ENTREVISTA: A presença de mulheres no cais e um porto cada vez mais igualitário

*Entrevista publicada em março de 2018 in PORTUÁRIOS - Jornal dos trabalhadores do Porto de São Sebastião

Por Karina Guedes -

A presença de mulheres nas áreas administrativas dos portos brasileiros vem de longa data. Porém, a operação portuária que historicamente trata-se de uma atividade legada aos homens, nas últimas décadas vem demonstrando avanços no que se refere a crescente participação delas. Participação esta que vem acompanhada das novas tecnologias em uso, trazendo novas oportunidades de desenvolvimento profissional para muitas trabalhadoras.

O Porto de Santos deu o pontapé inicial em 1994, depois de 102 anos de atividade, contratou pela primeira vez na sua história, quatro mulheres. O concurso atraiu na época 12,6 mil candidatos, dos quais 30% eram mulheres. Foi um marco na história portuária santista, abrindo assim os caminhos para as demais unidades portuárias no país.

Em 2015, foi a vez do Porto de São Sebastião. No concurso realizado nesse ano, três mulheres foram admitidas, uma estivadora, uma arrumadora e uma guarda portuária. Hoje o porto sebastianense conta com 160 trabalhadores avulsos, sendo três mulheres. No total a Companhia das Docas de São Sebastião emprega 11 trabalhadoras efetivas em diversos cargos, sendo duas na área operacional, uma conferente e uma guarda portuária. E mais quatro comissionadas, somando 18 mulheres ao todo. A presença de mulheres nas áreas administrativas já é algo mais comum nas atividades portuárias, a novidade foi vê-las no cais exercendo atividades operacionais.

A tecnologia empregada nas operações torna o trabalho um pouco menos pesado e mais técnico, exigindo não tanto força física e sim inteligência e capacitação. A força física se tornou uma característica dispensável e abriu portas para a mão de obra feminina em vários portos do país.

O estivador Newton Brigatti, analisa que o modo de ingresso foi fundamental para a presença de mulheres no cais: “Acho que a forma de acesso realizada via processo seletivo público foi preponderante para essa presença. Certamente, caso fosse realizado da maneira tradicional, dificilmente haveria hoje alguma presença feminina entre os avulsos...avalio como extremamente positiva a presença de mulheres no cais.”

=> A primeira estivadora do Porto de São Sebastião

Dentre essas trabalhadoras recentemente admitidas está Clarrisa Mansour, 29 anos. Ela é a primeira mulher estivadora do Porto de São Sebastião. A conquista deste espaço hoje ocupado por Clarissa é um marco na história das mulheres trabalhadoras da região. Ela conta que escolheu essa profissão porque queria trabalhar em algo que tivesse relação com o mar. Natural de Caraguatatuba, foi estudar em São Paulo e se formou em Design Gráfico, quando voltou e cursou Gestão Portuária na FATEC, em seguida se inscreveu no concurso para estivadora.

O trabalho de um estivador (a) é um trabalho operacional, os estivadores são responsáveis por organizar a carga dentro do navio. A operação se dá em diversas tarefas que são executadas em esquema de rodízio, fazendo com que todos exerçam várias atividades de maneira igualitária. Clarissa conta que o trabalho como estivadora é desafiador, porém gratificante. Considera também a forma de organização do trabalho na estiva ótima, por não se tratar de um trabalho monótono. “O trabalho no cais é tranquilo, um pouco pesado dependendo da tarefa, mas nada que desencoraje”, diz com segurança e satisfação.

Apesar do ambiente masculinizado do cais a estivadora diz não se sentir intimidada, pois se sente respeitada pelos colegas. Segundo Clarissa existe muito mais colaboração do que competição.

=> Um começo desafiador

A presença de mulheres no cais além de ter sido uma novidade para todos os trabalhadores, trouxe também algumas mudanças como a necessidade de vestiários para uso exclusivo delas. Situação que já havia sido pautada em uma reunião da CPATP em outubro de 2011 pelo estivador Amarildo, que cobrou essa necessidade e hoje o vestiário feminino é uma realidade no Porto de São Sebastião.

Clarissa relata que no começo era mais difícil, porque a presença de mulheres no cais era algo diferente para todo mundo e para ela foi também um processo de autoconhecimento, “a primeira vez que vesti o uniforme senti uma sensação diferente, era como se tivesse me transfigurado, olhei no espelho e vi outra pessoa. Mas ao mesmo tempo foi uma sensação muito boa”, diz.

