O animal de rebanho e o homem virtual

Infeliz aquele que acredita que a capacidade cognitiva, que nos diferencia dos outros animais gregários, é por si mesma capaz de nos desligar da atratividade que a vida em rebanho nos proporciona. Reproduzimos estas formas gregárias primitivas, quando buscamos nos grupos e conchavos um abrigo contra nossas contradições, limites culturais e complexos de inferioridade.

Não se trata de questionar a vida em sociedade, cuja complexidade não se compara às mais elaboradas por outros animais. Trato da forma como o agregamento, também chamado a grosso modo de “bolha”, nos permite esconder do relativismo, do diálogo e da necessidade de fundamentar melhor nossas verdades ou mesmo de rever posições confusas conflituosas sobre o mundo. A “bolha” nos poupa trabalho de discutir e explicar, além do fato de muitas pessoas mentido ou enganadas dar mais confiança e certeza do contrário.

Quando há muitas pessoas falando a mesma coisa e acreditando nas mesmas ilusões há algo além da sensação de estar certo. Encontra-se ali um conjunto de pessoas dispostas a agirem em torno de um objetivo comum que é sustentar a ilusão. Para isto elas concordam precipitadamente com as verdades uns dos outros, aceitam erros e contradições quando vem do outro e principalmente se elas se relacionam a crença comum.

Este comportamento de rebanho esta longe de ser exclusividade de uma ideologia ou outra. Se trata do fato de que regras comuns e a concordância quanto a elas serem fundamentais para a segurança e previsibilidade na vida social. O problema se encontra em outro ponto, quando nos dispensamos apressadamente da autocrítica e da necessidade de mudanças nos escorando em grupos e nos aprisionando em bolhas.

Algo muito ilustrativo encontramos nas redes sociais. O Twiter por exemplo tem um sistema de algoritmos que faz com um comentário seu em uma postagem de artista famoso, celebridade ou político apareça no topo ou próximo da listagem. Se o usuário prestar atenção na quantidade de “curtidas” e comentários anteriores ao seu, ele poderá se perguntar por que o seu apareceria nos primeiros lugares? E se para outro usuário que venha a comentar for o comentário dele a aparecer nos primeiros lugares?

Aquele que se aventura e perde seu tempo no Twiter já deve ter notado outras coisas. Você faz uma postagem, até relevante, e nem mesmo os que te seguem parecem visualizar. Enquanto coisas muito bobas encontram centenas de curtidas e rende inúmeros comentários.

Isto ocorre por dois motivos. Primeiro que algoritmo considerar a relevância do que você publica conforme o número de seguidores, ou caso você pague por uma divulgação maior de suas postagens. Se você tiver um número que eles consideram relevantes de seguidores, o programa entende que o que você publica é relevante e propaga mais o que você escreve do que aquele que tem menos seguidores ( que o algoritmo entende ser menos importante do que o daquele que tem muitos).

Resultado disto é que uma reflexão interessante sua terá menor alcance, do que um “Sextou, saindo pra caça hoje”. Mesmo que inicie uma discussão boa em algum tópico político, poucos verão seu comentário e terão a chance de participar, mesmo que seja do interesse delas. Como o programa coloca seu comentário entre os primeiros, na verdade ele não esta entre os primeiros para os outros. Pode acontecer de mesmo os que tiverem próximo a sua lista, seja aqueles que curtem e visitam comentários de teor parecido com o que você curte. Por isto, discordâncias, pessoas que curtem assuntos diferentes do seu, apareceram bem abaixo da lista quando aparecem.

Podemos pensar o Twiter como uma rede circular. Quanto mais próximo do centro, mais próximas e rápidas as linhas de transmissão para qualquer direção e sentido. Quanto mais afastado do centro, maio distância não só do centro como das demais periferias. Resultado: você receberá muitas informações do centro, poucas da periferia e pouco ou nada transmitirá nem para a periferia e muito menos para o centro.

