Os Olhos de Um Cão

”Se teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz”

(Matheus – 6, 22)

Muita coisa há que eu odeio.

E eu, quando odeio, odeio com verdade proporcional à quando amo – e, com verdade, muita coisa há que eu odeio.

Eu odeio a juventude imbecil, sem idéias, nem ideais, sem romance, nem poesia: o gargalhante exército de cretinos, sem luta, sem causa, sem nada. Mas odeio ainda mais os não-jovens – e um pouco mais ainda os não-imbecis! –, tentando mimetizar-se entre eles, por medo do isolamento – ou, pior: em busca dele.

Odeio o substrato de refugo de lixo, servido à guisa de “cultura”, nos bandejões clandestinos dos camelôs de toda esquina – à preço de banana, para cérebros de banana.

Odeio o mau gosto travestido de “tendência”.

Odeio quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer a verdadeira companhia(frase que é perfeita, mas não é minha: é de Nietzsche, o que me lembra que eu também odeio quem faz uso de idéias alheias sem lhes conferir os devidos créditos).

Odeio sentir saudade.

Odeio quem não se dá, não se entrega e não se envolve, quem não veste camisas, quem não passa da beirada da piscina – quem joga, vive e ama na retranca, sempre esperando pelo movimento do outro.

Odeio covardia sob o rótulo de “insegurança”.

Odeio quem não defende seus afetos, quem não protege seus amores, quem não honra suas palavras e não assume seus atos, quem não socorre, quem não abriga.

Odeio os canalhas – e quem é amigo de canalhas.

Odeio violência, agressão, estupidez; falta de cordialidade e de polidez. Odeio a vaidade exacerbada. Odeio a falta de generosidade. Odeio a soberba. Odeio quem maltrata porteiros, garçons, manobristas e balconistas.

Odeio quem explora os mais fracos – sejam mais fracos fisicamente, culturalmente, financeiramente: os ditos “mais fortes” serão sempre perversos.

Odeio doutrinas.

Odeio o sectarismo arrogante dos que julgam-se pertencentes à uma “casta” superior qualquer: na política, na religião, na filosofia – seja no que for. Odeio todas as formas de separatismo e de intolerância.

Odeio qualquer forma de intervencionismo estatal sob a bandeira da disciplinação da sociedade. Odeio os corruptores e, ainda mais, os corruptíveis. Odeio quem coloca preço na dignidade – na própria e na alheia – e, quanto mais alto o preço estipulado, mais isso será odioso.

Odeio o egoísmo míope, o individualismo vil, quem pede e recebe, mas recusa-se a pagar o preço – por menor que seja. Odeio quem evita enfrentamentos, quem teme as rupturas, quem se acovarda, se acomoda, cede e se amesquinha – se o prêmio for satisfatório.

Odeio os chantagistas – mas mais ainda os chantageáveis.

Odeio a pilantragem consentida, o mau-caratismo justificado, a maldade relevada, a cafajestagem conivente – e conveniente.

Mas não há nada, absolutamente nada, neste mundo e neste plano de vida que eu odeie mais do que a suprema crueldade de quem abandona um velho cão nas ruas, à própria sorte.

No olhar de um cão abandonado, entre expressões misturadas de sede, fome, frio, dor, medo e tristeza, há mais – infinitamente mais! – verdade do que todas as humanas palavras (incluindo as minhas) podem traduzir.

E todos os meus outros ódios ficam então reduzidos a quase nada.

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