Das Tragédias à Reforma Urbana
A cada ano que se passa mais tragédias provocadas pelas fortes chuvas acontecem. Esse ano foi o litoral norte de São Paulo. Nos anos anteriores foram as regiões montanhosas do Rio de Janeiro e assim sucessivamente as mortes acontecem às dezenas, centenas e milhares. A culpa é de quem? São extremismos das intempéries agravados pelos desequilíbrios climáticos. Podemos ficar com a consciência tranquila assim justificando e lamentar aos céus orando a Deus que venha em nosso socorro?
Essas tragédias vêm acontecendo de maneira mais intensa nas últimas décadas no Brasil. Os mais velhos hão de lembrar das famosas trombas d’água que derrubavam pontes e pinguelas, destruindo lavouras de arroz e milho, mas nada comparado com o que vem acontecendo nos ambientes urbanos dos tempos atuais. Confesso que não dá para ficarmos tranquilos com a consciência pseudo-religiosa que sempre atribui tudo às forças naturais e a Deus, talvez.
O governo anterior reduziu drasticamente as verbas para as áreas de Defesa Civil e Combate e Prevenção de Desastres Naturais. Dessa forma, chuvas torrenciais e consequentes deslizamentos de terra e inundações escondem a ausência de políticas públicas de habitação, saneamento básico e infraestrutura eficazes, deixando bem a clara a precariedade da articulação de políticas de prevenção de desastres pelos Estados e Municípios brasileiros. O Ministério do Planejamento e Orçamento enviou um projeto de orçamento pelo Governo Bolsonaro prevendo apenas RS 671,54 milhões para ações de prevenção e gestão de desastres. Era o menor em 14 anos. Onde foi esse dinheiro? Com certa probabilidade, para o orçamento secreto de distribuição de verbas para os senhores congressistas como troca decorrente do apoio político nas eleições.
O Governo atual foi obrigado a refazer o projeto ampliando para 1,17 bilhão com aprovação da PEC da transição pelo Congresso Nacional. Esse dinheiro é muito pouco para investir em obras de contenção de encostas, drenagem, estudos de área de risco etc. Mesmo assim, a verba atual é quase o dobro do que era previsto pelo governo anterior.
Nos últimos dez anos houve 245 decretações de Situação de Emergência e mais de 525.000 pessoas afetadas pelo excesso de chuvas. Nesse mesmo período foram a óbito 1.756 pessoas. Assim poderíamos descrever tantas consequências decorrentes desses desastres.
Uma verdade ronda as grandes tragédias naturais. Na Turquia e na Síria quem mais sofreu a dor dos tremores de terra foram os mais pobres. A engenharia que construiu os pequenos apartamentos dos pobres não foi a mesma que construiu as grandes mansões das camadas ricas. Os materiais usados não eram os mesmos sendo fácil prever que não suportariam grandes tremores de terra.
No caso brasileiro, essas tragédias decorrem da má distribuição de renda e do precário funcionamento das políticas públicas voltadas para o social. O fator mais agravante dessas tragédias chama-se desigualdade social. Esse é o grande extremismo e não os fatores de ordem natural. Não justifica o argumento de que foi o excesso de chuva calculado em 660 mm. Poderia ter chovido a metade e o problema seria o mesmo. Morar nos lugares de risco decorre de uma política agrária que expulsa o homem do campo, forçando-o a vir morar nas áreas de risco no entorno das cidades. Ou também pode ser a explosão imobiliária forçando os moradores das áreas planas a buscarem moradia nas encostas, como aconteceu em São Sebastião no litoral norte de São Paulo.
Já estamos cientes da necessidade de uma reforma agrária e muito já foi realizado. Contudo, é preciso pensar urgentemente uma reforma urbana. Quanto custa? Ela é urgente e necessária e será capaz de gerar riqueza e mão de obra, além do consumo no mercado. A reforma urbana poderia gerar muitos empregos com o incremento da construção civil, fortalecendo o motor da economia. Essa reforma está em sintonia com as políticas públicas para o reordenamento das cidades, democratizando suas estruturas e democratizando o seu acesso para as camadas economicamente necessitadas.