Qualquer usuário de inteligência média percebe em certo momento que suas postagens não tem tantas visualizações quanto a de outros que sempre aparecem em sua linha do tempo (TL – time line). Ele acredita que sua linha do tempo segue algo como o que postou primeiro ou algo assim. Não, aparecerá um conjunto selecionado conforme número de curtidas, seguidores e postagens de usuários mais populares. Sua postagem aparecerá lá também, é claro, mas só para você e alguns se tiver sorte

Este usuário perceberá que postagens fúteis e menos inteligentes têm grande número de curtidas e retwitagens e as dele não. Vai perceber isto quando conferir quantas pessoas que visualizaram o que postou. Se o mesmo cair em si em relação a como o mecanismo funciona, ele sairá ou vai parar de levar a sério tal rede. Se ele se convenceu em algum momento de que o Twiter o dava algum espaço ou voz e se tornou emocionalmente dependente desta ilusão, ele irá pagar para ter maior divulgação e irá se deparar com outro problema.

O segundo problema é o da bolha. O Twiiter implica em dizer em poucas palavras e pouco tempo suas verdades e visões de mundo. Evidentemente, não dá tempo. O que você vai conseguir é emitir os sinais que o farão reconhecidos por sua ideologia e afinidades por algum grupo. No caso, quanto mais similar ao grupo quanto a ideologias e afinidades, menos preciso será explicar qualquer bobagem que venham a postar, menos contradição, menos necessidade de se justificar e maior questionamento de contradições e injustiças.

Quanto mais afinidade mostrar com alguma bolha lá dentro, isto é, quanto mais representar e ser fiel às suas crenças e convicções, maior número de seguidores. Note, não terá nada a ver com conhecimento técnico e acadêmico, mas sim com afinidades ideológicas. A bolha define o que é verdade ou mentira. É partir dela que definimos, quem esta de fora, como errado, maldoso, equivocado sem ao menos ouvi-los e tentar entender suas razões. A bolha deixa aparentemente tão claro que você está com a razão e ao lado da verdade, o rebanho reforça este sentimento, que qualquer discorde tomará por alguém alienado, idiota ou malicioso.

Por outro lado, dentro da bolha todos estão certos contanto que não rompam as crenças e ideologias básicas. Discordâncias dentro da bolha só são bem aceitas se servirem para aprimorarem o quadro, reforçar as ideologias e convicções, proteger de questionamentos perigosos (desagregadores).

Sim, há algumas pessoas que merecem a atenção e inúmeros seguidores. Mas lá raramente verá entre estes estudiosos, especialistas e pessoas realmente profissionais. Verá aqueles apoiados por outras mídias, formadores de opinião profissionais, marqueteiros políticos, fora o exército de fakes e bots que sempre surgem em discussões estratégicas para defender certo lado ou que se voltam para divulgar fake News, calúnias contra opositores e chacinar reputação de ex-aliados.

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O que sustenta as redes sociais? A maioria delas é gratuita. Toda vez que você vincula sua conta ao Google, Facebook, Twiiter entre outros você ajudar a alimentar uma enorme quantidade de dados sobre assuntos que você pesquisa, históricos que só se apagam na sua conta e nunca no registro deles, quando curte certas postagens, quando comenta certos assuntos, quando visita alguma página ou perfil. Tudo isto gera um banco enorme de dados, que ainda é pouco explorado em comparação ao volume produzido.

No futuro, todas estas informações serão ainda eficazes não só para criarem um marketing extremamente eficaz, para induzir você e seus filhos ao consumo, como também gerar conhecimentos valiosíssimos para marketing político, que facilitarão os políticos serem e dizerem o que você quer ouvir para obter seus votos. Te aprisionarão dentro de bolhas, onde tudo será harmônico com suas convicções, haverão muitas bolhas onde hospedar seus pensamentos e te manter lá por horas acessando, curtindo e comentando.

São redes que exploram vulnerabilidades comuns das pessoas, como o anonimato da vida moderna, te oferecendo uma falsa intimidade e proximidade com artistas e políticos. Para aqueles que têm autoestima baixa oferecem o atalho da aparência e exibicionismo do corpo, uma armadilha que piora o problema de pessoas com anorexia e outros distúrbios. Para os que se sentem isolados e sozinhos, oferece a falsa sensação de pertencer a um grupo virtual ou de ter realmente pessoas ali que te acompanham e se interessam por sua vida.

Para os que tem uma arte para mostrar e desenvolver, ele oferece a ilusão de que basta ter um meio de divulgação para se tornar conhecido – o que a rede não mostra é que sem fazer parte de um rebanho, sem dialogar com algum rebanho específico, um Monet ou Flaubert seriam os últimos na sua timeline.