De acordo com a estivadora a princípio havia um pouco de preconceito por alguns poucos colegas mais conservadores e outros que duvidavam que ela seria capaz de fazer determinadas tarefas, mas sempre enfrentou os desafios e aos poucos foi conquistando seu espaço e o respeito dos demais. Nesses momentos em que se via diante de alguma tarefa mais desafiadora, consultava os colegas mais experientes e às vezes tinha um ou dois que diziam para desistir, por achar pesado demais para ela. Mas ao mesmo tempo sempre tinha pelo menos um colega que a incentivava e era justamente esse quem ela ouvia. Ou seja, desde o início sempre pode contar com colegas que a encorajava fazendo com que ela não desistisse das tarefas mais desafiadoras.

Em relação a essa postura Clarissa analisa que os colegas que diziam para ela não se arriscar, não era nem pelo fato de ela ser mulher, mas porque às vezes a tarefa era muito pesada mesmo. Além de correr o risco de se machucar, tal tarefa poderia ser feita por alguém fisicamente mais forte, ou seja, uma questão de proteção e não de subestimação, na visão dela.

=> Um trabalho igualitário

Entre os estivadores a divisão do trabalho se dá pela capacitação e pelo tempo de serviço, os mais velhos e mais experientes acabam assumindo algumas tarefas que os mais novos não exercem ainda, mas à medida que vão se capacitando vão assumindo as tarefas igualmente, ou seja a divisão do trabalho não se dá por gênero e sim por qualificação para a função. Sendo assim a remuneração também é igualitária.

Para o estivador Newton, a necessidade de colaboração para a realização dos trabalhos em equipe contribuem para a desmitificação das questões de gênero, “No começo talvez todos ficassem mais preocupados e acompanhassem mais de perto as atividades, mas nada diferente de novos avulsos do sexo masculino... A meu ver, quanto mais o tempo passa e os trabalhos são realizados em conjunto, sobressaem-se as características individuais e a questão de gênero fica menor. Vale mais saber se uma pessoa é mais folgada, egoísta, encrenqueira, do que se é homem ou mulher. O trabalho no porto, por ser muitas vezes arriscado e perigoso, tende a unir as pessoas, mesmo com todas as diferenças que possam existir”, conclui.

=> Preconceito e assédio

Em relação ao preconceito Clarissa diz que sua família e amigos aceitam e admiram sua profissão, apenas sua mãe mostrou-se um pouco mais preocupada a princípio, mas nunca se opôs. Até mesmo seu atual companheiro apoia e incentiva a continuar na profissão. Ela relata que quando diz que é estivadora as pessoas ficam admiradas e curiosas querendo saber mais sobre o trabalho na estiva e como é trabalhar num ambiente masculinizado.

E sobre assedio ela diz que nunca teve nenhum problema a respeito disso com os colegas e se tivesse, teria reportado e as providências cabíveis teriam sido tomadas. Entretanto, às vezes ela ainda escuta uma piada ou brincadeira, mas leva na esportiva pois acredita que não são propositais, alguns colegas apenas deixam escapar pois não estavam acostumados com a presença feminina e à medida que vão se acostumando com a presença delas, as brincadeiras têm diminuído expressivamente.

=> Um horizonte feminino no cais

As mulheres vêm despertando a cada dia interesse pelo setor portuário no mercado de trabalho, consequentemente a presença feminina vem crescendo assim como a tecnologia empregada nas operações. A tendência é que essa participação cresça ainda mais daqui para frente.

A presença de mulheres como Clarissa em atividades operacionais do Porto de São Sebastião, é um exemplo de que cada vez mais as mulheres podem exercer funções que até então eram consideradas “coisas de homem”. Tais experiências nos mostram que as mulheres precisam mesmo é de oportunidades, pois coragem e disposição para encarar profissões desafiadoras elas já têm de sobra.

NOTA: O Jornal dos Portuários entende e vê como importante a presença de mulheres em áreas historicamente masculinas, lutamos contra o preconceito e defendemos a bandeira já cumprida no porto de trabalho igual e salário igual. Entendemos ainda, que piadas e brincadeiras preconceituosas não devem ser toleradas porque são expressão do machismo.

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Karina Guedes
Enviado por Karina Guedes em 03/01/2020
Reeditado em 09/11/2023
Código do texto: T6833127
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