A Diferença e o Poeta
“Eu vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou.” (Cazuza)
Pode-se dizer que a Diferença implica em uma determinação, uma determinação da alteridade. Mesmo que a alteridade não implique nada em si, neste sentido pode-se determinar que uma coisa é diferente de outra coisa, por exemplo, na cor ou na forma etc. Porfírio incluiu a “Diferença” entre as “quinque voces” (cinco palavras), diga-se, entre os cinco predicáveis maiores.
Entretanto, o termo cunhado por Jaques Derrida – “Différance” –, uma corruptela da palavra francesa “différence”, introduz o conceito, como ele mesmo descreve, de “a origem estruturada e diferinte das diferenças” e a utiliza como sustentáculo teórico de um pensamento que apresenta um duplo significado: sincrônico e diacrônico.
Em sentido sincrônico, o que temos o jogo das diferenças que dão origem ao significado comum da palavra. Observemos com um pouco mais de atenção o sentido diacrônico, que é o que nos traz o objeto de interesse deste texto. Aqui, o que se observa é o movimento do diferimento temporal, seja ele de atraso ou de antecipação. Trata-se de um deslocamento contínuo da origem para um lugar e um tempo “outros”.
Quem mais aprofundou esse sentido conceitual foi, sem dúvida, o filósofo francês Gilles Deleuze ao desenvolver os seus conceitos de singularidade, acontecimento, do virtual e do atual.
Quando o poeta declara: “Eu vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou”, ele está passando a ideia de um movimento contínuo na busca de um autoconhecimento que, por alguma razão, está se mostrando infrutífera. Não por outro motivo ele sente as suas ilusões todas perdidas e que seus sonhos foram vendidos por valores tão baratos quanto incríveis.
Certamente Deleuze encontraria na frase do poeta uma forte instigação para o seu significado e trataria do tema com a profundidade que só a poesia merece. É necessário contextualizar que, neste caso, o virtual não tem o significado de hoje, em que representa algo que está fora da esfera da realidade física.
O virtual de Deleuze nos indica todo o rol de possibilidades que antecedem o ser, é tudo aquilo que o movimento do ser pode atingir, a partir do atual, para um outro atual. O virtual e o atual são, portanto, duas realidades que coexistem no ser. Vemos aqui o mesmo sentido de movimento impresso pelo poeta. O atual já foi antes um virtual. No caminho em direção ao virtual, chegamos a um novo atual, que vem a ser sempre uma virtualidade que se atualizou.
E o processo de atualização se dá pela singularidade, então não existe a possibilidade de duas atualizações idênticas. Vejamos o clássico exemplo do aprender a andar de bicicleta: cada forma desse andar de bicicleta se dará sempre de forma singular, e aqui está a residir o seu conceito.
É importante entender a descrição desse movimento do ser, pois ele não representa uma dualidade no sentido de coisas distintas e nem do binarismo de coisas que se opõem. É, antes, uma coexistência inerente a todo ser, a reafirmar que todo atual é a expressão de um virtual, e nunca idêntica, pois ela pode se atualizar de infinitas formas e maneiras.
“Conhece-te a ti mesmo” é a famosa frase inscrita na entrada do Oráculo de Delfos e comumente atribuída a representar a filosofia socrática no sentido que, para o pensador grego, conhecer-se é o ponto de partida para uma vida equilibrada e, por consequência, mais autêntica e feliz. Sem pretender polemizar, podemos afirmar que Deleuze abre um contundente debate com o pensamento socrático ao estabelecer, que cada etapa do conhecimento do ser abre uma infinidade de “virtuais” que podem se atualizar cada um a seu modo.
Até a repetição é diferida, posto que não existe uma repetição que seja a repetição do mesmo. Toda repetição guarda em si uma diferença. Nós repetimos para nos diferirmos. São tantas possibilidades que torna impossível chegar a termo. Com quantos galhos e ramos se forma a árvore do conhecimento?
É essa a angústia do poeta no seu verso. Na busca de saber quem ele é, enredou-se por um caminho tortuoso até vaticinar a sua desistência. O ser, a todo momento, está se diferindo. “Viver é diferir”, disse Gabriel Tarde. A cada patamar atingido pela pessoa humana como sendo o seu objetivo, maior o leque que se abre daquilo que ele não sabe a seu respeito. Vai na mão contrária do ser identitário.
Não há um problema nesse movimento. O que há é a consciência de que ele sempre trará algo novo e nisto consiste sua riqueza. Não é o objetivo final que deve ser considerado: nem objetivo e nem final. É o processo que importa.
Já pensaste nisto?