Antros de consumismo
"The space merchants" (Os mercadores do espaço) é um genial e volumoso romance de ficção científica escrito no início dos anos 50 por Frederick Pohl e C.M. Kornbluth (há uma edição brasileira de 1963, da extinta Edart). Com extraordinária presciência os autores imaginaram um mundo futuro (aproximadamente no ano 2050) onde o cidadão é considerado, principalmente, um "consumidor". E só o bom consumidor terá os direitos de cidadania. Cada pessoa terá um número tatuado no braço; as relações entre empregadores e empregados tornaram-se extremamente distantes, como no filme "Metrópolis", de Fritz Lang. Os funcionários abaixo de certa graduação não passam, na verdade, de escravos. Falar alguma coisa contra o sistema consumista - por exemplo, reclamar de um anúncio veiculado no avião que, além de audiovisual, é também olfativo - e para anunciar um desodorante exala cheiro de suor - é um ato suspeito, e o autor da reclamação pode ser tido como um mau consumidor, um subversivo.
Essa exacerbação do consumismo já pode ser sentida na sociedade atual, 45 anos após o lançamento de "The space merchants". Parece-me que o capitalismo - sistema aceito pela Igreja Católica, enquanto o comunismo é rejeitado - está sendo substituído por algo diferente. Poderíamos chamá-lo mesmo de "consumismo" ou mesmo "financismo", e se baseia em grande parte no cadastramento do consumidor, que antigamente era apenas o freguês. Outrora você ia numa loja qualquer de porta de rua, comprava um livro, um caderno, um cacho de bananas, meio quilo de carne moída, uma dúzia de ovos, e pagava com dinheiro. Se fosse morador da região e freguês habitual teria amizade com o açougueiro, o quitandeiro, a dona do galinheiro. Agora, não. Você vai numa loja de depaetamentos e compra a crédito, e para isso preenche uma ficha contando toda a sua vida.
E passeia, em fim-de-semana, não em parques mas naqueles locais fechados, cheios de luzes e vitrinas, conhecidos pelo estrangeirismo de "shopping-centers" (deveríamos dizer "centros comerciais") mas que eu apelidei "antros de consumismo". E em vez de pegar o sábado ou o domingo para ir na igreja, no centro cultural, no museu, na quinta, no Planetário, ou visitar parentes e amigos, a família vai ao "shopping". Esses locais hipnotizam os cidadãos, levando-os a gastar mais do que planejavam, a endividar-se. Vão comer nas "praças de alimentação" - tributo à gula - uma comida que é um canto de sereia. Pior: comida cara e nem sempre boa. Sucos artificiais, empadas repugnantes, pitzas mal feitas (e grafo "pitzas", assim com "t" de propósito , para evitar o estrangeirismo), sorvetes horrorosos. É em locais como o Rio Sul, o Iguatemi, o Norte Shopping que multidões se endividam com prestações e pagamentos em cartão de crédito e cheque pré-datado. O supermercado, monstro de uma fase anterior, enquadrou-se no monstro maior. Num pais pobre (leia-se povo pobre e em grande parte desempregado) esses templos de consumismo não condizem com a realidade. Para muita gente representam um vício perigoso.
Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 1998.
Nota: este artigo, creio que o primeiro que eu escrevi quando me recuperava da morte de minha mãe, foi publicado pouco tempo depois no jornal carioca Tribuna da Imprensa, e nunca mais republicado, sendo portanto inédito na internet.