CONSIDERAÇÕES SOBRE O ROMANTISMO ALEMÃO
A NOITE TOMA O LUGAR DA “AUFKLARUNG” *
De um dos pais fundadores do Romantismo, uma guirlanda de fragmentos:
“... No mundo, então, que faremos
Com tanto amor, tão fiéis?
Se põem de lado o velho,
O novo o que nos reserva?
Mas que só, desconsolado,
O devoto do passado! (...)
... Do tempo em que altas brilhavam
As chamas da luz dos sentidos ...
... Do tempo em que ainda floriam
Antigas estirpes magníficas, ...
... Do tempo em que jovem e ardente
A Si mesmo Deus se mostrou. (...)
... Mas vê temerosa saudade
Estarem na noite encobertos.
Jamais a transitoriedade
Acalma sede que aperta.
Nós vamos voltar à pátria,
Ver esse tempo sagrado.” (Novalis. Saudades da Morte)
SOBRE O ROMANTISMO ALEMÃO
Edificado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, pelo jovem poeta Novalis, pelo dramaturgo Ludwig Tieck e pelos filósofos Schelling e Schleiermacher, o Romantismo alemão - ou a chamada “Escola Romântica”-, estabeleceu-se, na qualidade de grupo, em torno da revista “Athenaum” (1797).
Augusto Meyer (1986) comenta nos seguintes termos os resultados de seus estudos sobre o tema: “Romantismo alemão... Perigoso tema, em que logo nos sentimos solicitados por mil e um atalhos sem estrada real, verdadeira sedução da rosa dos rumos”.
Ademais, o que há de livros escritos atinente a esta temática é de uma quantidade imensa. Analisemos, pois, alguns resultados desses estudos.
De acordo com a análise clássica do sociólogo alemão Max Weber (1982), o mundo moderno experienciou um processo de desencantamento. Desmancha-se a vinculação direta do homem com o sobrenatural. O Romantismo, nesse caso, procura, então, desvendar o inconsciente, numa tentativa desesperada de reencantar o mundo, de lutar contra o “desencantamento do mundo” imposto pelas potencialização da técnica e pela abstração racionalista.
Desse modo, é freqüente entender o Romantismo como algo que poderíamos denominar de um movimento anticapitalista, tendo como solos geradores a Alemanha, a Inglaterra e a França do século XIX. Por estas razões, o movimento romântico geralmente se estende para adiante de sua datação histórica, mesclando-se a uma série de outros movimentos, inclusive na literatura das ciências sociais em geral. Estas, aliás, são as principais teses que percorrem dois notáveis estudos sociológicos - ambos amparados pela filosofia crítica de cunho ideológico marxista -: um de Michael Lowy e outro de Robert Sayre. Ambos examinam o Romantismo de um ponto de vista marxista, porém, sem dogmatismos (1).
Contudo, abandonemos esse campo de múltiplas perspectivas e examinemos um dos aspectos da complexa temática pelo viés da crítica literária.
Assim, do lado da crítica literária, para este fim, a tese de doutoramento de Walter Benjamin “O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão” (1919) consegue - apesar da amplitude do tema - trazer a lume o modo peculiar de compreender e de fazer crítica da arte entre os românticos de Jena. A tese de Benjamin reúne estudos de teoria literária, filosofia e teoria do conhecimento, situando o espólio dos primeiros românticos alemães. Entre filósofos e poetas, Fichte, Schelling, Schlegel e Novalis surgem como marcos originários da articulação entre crítica e arte no que se refere aos estudos empreendidos por Benjamin em seu texto de doutoramento. Segundo o estudioso do pensamento de Benjamin Márcio Seligmann-Silva (1993: pp.10-11), em texto introdutório da referida tese:
“Benjamin foi o primeiro a valorizar a teoria romântica da ‘Reflexão’. Este conceito está no centro desta sua tese. Benjamin define a crítica como um ‘medium-de-reflexão’... Na medida em que ele pôs este conceito no núcleo da sua tese, com todas as suas implicações de crítica ao modelo de teoria do conhecimento monológico ... ele trouxe à tona um debate - a crítica de um determinado modelo de razão e racionalidade.”
