A Construção da Modernidade
 
 
As certezas abandonadas.
O tempo humano, tempo do transcurso dos homens vivendo, é tempo que pede certezas do que fazemos. Viver não é um dado aleatório que garante a sobrevida apenas porque nascemos. A vida pede esforço para sua realização. Nesse esforço, inventamos modos diferentes de agir e reagir, de observar e empreender. Construímos certezas e nos beneficiamos de suas virtudes até que a vida aponte outras saídas e aí aquelas certezas que pareciam sólidas vão se dissolvendo, cedendo espaço para outros fundamentos.
A vida passa a ser uma sucessão de certezas abandonadas.
Ver isso acontecendo a partir do mundo grego é uma boa visão de nossa longa caminhada, é um bom esforço de síntese.
A sabedoria dos gregos antigos, 5 séculos antes de Cristo, ensina que tudo permanece numa imobilidade quase que plena por tempos indefinidos. As mudanças, quando acontecem, são de forma muito lenta e de tal modo isso se faz que pouco se percebe a diferença ou, como afirmou Miguel Spinelli, professor de filosofia antiga da Universidade Federal de Santa Maria — Rio Grande do Sul: “Tudo o que nasce está destinado a ser o que deve ser e não outra coisa [...]”.

Essa permanência dava tempo para que cada coisa fosse bem compreendida, experimentada e seguida: o mundo tinha seus limites conhecíveis e cada coisa e seres vivos (incluindo o homem), tudo tinha seu lugar natural, funções específicas e finalidades apropriadas, que, inter-relacionados, permitiam um bom funcionamento do todo universal.
Na sociedade, a longa vida das regras e dos costumes viram padrões, modelos, arquétipos, exemplos.
A consciência do bem-estar social tem como fundamento aquela certeza de que tudo (incluindo o homem) ocupa seu espaço natural, inclui em seu domínio funções específicas e suas finalidades apropriadas. Nessa garantia, o tempo é dissolvido, o antes e o depois não ganham qualquer importância, nada mais interessa a não ser a contemplação da própria grandeza.
Cada coisa vale pelo que é na sua feição duradoura.
No entanto isso, essas certezas foram abandonadas.
O modo grego de pensar cedeu espaço para as ideias cristãs por volta do ano 476, quando o Império Romano do Ocidente foi invadido pelas tribos bárbaras e destruído. Nesse período, a Igreja Católica passou a influenciar e dominar toda a sociedade europeia.
A Igreja era a única instituição organizada nos novos reinos que estavam se formando na Europa Ocidental. Em uma sociedade fragmentada, a Igreja católica garantia não só a unidade religiosa, mas também a unidade política e a unidade cultural. Com o controle da fé, a Igreja Católica ditava a forma de nascer, morrer, festejar, pensar, enfim, de todos os aspectos da vida dos seres humanos no mundo medieval.
Essa força inicial revolucionou o pensamento, anulando os fundamentos das ideias gregas, da salvação no bem-estar social aqui mesmo neste mundo. A Igreja se transforma na mais poderosa instituição de seu tempo.
O mundo agora é organizado por uma força fora do tempo histórico.
As regras de convivência foram dadas e nada mais restava a não ser tomar consciência de que somos criaturas submetidas a uma Vontade imutável e transcendente: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:1-14). O lugar adequado do homem é viver a vida social sabendo-se peregrino, um andante que deve buscar a nova salvação fora deste mundo, confiando que é desse modo e não de outro que deve agir: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar” (Mateus 24:35).
Na interpretação bíblica, todos nós somos iguais, porque irmãos, criaturas, filho de um Deus único: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28). Essa consciência de igualdade foi se ampliando no campo do direito e logo reclamada por outras instâncias do mundo cultural, artísticos e pelos reformadores das interpretações das escrituras, no que resultaram nas inúmeras reformas religiosas no final da Idade Média (século XV).
Novo posicionamento do homem diante de si mesmo e do mundo começava a ganhar corpo, associado à retomada das ideias clássicas greco-romanas, o que cria um forte choque com o mundo medieval e com os dogmas da Igreja Católica, valorizando significativamente as criações artísticas, literárias e científicas.
As certezas católicas foram abandonadas.
É nesse momento que acontecem as condições próprias para o desenvolvimento do Racionalismo, a explicação do mundo através de verdades estabelecidas pela razão. O homem se torna mais confiante em suas próprias forças, deixando de olhar tanto para o alto, em busca de Deus, passando a prestar mais atenção em si mesmo.
Há uma alteração da perspectiva da fundamentação do saber, isto é, transitamos da visão teocêntrica (Deus como centro, princípio, meio e fim do real) para o modo naturalista e humanista de viver o mundo.
O mundo, que está rompendo com a unidade religiosa, desenvolve uma perspectiva otimista ao prevê um futuro melhor para o homem no mundo histórico, retomando àquelas promessas da busca do bem-estar social já demandada pelas ideias clássicas do mundo greco-romano: explicação do mundo através de verdades estabelecidas pela razão.
Ganhou corpo a convicção de que tudo pode ser explicado pela razão e pela ciência, recusando em acreditar em qualquer coisa que não tenha sido comprovada.
A fé sozinha já não era garantia de ação.
O desejo de agir, de conquistar e de transformar o mundo utiliza agora o conhecimento produzido na sociedade humana. Nesse novo modelo de pensamento, a Terra não é um local de passagem e sim o único mundo real existente, lugar que há de ser prazeroso, por isso mesmo os fenômenos naturais devem ser conhecidos, a vida social deve ser organizada no interesse da proteção coletiva.
Estamos na modernidade.
Este novo tempo idealiza para os indivíduos uma igualdade de direitos e deveres, uma libertação das amarras da antiga sociedade. Não mais linhagens, famílias, comunidades, igrejas fornecendo de antemão os parâmetros para o pensamento e à ação do homem. 
Na modernidade, o novo desejo do homem é, como expressou o escritor alemão Goethe (1749-1832), em sua obra “Fausto”:
 