Dificilmente se destaca sem dialogar com certo grupo social, vale para as universidades e suas famosas bancas de mestrado e doutorado, vale para um circuito artístico. Sua arte ou filosofia se encontra em um imenso mercado, como uma mercadoria útil, sempre foi assim. O problema nos dias de hoje é que a técnica e o esmero valem cada vez menos em comparação com o marketing e o agrado do rebanho.

Em outros tempos, para alguém se destacar da massa era preciso não só dialogar com certos grupos, como também se destacar técnica e intelectualmente. Poucas pessoas tinham oportunidades de divulgar, a seleção era extremamente dura e injusta (quantos gênios só foram reconhecidos após a morte?). Hoje temos uma massa anônima de produtores, escritores e demais artistas, para todos os gostos e níveis de inteligência. Não é preciso hoje se esforçar, aprender uma linguagem mais rebuscada ou conhecer outros universos para ter acesso a arte e ciência, você vai encontrar em algum lugar na internet alguém que fale dentro da sua bolha, sem você precisar sair dela.

Machados de Assis, Shakespeares, Bethovens e Monet’s ficariam presos ao seu tempo se naquela época houvesse redes sociais. No máximo seriam lidos, ouvidos e vistos de forma descontextualizadas, a partir de frases ou trechos isolados, como tanto acontece com Nietzsche e Clarisse Lispector. Mas por que ficariam presos? Simples, as gerações posteriores reconheciam o valor destes artistas e pensadores, mas sentiam que o contexto e a linguagem não eram os mesmos em que viviam. Então se esforçavam e estudavam para compreender estas expressões artísticas e filosofias e passavam a compreender não só as coisas do seu tempo, como também de outros tempos, o que explica o abismo entre a erudição de nossos tempos e daqueles tempos.

O que acontece hoje é que se um jovem ou adulto preguiçoso encontra uma literatura ou música que fale diretamente com sua bolha, ele não se esforçará para entender linguagens e expressões que demandariam o conhecimento do contexto histórico e artístico. Então eles se limitam não só ao próprio tempo, como também à sua bolha.

Este jovem ou adulto preguiçoso terá muito mais interesse em áreas profissionais que não demandam contextualização, significados e reflexão. Seus assuntos serão limitados aos grupos que de pronto concordem com suas ideias, evitando o debate, troca de ideias e tudo que venha a fazê-lo pensar para além de sua bolha. Isto por que terá grande dificuldade de sair do próprio mundo, de conhecer outras realidades.

Tudo isto fará com que as pessoas se isolem, mesmo diante de um enorme potencial de interação. Devemos lembrar que não só indivíduos se isolam, mas principalmente grupos e sociedades podem se isolar – quando se fecham em seu próprio mundo de significados. As tensões, as dificuldades de lidar com frustrações, mudanças, autoridades e relações de poder agravarão e despertarão muitos transtornos psicológicos, quando não a violência nas relações e criminalidade ( pois se não sabem dialogar e aceitar ideias díspares, terão que impor suas ideias ou submeter a dos outros).

Isto quer dizer que o Twiter será o responsável pelo fim do mundo? Não, o Twiter e as redes sociais representam bem o que temos de mais sofisticado quando o capitalismo se coloca o seguinte desafio: “O que mais eu posso transformar em mercadorias?”. No nosso caso, nossos gostos, fragilidades, carências e necessidades emocionais estão no mercado. Este processo não se iniciou com as redes sociais, na verdade eles são herdeiros da velha indústria cultural, mas a colocando em um patamar inimaginável de alcance e poder há pelo menos 20 anos atrás.

O que será o futuro onde maior parte das pessoas, confinadas nas grandes cidades, sem saber interagir, evitando interagir, isoladas em suas bolhas, terão que lidar com problemas emocionais cada vez mais frequentes, com pessoas com extrema com dificuldade de sair da própria bolha, de entender outros mundos e lidar com mudanças. Onde a empatia será vista como uma fraqueza, onde viverá em mundos artificiais e vazios, feitos para elas sem a necessidade de construí-los coletivamente e dentro das possibilidades.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 02/08/2020
Código do texto: T7024596
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