Nesse sentido, de acordo com Benjamin, toda obra de arte deve ser pensada como um núcleo de idéias ou como um “medium de reflexão”. Assim, só é obra de arte aquilo que for capaz de desencadear um conjunto de reflexões em direção ao desejo de conhecimento. Ou, como escreveu Schlegel - cujas concepções sobre a fundação de uma “razão densa e ardente” são analisadas por Benjamin com rigorosa atenção - num dos fragmentos que compõe “Conversa sobre a Poesia” (1994):
“A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua determinação não é apenas a de reunificar todos os gêneros separados da poesia e estabelecer um contato da poesia com a filosofia e a retórica. Ela também quer, e deve, fundir às vezes, às vezes misturar, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística e poesia natural, tornar a poesia sociável e viva, fazer poéticas da vida e a sociedade, poetizar a espirituosidade, preencher e saturar as formas da arte com toda espécie de cultura maciça, animando-as com as vibrações do humor.” (Schlegel 1994, p.99)
Em suma, a poesia romântica deve tornar-se filosófica e a filosofia deve converter-se em poesia. Nesse caso, “requer-se, para tanto, uma cabeça, na qual o espírito poético e o espírito filosófico tenham se penetrado no todo de sua plenitude”, acrescenta Benjamin (1993). Portanto, a crítica literária deve levar a obra à consciência de si mesma, “para tanto, esta nada mais deve fazer do que descobrir os planos ocultos da obra mesma, executar suas intenções veladas...”, ou seja, o crítico deve aperfeiçoar a obra de arte e, ao mesmo tempo, mostrar os limites da obra de arte. A rigor, para Benjamin, o crítico literário deve redescobrir a obra como ruína de potencialidades não concretizadas. Como muito bem observa Jeanne Marie Gagnebin (1993), na tese de doutorado de Benjamin encontram-se em gestação os conceitos fundamentais que percorrerão as obras benjaminianas posteriores, sobretudo “Origem do Drama Barroco Alemão” (1925), e um, dentre os conceitos benjaminianos, fundamental: o conceito de alegoria.
Fragmento: intuição do Romantismo. Em ensaio comemorativo aos 190 anos do 1o. número da revista-manifesto do Romantismo “Athenaeum”, o pensador francês Maurice Blanchot anota que, em Schlegel,
“... o fragmento parece com freqüência antes um meio de se abandonar por complacência a si mesmo do que a tentativa de elaborar um modo de escrever mais rigoroso. Escrever fragmentariamente é, então, simplesmente acolher sua própria desordem, se fechar em seu ego num isolamento pleno e assim recusar a abertura que representa a exigência fragmentária, que não exclui, mas excede a totalidade.” (“O ‘Athenaeum’”. Folha de São Paulo. São Paulo. 27 maio 1988. Folhetim, p.B-5)
Trata-se, então, da reflexão da poesia por si mesma. Da exigência da poesia em se realizar por sua própria reflexão, incorporando o fragmento como estilo poético. Sobre isso, diz Schlegel:
“ ‘Não posso dar de minha personalidade nenhuma outra amostra além de um sistema de fragmentos, porque sou eu mesmo algo desse gênero; nenhum estilo me é tão natural e fácil quanto o dos fragmentos.’” (Idem, apud Maurice Blanchot)
Fim, portanto, da constituição do sujeito universal, que garante o discurso clássico do “EU”. Por extensão, apagamento do sujeito do discurso, do conceito de sujeito, enfim, do conceito de identidade. “O exemplo de Proust, tantas vezes e tão diversamente interpretado, fascina. Há muito tempo que foi demonstrado, mas sem completo poder de convicção, que a biografia do Narrador de ‘A la recherche du temps perdu’ não é a de Marcel Proust”, salienta Jean-Yves Tadié (1992). Todavia, antecipando Proust, a poética fragmentada de Novalis já parecia isto bem revelar:
“O poeta conclui, assim que começa o traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos.” (Novalis. “Poesia”)
IRONIA ROMÂNTICA
Finalizando, consoante Jeanne Marie Gagnebin - em impecável tradução comentada do fragmento intitulado “Monólogo” -, para Novalis o verdadeiro sujeito é a língua: egoísta, caprichosa, odiosa, zombeteira, a língua zomba das pessoas sérias, induzindo-as a falar bobagens. “Esta auto-suficiência da língua constitui a sua essência ...”, ou melhor, explicita a essência da linguagem. Essa auto-suficiência da linguagem “acaba fatalmente por destruir o sujeito falante enquanto verdadeiro sujeito” do discurso. Assim, “aquele que fala não é senhor da sua fala, mas muito mais escravo da língua; não é autor do logos, mas seu objeto ...”. Novalis “afirma que não é o sujeito que põe o discurso, mas que o discurso que põe o sujeito”, ressalta Gagnebin.
