá um toque de efêmero e eterno, como nessa poesia que segue abaixo de João Marques:
“As fotografias no lixo
de cabeça para baixo
continuavam sorridentes
recolhi todas elas
como se trata gente
e também sorri
os sorrisos delas”
“... as fotografias no lixo/ de cabeça para baixo...”, fotografias... papéis, efemeridades, se vão.
No entanto, “... continuavam sorridentes/ recolhi todas elas como se trata gente...”. Eternidade. As lembranças eternas sorriam através das fotografias finitas, o autor transcendeu a percepção pragmática e mecânica do mundo... revelou-se artista!
Além de mudar as cores do mundo, de sempre compor uma nova melodia com as mesmas e anciãs sete notas musicais, a arte é uma forma de expressar ideologias, indignação, protesto. Até porque a sua essência lhe confere um quê de misterioso que abraça-lo é como buscar o que foge, ela é uma maneira do interior “mandar recado”. Apresenta-se próxima de nós e ao mesmo tempo longe, num plano metafísico.
A arte “engajada”, como assim apelidaram-na, é aquela que chora as dores do mundo, que tem fome de justiça, que atinge o outro no seu tendão de Aquiles, como bem falou Mário Quintana: “...o bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele”, que grita, como o quadro de 1893 de Edvard Munch, intitulado O Grito. Que transcende a realidade, que possui pulsação, desespero e esperança.
“Chora
a nossa pátria mãe gentil
choram Marias e Clarisses no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
não há de ser inultimente
a esperança
dança na corda bamba de sombrinha
e em cada passo dessa linha pode se machucar”
(João Bosco e Adir Blanc)
Os que choram, os banidos, estão próximos de nós, as Clarisses, os Josés e as tantas Marias também. A esperança abstrata que dança na corda bamba, ora está perto, ora está longe. Existe clamor, há desespero de que a dor não seja inutilmente, há denúncia às condições sociais dessa época, há paixões.
Quantas músicas foram perseguidas e proibidas, quantos livros, manifestações plásticas, discursos inflamados. Porque a arte prende a atenção de quem a contempla, possui uma aura mística que envolve e faz pensar.
Consegue ressaltar, como já falamos antes, os que todos sentem, ouvem, sofrem e vivem de forma única, dando a impressão que foi endereçada a cada um, mesmo que fale do dia-a-dia comum do cotidiano, como bem soube fazer Chico Buarque:
“Todo dia ela faz tudo sempre igual
me sacode às seis horas da manhã
me sorri um sorriso pontual
e me beija com a boca de hortelã”
Enfim, é a harmonia do efêmero e do eterno, do que fica e do que vai, do humano e do metafísico. Ela realça a realidade com um toque peculiar e único do sensível, do perceptível a todos, mas ressaltado por alguns.
Defini-la por completo, impossível.
Bem se expressou Ferreira Gular...
“Uma parte de mim é multidão/ outra parte estranheza e solidão/ Uma parte de mim é permanente:outra parte se sabe de repente./ Traduzir uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?”
Será arte?