Machado de Assis e o Espiritismo
No ano que marca o centenário de morte, ou, melhor dizendo, de imortalidade de Machado de Assis, é natural que voltemos a nos debruçar sobre sua obra buscando ainda compreender o processo de formação de um escritor de seu nível. A dimensão da obra machadiana é tal que se torna até o momento inesgotável, sendo possível ao pesquisador encontrar na mesma um vasto campo temático para suas análises.
Como homem de seu tempo, Machado se nos apresenta como um inteligente observador da sociedade, capaz de transformar os acontecimentos mais corriqueiros em farto material para sua produção literária em todas as expressões a que se dedicou.
No texto que hora se inicia, procurarei mapear algumas das referências e usos estilísticos que O Bruxo do Cosme Velho fez a um dos “produtos” importados de França pelos brasileiros: o Espiritismo
Afirmar que Machado de Assis era conhecedor dos conceitos espíritas não é nenhum absurdo e pode ser constatado pelas palavras do próprio escritor. Antes de nos determos na produção literária de Machado, recorramos às suas crônicas a fim de verificar o seu contato com o Espiritismo.
Em crônica publicada no dia 05 de outubro de 1885, na “Gazeta de Notícias”, Machado começa com seu habitual tom jovial: “MAL ADIVINHAM os leitores onde estive sexta-feira. Lá vai; estive na sala da Federação Espírita Brasileira, onde ouvi a conferência que fez o Sr. M. F. Figueira sobre o espiritismo.”.
Na seqüência da crônica, o Bruxo conta ao leitor como (num processo hoje chamado de “projeção”) desprendeu-se do corpo e visitou em espírito a sede da FEB, onde assistiu à palestra na qual se convenceu da inexistência do diabo e jurou converter-se à nova doutrina. Ao retornar a casa encontrou seu corpo animado por um espírito que se identificou como sendo o próprio diabo; este lhe expõe a idéia de que o Espiritismo não passava de mais um modismo condenado ao esquecimento assim que não surtisse o efeito dele esperado.
É evidente que estamos diante de uma das ironias finas de Machado, não nos sendo possível crer na sua viagem espiritual até a sede da FEB ou em sua conversa com o diabo. Entretanto a narrativa que ele faz de sua projeção interessa-nos, sobretudo por mostrar conhecimento do processo envolvido no desprendimento da alma do corpo, conforme descrito em diversos tratados espíritas desde Kardec até os dias atuais. Também é de se ressaltar que Machado estava a par das atividades desenvolvidas pela FEB e das pessoas nelas envolvidas, pois, como é sabido, Nos anos de 1885, 1886 e 1887, a FEB promoveu as “Conferências públicas sobre o Espiritismo” nas quais os princípios da Doutrina Espírita eram expostos ao público leigo por diversos estudiosos membros da FEB entre os quais estava o primeiro vice-presidente da mesma, Manuel Fernandes Figueira.
Na crônica seguinte, datada de 11 de outubro do mesmo ano, Machado volta a falar de sua conversão ao Espiritismo. Vejamos o que ele nos conta.
Fui iniciado quinta-feira, às nove horas da noite, e não conto nada do que se passou, porque jurei calá-lo, por todos os séculos dos séculos. Uma vez admitido no grêmio, preparei as malas para ir estabelecer-me em Santo Antônio de Pádua.
Claro era o meu plano. Metia-me na vila, deixava-me inspirar por potências invisíveis, predizia as coisas mais joviais ou mais melancólicas deste e do outro mundo, reunia gente, e fundava uma igreja filial. Antes de seis meses podíamos ter ali um bom contingente.
Para aquele que possui um mínimo conhecimento do Espiritismo o texto soa altamente risível pelos seguintes fatos:
1- Não há, e nunca houve, no Espiritismo qualquer tipo de cerimônia de iniciação, muito menos juramentos secretos.
2- Não é função prioritária do Espiritismo o intercâmbio mediúnico, mas sim a renovação moral do indivíduo mediante o estudo e a prática da caridade.
Apesar do deslize (creio que proposital), Machado ainda nos demonstra nesta crônica como as práticas religiosas não católicas eram perseguidas na época:
(...) Tudo estava pronto, malas, alma e algibeiras, quando li o código de posturas da Câmara Municipal de Santo Antônio de Pádua, que está sujeito à aprovação da assembléia provincial do Rio de Janeiro. Nesse código leio este ominoso artigo, o art. 113:
“Fica proibido fingir-se inspirado por potências invisíveis, ou predizer cousas tristes ou alegres”.
(...)
Não me digam que o artigo apenas veda a simulação. Os fiscais de Santo Antônio de Pádua não podem saber quando é que a gente finge ou é deveras inspirado.
Mas não foi essa a última vez que os leitores do cronista iriam ler sobre o Espiritismo em suas linhas. Em diversas ocasiões encontramos referências ao Espiritismo nas crônicas machadianas, e em muitos casos nosso escritor demonstra pleno conhecimento do assunto. Passemos a alguns exemplos mais significativos.
3 de julho de 1892 – Expõe sobre a reencarnação, fazendo a distinção entre esta de acordo com o Espiritismo e a metempsicose dos brâmanes. Interessante notar que ele reproduz praticamente na íntegra a inscrição encontrada no túmulo de Allan Kardec: “A lei é esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre.” (Assis, 1997: 12).
23 de setembro de 1894 – Mais considerações a respeito da reencarnação e de como ela poderia explicar um caso de acusação de bigamia.
27 de outubro de 1895 – Entre outras considerações gerais surge o questionamento da divergência entre o artigo 157 do Código Penal de 1890, que declara crime “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios”, e a Constituição Republicana, chamada de “mãe do Código”, que acabava com a religião do Estado.
Há outras referências ao Espiritismo nas crônicas de Machado de Assis que julgo desnecessário enumerar por constituírem meras citações de menor relevância no contexto de cada crônica. O mais importante é ressaltarmos que a penetração da Doutrina Espírita em terras brasileiras marcou profundamente a nossa intelectualidade e que até mesmo nosso maior escritor, embora mantivesse seu ceticismo e tom irônico costumeiros, dialogou de alguma forma com as idéias apresentadas pelo Codificador.
ASSIS, Machado de. Balas de estalo & Crítica. São Paulo: Globo, 1997, p. 103-5.
ASSIS, Machado de. Op cit, 1997, p. 106-7