Cartas para Suzy
Domingo, como de costume, assistia ao Fantástico, um dos programas de maior audiência da TV brasileira. Uma matéria em especial chamava a atenção: ‘a condição de pessoas trans nas cadeias do Brasil’.
Reportagem bem feita, seguindo uma linha editorial convincente e como manda o figurino. À frente do assunto o doutor Dráuzio Varella, respeitado profissional e conhecido por popularizar a informação médica no Brasil, através de aparições em programas de rádio, TV e internet, abordando sempre temas importantes relacionados à nossa sociedade.
A pauta ajudava. Afinal, vivemos em uma época na qual rotular e apresentar personagens e exaltar as minorias garante resultados satisfatórios de audiência. As estatísticas também davam uma boa sequência de imagens. E o médico seguia um roteiro prévio, que extraía dos entrevistados boas histórias para contar.
A reportagem, que durou pouco mais de 13 minutos, terminou com um longo abraço, uma frase mal colocada, um sorriso de canto e olhos marejados. Os mais sentimentais, que assistiam ao jornal na noite daquele domingo 1º de março, também secaram lágrimas involuntárias que caíam por clemência da presa solitária, que, segundo disse, não vê amigos e familiares há alguns anos. Estamos falando de Suzy.
Logo depois do abraço, da ‘solidão’ e do apelo, a grande maioria dos espectadores foi às redes sociais – ato contínuo – parabenizar a emissora e o doutor que assumira a questão.
No outro dia, logo pela manhã, o Brasil foi tomado por uma onda de solidariedade com a personagem do dia anterior. Mobilizações que não se veem com frequência e que evidenciavam, como algum tempo não acontecia por aqui, o poder de uma plausível reportagem, com bons ‘atores’, excelentes sonoras, impecáveis perguntas e extraordinária edição. Tudo isso reproduzido em horário nobre na maior emissora de TV do país.
Uma das principais ações, que contou com vários adeptos, pedia cartas à desamparada presa Suzy. Foram centenas de telegramas entregues a ela, enviados de vários cantos do Brasil, de pessoas que sequer sabiam quem realmente era o destinatário.
Pouco tempo depois, a matéria ganhou ainda mais repercussão com a divulgação dos crimes que a vitimizada Suzy havia cometido. Ela está na cadeia, como todos já devem saber, por ter sido condenada por estupro e assassinato de uma criança de nove anos. Chegou-se à conclusão: Suzy não recebe visitas não porque está presa. Não foi abandonada por ser transexual, nem por sua cor de pele. Mas não recebe visitas, e não receberá por muito tempo, por ter feito o que fez.
O que realmente assusta e incomoda, especialmente a classe do jornalismo, é o desserviço prestado com a reprodução da reportagem da maneira como aconteceu. Antes de Suzy, os personagens expostos no Fantástico tiveram, todos, seu passado detalhado como introdução para iniciarem suas histórias dentro do contexto abordado. Algumas detentas estavam lá por roubo, furto ou tráfico. Apenas os crimes de Suzy foram ocultados, talvez por ela ser o ponto primordial da audiência sensacionalista.
Não consigo acreditar que a emissora e o entrevistador não sabiam com quem estavam falando. Afinal, a produção de um conteúdo como este requer conversas prévias com os entrevistados, que certamente, em algum momento, relataram os motivos de suas prisões antes de a câmera começar a gravar. Ou seja, tudo foi feito em plena consciência, determinando os passos que seriam seguidos até a exibição final.
O médico, aliás, até pediu desculpas em um vídeo que diz ‘não olhar para o passado das presas’, esquecendo o que a ética de um bom jornalismo pede, especialmente em se tratando de uma reportagem que diz exatamente a respeito da vida delas.
Por fim, foi uma pauta bem escrita e detalhada, que, com um abraço melancólico nos últimos minutos, jogou por água abaixo o que prometia ser mais um conteúdo digno de aplausos, entre tantos outros que Dráuzio e a Globo já fizeram.
Preferiram, no entanto, talvez por um questionável viés ideológico, dar voz em rede nacional à maior figura dramática que a emissora poderia encontrar nos tempos atuais: um cidadão preso, pobre, transexual e negro, seja lá qual for seu passado monstruoso.
Kallil Dib