A reforma urbana começou a ser pensada no Brasil em 1960, integrada com a reforma agrária. Eram chamadas de “Reformas de Base”. Em 1963, o Instituto dos Arquitetos do Brasil elaborou uma proposta de reforma urbana, contudo foi sufocada pelo regime militar. Argumentava-se que a justiça social era pretexto para impedir o desenvolvimento econômico do país. Uma das instituições que mais colaborou nessa discussão foi a Igreja Católica ao lançar o documento “Ação Pastoral e o Solo Urbano”, em que se defendia a função social da propriedade urbana.
Este Documento foi publicado em 1982 na 20ª Assembleia da CNBB. A constatação da desigualdade é explicitada nos seguintes termos: “A especulação imobiliária, ao aumentar o preço do solo, agrava a situação habitacional do país e permite perceber uma característica fundamental na destinação do solo urbano: há solos para habitação, repartidos desigualmente entre as diversas camadas sociais, como também solos de especulação, estocados e ociosos, destinados a operações imobiliárias” (n.16).
Foi a partir da Constituição de 1988 que ficou mais fortalecido o Movimento Nacional pela Reforma Urbana tendo por base uma nova ética social onde a cidade é condenada como fonte de lucros para poucos em troca da pobreza de muitos. Nesse momento a crítica à desigualdade social urbana torna-se mais evidente, mostrando como se constituem as cidades em espaços para os ricos e outros espaços para os pobres.
É direito de todos os seus moradores o acesso à cidade. Assim, a reforma urbana se constitui na articulação e unificação dos movimentos sociais que vão além das circunstâncias locais das tragédias, abrangendo as questões nacionais. E envolve também uma crítica radical da desigualdade social espacial, da cidade dual (espaço dos pobres e espaços dos ricos). Em foco estão a justiça social e a luta pela igualdade de direitos. E mais ainda, torna-se urgente a constituição de uma participação democrática na gestão das cidades, superando os planos tecnocráticos dos especialistas.
Os Bispos do Brasil, no Documento acima citado, aprofundam ainda mais a questão denunciando uma “concepção privatista do direito de propriedade que garante ao proprietário como direito absoluto a faculdade de usar, gozar e dispor do solo urbano, visando exclusivamente à defesa dos próprios interesses” (n. 100).
Chegando ao momento atual das tragédias, podemos afirmar com certeza que foi a desigualdade que mais matou e não as chuvas. As mortes tinham cor, tinham escolaridade, tinham renda e estavam todos na base da pirâmide social. Quem mora nas encostas da Serra do Mar no litoral norte de São Paulo? São pessoas que trabalham nas casas de luxo e condomínios alpha Ville, migrantes expulsos do campo, pobres, negros, indígenas. Foram essas mesmas pessoas com seus esforços e, muitas vezes em mutirão, que construíram seus pequenos barracos, suas casas.
Os terrenos seguros para moradia urbana são todos proibitivos para essa população vulnerável. As famílias humildes moravam na praia onde hoje ficam os condomínios de alto padrão, as pousadas e hotéis. Essas famílias foram empurradas pela especulação imobiliária para as encostas de morros. As águas podem ter entrado nas casas dos ricos, porém foram os pobres que perderam suas vidas. Em toda grande tragédia considerada natural há uma história de desigualdade social.
Enfim, uma reforma urbana se refere ao direito à cidade. Isso significa poder participar democraticamente de sua gestão e participação, cumprimento da função social da cidade, garantia da justiça social e condições dignas para seus habitantes, subordinação de toda propriedade urbana à sua função social e previsão de sanções aos proprietários quando não for cumprida a função social da propriedade urbana e social.
Para a Igreja Católica, uma reforma urbana deve levar a cidade à condição de um espaço de convivência solidária. Porém, para isso é preciso superar inúmeros obstáculos jurídicos e políticos. A reforma urbana visa superar a situação de injustiça para “remir a cidade do estado de pecado social”. Trata-se de um conjunto de ações de cunho beneficente, caritativo, de justiça. E acima de tudo, uma reforma necessária para a sobrevivência de todos.