No referido “Monólogo” de Novalis, lemos o seguinte:
“Para dizer a verdade, acontece uma coisa doida com o falar e o escrever: a reta conversa é um mero jogo de palavras. Só se pode pasmar diante do erro ridículo de as pessoas pensarem que falariam em vista dos próprios objetos. Precisamente, o próprio da língua, ou seja, que ela só se preocupa consigo mesma, eis o que ninguém sabe. Por isso ela é um segredo tão maravilhoso e tão fecundo - é quando alguém fala meramente por falar que enuncia as verdades mais deslumbrantes, mais originais. Mas se esse alguém quer falar sobre algo determinado, a língua caprichosa o faz então dizer as mais ridículas e disparatadas bobagens. Daí também o ódio que certas pessoas sérias têm à língua. Elas notam a sua resolução, mas não notam que a desprezada tagarelice é o lado infinitamente sério da língua. Se fosse possível fazer entender às pessoas que acontece com a língua o mesmo que com as fórmulas matemáticas - elas constituem um mundo para si, se entretêm apenas consigo mesmas, expressam nada mais que a sua maravilhosa natureza e, exatamente por isso, elas são tão expressivas, exatamente por isso se reflete nelas o jogo enigmático de relações que os objetos entretêm. Só através da sua liberdade são elas membros da natureza e só nos seus movimentos livres se exterioriza a alma do mundo, fazendo delas uma delicada medida, um traçado dos objetos. O mesmo se dá com a língua. Quem tem um sentimento sutil do seu dedilhado, do seu compasso, do seu espírito musical, quem percebe dentro de si a ação delicada da sua natureza interna e move a sua língua ou a sua mão segundo essa percepção, este será um profeta, em compensação, quem sabe bem tudo isso, mas não tem ouvido e sentido suficientes para escutá-la, este escreverá verdades como estas que estão lendo, mas a língua caçoará dele e as pessoas escarnecerão dele como os Troianos de Cassandra. Se creio ter indicado assim, da maneira mais precisa, a essência e a função da poesia, sei, porém, que ninguém pode entender isso e que disse algo inteiramente tolo pelo simples fato de querer dizê-lo, e que, dessa forma, não surge poesia alguma. Como ficamos, porém, se eu fosse obrigado a falar, se este impulso da língua para falar fosse o signo característico da inspiração e da eficácia da língua em mim, e se a minha vontade só quisesse aquilo a que eu fosse obrigado? Então sim, este texto poderia ser, finalmente, poesia sem eu nem saber nem acreditar, poderia ajudar à compreensão de um mistério da língua e eu seria chamado assim, a ser escritor, pois um escritor é nada mais do que um entusiasmado pela língua.” (Novalis. ‘Monólogo’. Tradução Jeanne Marie Gagnebin. In GAGNEBIN, J.M. “Sobre um monólogo de Novalis”. Cadernos PUC, v. 13 , p.75, [s.d.])
NOTAS
1. Referimo-nos às seguintes obras:
a) LOWY, Michael, SAYRE, Robert. “Romantismo e Política”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
b) ___________. “Revolta e Melancolia: o romantismo na contramão da modernidade”. Petrópolis: Vozes, 1995.
*AUFKLARUNG = ILUMINISMO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão”. Tradução Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1993.
GAGNEBIN, Jeanne M. “Walter Benjamin: os cacos da história”. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
MEYER, Augusto. “Textos Críticos”. (Org. João A. Barbosa). São Paulo: Perspectiva, 1986.
NOVALIS, F. von H. “Os hinos à noite”. Tradução Fiama Hasse Pais Brandão. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988.
___________. “Pólen: fragmentos, diálogos, monólogo”. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 1988.
SCHLEGEL, F. “Conversa sobre poesia e outros fragmentos”. Tradução Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1984.
TADIÉ, Jean-Yves. “O romance no século XX”. Tradução Miguel Serras Pereira. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 1992.
WEBER, Max. “Ensaios de Sociologia”. Tradução Waltensir Dutra. 5 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
verão de 2006