[...] ultrapassar as fronteiras do ser humano; aumentar continuamente o saber para tornar-se mestre e senhor da natureza (...); transpor as barreiras do espaço e do tempo, abarcar passado e futuro e — criando o mundo e a si mesmo — participar da nunca terminada obra da criação.
 
Vivendo por sua própria conta e risco, não há outra saída a não ser confiar na força da razão e procurar construir seu mundo e a si mesmo. Por isso, segundo o filósofo alemão Kant (1724-1804), é preciso ousar saber, romper com os limites, emancipar- -se, tornar-se senhor de si e caminhar, instituir suas certezas apontando para o momento glorioso à frente.
No século XVIII, o projeto da modernidade se estabeleceu de vez.
É a partir daí que a racionalidade ganha esplendor na conceituação dos grandes pensadores. A partir daí o pensamento “esclarece, clarifica, clareia, ilustra, ilumina”, como enfatiza a filósofa Olgária Matos, professora da UNIFESP (1948), em seu livro Discretas esperanças. A liberdade alcança degraus mais altos ao romper de vez com a tutela intelectual, política e religiosa que dominavam o corpo social.
Vivemos esses tempos!
E quantas alegrias e vitórias não foram alcançadas!
Quanto a ciência e a tecnologia cresceram!
E quantas conquistas da sabedoria humana floresceram!
E de tal forma isso se fez que um dos modernistas, Karl Marx (1818-1883) sentenciou: “Até o momento, os filósofos apenas interpretaram o mundo; o fundamental agora é transformá-lo”, fazer chegar a toda à sociedade os benefícios das conquistas do conhecimento.
A dúvida da certeza modernista começa.
A epopeia da modernidade, seus ganhos e perdas, sua curva ascendente e sua tragédia, seus paradoxos e antinomias estão comparecendo numa ebulição tão intensa no corpo social que fazem parecer que o rumo social está perdido.
O mito do homem moderno, do homem que busca dar significado a sua vida, perde força. A promessa de dar conta de seus próprios desejos, fundada na coragem de servir a própria inteligência, já não se sustenta. Aí está o mundo desencantado, fragmentado, sofrido, individualizado.
O homem moderno se condenou a ser um eterno insatisfeito?
Ou essa é a grande descoberta: a vida humana só adquire sentido no movimento constante, ela somente se realiza na ação?
O poeta português, Fernando Pessoa (1888-1935), lança luz a essa questão:
 
Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa;
e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se
torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.
 
As certezas são abandonadas porque a vida é movimento, é ação.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/08/2018
Código do texto: T6424626
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