Uma cidade chamada "Não se aflija"
É noite em Jequié, e chovem águas atormentadas, algo raro nessa cidade cujo calor não consegue aquecer um frio intenso que congela os olhares das pessoas. Um pesadelo me surpreende: sonhei coisas estranhas, que as águas escuras do rio de Contas me arrastavam para longe e para sempre.
Ligo a TV para ter companhia e um filme antigo, dos anos 70, mostra a beleza já madura de Joanne Woodward, que quer saber por que tudo deu errado num casamento já tão gasto, como também antigo, com Ben Gazarra, de raros cabelos esbranquiçados. Ben parece ter bebido daquelas águas das tormentas, e olhos vermelhos procuram o tempo em que tudo se evanesceu entre ele e Joanne.
Ela abre um livro de poemas e lê para uma netinha entediada os versos: “...há uma cidade chamada não se aflija”. Corta, e Ben senta diante de uma figueira que parece ter cem mil dias, olha o horizonte e vislumbra avó e neta como dois pontos perdidos no quintal lá distante. Resolvi reconstituir o poema, e o que poderia ser uma Jequié com que sonho, quando vejo o abandono em que estão mergulhados bairros como o Pau Ferro.
“Há uma cidade chamada Não se aflija, às margens do rio Sorriso, onde o alegre-se e o seja feliz florescem o tempo todo. Onde a flor do nunca se enfeze cresce ao lado das sempre-cheias e os nunca desistas e paciências erguem o rosto para o céu. Um céu azulzinho, de nuvens calmas, desponta numa manhã que corre serena nas casas pequenas e nas varandas das delicadezas absolutas.
Ali, naquela cidade das aflições que sempre têm fim, as crianças brincam afoitas tanto na rua da confiança é uma ordem quanto na pracinha ofereço o mais das vezes o melhor de mim; esparramam-se em alvoroço pelas árvores do cada vez que errar erre melhor, comendo as goiabas de sementes vermelho-bondade, as jabuticabas das doces esperanças e as acerolas que povoam imaginações surpreendentes. As torrentes do riacho que deságuam no rio de Contas brilhantes transcorrem tranqüilas pelas areias do mar da tranqüilidade, inunde o meu ser, mar de um sol intenso, como o sol amarelo da cartilha O barquinho de papel.
De súbito, numa velocidade de uma águia faminta, o vento da maledicência trouxe consigo a poeira do a vida é uma tristeza e o manto gelado da desunião desabou sobre as flores do ódio nunca mais, cobrindo de sereno e orvalho gelado toda a tranqüila Não se aflija. Todos sofremos uma imensidão do tamanho do abismo da falta de bom senso e caímos no fundo do poço do nunca duvides das verdades estabelecidas. As noites de luas-cheias de lágrimas escureciam tenebrosamente as paisagens no inverno do cada um por si.
Não há, porém, dor que nunca cesse ou nenhuma escuridão que não venha à luz, e todos, numa súbita ciência do é preciso evitar as mesquinhas conquistas silenciosas deram-se conta de que, quem mora às margens de rios como o de Contas brilhantes e Sorriso e passeia por jardins de alegre-se e seja feliz, terá vencido quaisquer invernos, aquecidos no manto da justiça dos corações em comunhão.”
E a Jequié com que sonhei parece ter ressurgido das profundezas das minhas memórias e se tornado uma cidade em que as aflições sejam apenas abstratas, as pessoas conseguissem deixar que o sol intenso do ano todo aqueçam de verdade seus corações distantes, e um sopro cálido de ilusões adormecidas, agora despertadas, refaça as suas vidas.