Vida compartilhada e perversidade
A modernidade foi sendo construída a partir de uma ideia cartesiana da afirmação de um sujeito como cogito apenas, “eu penso” absoluto sem nenhuma outra referência nem mesmo o mundo sensível uma vez que os sentidos nos enganam. Estava assim configurado um solipsismo nunca antes visto na história humana. Eu me basto. Desde que eu pense, minha existência já está configurada, definida, de modo absoluto. Caímos assim no mais forte dado cultural que determinou uma civilização, o individualismo.
 
Esse modo de constituir o conhecimento enfrentava um desafio, pois se há algo fundamental como princípio na ciência é a universalidade. Como pensar esse princípio se admito apenas a mim mesmo? Eu não tenho nenhuma garantia da existência de outro ser pensante, pois os sentidos nos enganam. E somente poderia saber da existência do outro mediante seu corpo. Mas nisso não posso me fiar. Portanto, não haveria garantia de conhecimento válido sem a satisfação do princípio da universalidade.
 
O próprio Descartes resolve esse dilema apoiando numa espécie de “ideia inata de Deus”, também absoluta, considerada uma res infinita. Deus então na modernidade cartesiana se constitui na garantia do conhecimento científico, pois é garantia da universalidade requerida pelos rigores epistemológicos. A modernidade nasceu religiosa, mas o seu deus está distante daquele que a Bíblia descreve permanentemente. O Deus da modernidade é uma deusa, ou seja, a própria razão. Pois quem é o responsável pela produção daquela “ideia inata”?
 
A modernidade nasce ateia. O Deus da Revelação jamais caberia nos limites da racionalidade cartesiana ou kantiana. Toda a teologia cristã produzida de maneira equilibrada e rigorosa pressupõe sempre uma trindade. Como essa ideia é tão cara à religião cristã! O Deus da Revelação é um Deus que compartilha de si mesmo através do Verbo que se fez carne. A Encarnação de Jesus não comporta um pensamento que se basta a si mesmo, uma espécie de cogito isolado. Jesus sempre se remete ao Pai e ao Espírito Santo. A vida divina é uma vida compartilhada. Isso não é apenas dogma de fé, mas realidade ontológica na constituição do mundo.
 
Não existe maior absurdo em termos filosóficos e teológicos a afirmação de um Deus acima de todos, pois ele se define no compartilhamento, na encarnação. Esse é o grande mérito do cristianismo, que o difere das demais religiões. O uso político de determinadas ideias religiosas não serve para a fé. Essas ideias são heresias para a fé cristã. Na verdade, nos dias atuais o que mais está presente nos discursos religiosos é um ateísmo explícito que nega o Deus revelado na Bíblia, apesar de falar intensamente nas Sagradas Escrituras. Pastores e padres ateus! Igrejas cristãs se tornam então centros de ateísmo. Hipocritamente elegem adversários como o espiritismo e as religiões de origem africana. Assim escondem falta de fé.
 
Voltando nosso olhar para a terra, podemos então nos perguntar: o que sou eu? Se eu estiver na via cartesiana, direi que sou um ser pensante, uma res cogitans. E novamente cairia no solipsismo ateu. O eu nunca existo como um eu isolado, mas como Eu-Tu, como um nós. A modernidade retirou o tu e colocou uma fantasia chamada de “ideia inata de Deus”. É preciso corrigir esse equívoco. Eu sou na medida em que o outro me constitui e vice-versa. E nós somos não a partir de nosso nascimento, mas a partir do que herdamos em sentido amplo das gerações passadas e fazemos avançar nossa história. Não somos únicos e absolutos e nem mera reprodução de gerações passadas.
 
Somos seres generativos, ou transgeracionais. Em mim carrego meus pais, meus avós, meus ancestrais, meu povo. Trago-os inclusive no meu corpo. Meu corpo também é compartilhamento generativo. As culturas são pródigas de exemplos e práticas inclusive religiosas que mostram essa herança psíquica, corporal, cultural. As ciências psicológicas já avançaram muito na compreensão do ser humano como um dado coletivo.
 
A superação da perversidade moderna que surge a partir do pensamento cartesiano somente será possível na medida em que nos colocarmos em posição de abertura para o outro, para o mundo e até para Deus. Somente assim aquelas pessoas que se dizem religiosas podem dizer que possuem fé e não fantasia. Deus em que acreditam será sempre um Deus entre nós, e nunca acima de nós, mesmo sendo transcendente. Não haveria a transcendência de Deus em termos cristãos sem a imanência do mesmo Deus.
 
Então o caminho para a salvação do mundo somente se configura de acordo com a realidade na medida em que a vida em sua totalidade se estruturar de maneira compartilhada. O capitalismo é perverso, pois não admite o compartilhamento. O outro morre na porta de nossa casa com fome. O que importa? Nem o socialismo escapa da perversidade moderna. O mundo será sempre mundo compartilhado e não como estamos nos apropriando, como mundo meu. A perversidade humana expande seu império sobre os rios, sobre as matas, sobre o mundo.
 
A perversidade humana se apropria do outro, dos corpos dos outros como os homens se apropriam cada vez mais dos corpos femininos. O feminicídio é a prova cabal da perversidade do homem. O macho acha que se basta e nega à mulher o direito à existência.
Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 09/10/2021
Código do texto: T7359794
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.