Do espetáculo ao culto do prazer: formas de dominação social.

Introdução

Sob os inúmeros avanços tecnológicos e científicos que a vida pós-moderna proporciona, há indivíduos não apenas mais controlados - concretamente por seus corpos, como definiu Foucault sobre a modernidade ou como expôs Deleuze, referente ao controle virtual de nossas vidas - mas também são constantemente e, acima de tudo, instigados, estimulados pelo que mais move suas vidas, as emoções. De modo mais direto, o que os poderes coercitivos desenvolveram, para estabelecer a dominação social (a coesão), foi o massivo aliciamento do prazer.

Vivemos em um cenário de culto ao prazer- viva intensamente cada minuto da sua vida e depois descarte-o em busca de novos momentos intensos. Nossa sociedade, assim, seria um verdadeiro campo de batalha para os hedonistas(1), Epicuro e Aristipo. Aristipo de cirene se sentiria parcialmente certo de suas teses ao ver nossa sociedade exaltando tanto o prazer. Por fazer parte da escola dos cirenaicos(2), o filósofo, sustentava a ideia de que o prazer era o fim supremo da vida humana, deste modo, o homem deveria buscar todo o prazer e evitar a dor:

“A prova de que o prazer é o bem supremo está no fato de desde a

infância sermos atraídos instintivamente para o prazer e, quando o obtemos, nada mais procuramos, e evitarmos tanto quanto possível o seu oposto, a dor (LAÊRTIOS, 2008, p. 69).”

Seu único erro seria que, “quando o obtemos [o prazer], nada mais procuramos”, pois, diferentemente, nossa sociedade é extremamente imediata, tornando o prazer uma eterna e constante busca inalcançável, que não se limita em si mesmo.

Já Epicuro, mesmo que influenciado pelas teses dos cirenaicos, via as motivações do prazer com maior cautela, de modo que, se visse nossa sociedade notaria que embora exaltamos o prazer, este, nem sempre tem como fim a felicidade:

“Se aquilo que proporciona prazeres aos licenciosos pudesse livrar a mente das angústias que sofre a propósito dos fenômenos celestes, da morte e dos padecimentos e se, ademais, lhes ensinasse o limite dos desejos, não teríamos nada para repreendê-los, já que estariam imersos em prazeres sem nenhuma mistura de dor nem de angústia, as quais são precisamente o mal (EPICURO, 2010, p. 28).”

Pois bem, esta nossa devoção ao prazer não freia as angústias da vida pós-moderna, na verdade mais nos destina a elas, nos entrelaçando numa espécie de círculo vicioso de insatisfação constante.

Assim, para Epicuro, não temos sido destinados ao real prazer, mas para meros gozos momentâneos:

“Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos

aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos

sentidos,(...) mas ao prazer que é ausência de sofrimentos e de perturbações da alma (EPICURO, 1997, p. 43).”

Trago até a superfície deste texto, para iluminar o caminho que aqui o leitor interessado deseja percorrer, a luz desses dois “psicanalistas da era clássica” - Afinal, que fez Freud, se não questionar sobre nossos prazeres, tal qual Epicuro e Aristipo? - para iniciar uma reflexão em relação ao uso do prazer como um novo instrumento para o arsenal de controle social que o Estado e o mercado possuem. Deste modo, deixemos os clássicos e avançamos aos contemporâneos para que possamos notar: quais são as influências que a sociedade pós-moderna têm nessa busca incessante ao prazer movida pelos indivíduos? E como essas Influências criaram uma nova armadilha para o alienante controle social?

Em busca de refletir sobre tais questões, observamos duas análises sociológicas - Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord e A Sociedade Individualizada, de Zigmunt Bauman.

A Sociedade espetaculista

Ainda na era moderna de nossa sociedade, Guy Debord, notou a transição do modo de produção capitalista. - Que deixou de se limitar a exploração unicamente pela força de trabalho e passou a explorar, também, a parte final da produção: o consumo. Tendo, deste modo, a demanda de criar um cenário da ostentação e da aparência para incentivar o consumo, o indivíduo da sociedade moderna não bastava “ter” era necessário também “parecer” para se fazer superficialmente existente, na constituída sociedade do espetáculo:

“A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma busca generalizada do ‘ter’ e do ‘parecer’, de forma que todo ter efetivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última.” (DEBORD, 2003, pp. 18-9).

Segundo Debord, essa sociedade que destina os indivíduos a viver sob o “espetáculo”, não torna si própria espetacular, mas sim espetaculista, que não deseja constituir-se como um fim mas manter-se continuamente na história:

“A Sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo.” (DEBORD, 2003, p. 18).

Deste modo, o espetáculo torna-se mais um dos instrumentos de dominação, como expõe Debord:

“O espetáculo na sociedade representa concretamente uma fabricação da alienação. (DEBORD, 2003, pp. 26-7).

Como todo instrumento de dominação o espetáculo teve que se propagar pelas instituições e veículos midiaticos e atingir os corpos, mais precisamente as suas emoções - para estabelecer um modelo de vida social, que destina os indivíduos para si.

“Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. (DEBORD, 2003, p.15).

Estimulando nos indivíduos o constante desejo pelo consumo, a sociedade do espetáculo lhes trouxe a ideia de um cenário de vida superficialmente intenso:

“As ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiado e relançado por todos os meios de formação, propagam-se, assim, a grande velocidade. (...) [Com isso,] o fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitação fervente.” (DEBORD, 2003, pp. 49-50).

Mas sendo composto por uma extrema superficialidade, ou seja, sendo uma mera aparência - uma alienação, o espetáculo encobre as contradições sociais e com isso a realidade, tornando-se

“(...) uma permanente guerra do ópio para confundir bem com mercadoria; satisfação com sobrevivência, regulando tudo segundo suas próprias leis.” (DEBORD, 2003, p. 34)

Essa confusão que a sociedade do espetáculo desencadeia nos indivíduos, extrapola a dominação econômica e atinge com isso uma exploração da própria formação de suas consciências. Com isso, o trabalhador ainda tratado como mera força de trabalho - uma mercadoria que produz outras mercadorias - ganha nova roupagem na modernidade e:

“(...) é aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Então o humanismo da mercadoria toma a cargo os <lazeres e humanidade> do trabalhador.” - (DEBORD, 2003, pp. 33-4).

Além de afetar a constituição da consciência dos indivíduos, ou seja, de definir hierarquicamente o que são, esta devoção pelo consumo e pelo prazer que dele resulta, imposto pela sociedade do espetáculo, ainda nos individualiza. Fazendo com que:

“todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das <multidões solitárias>.” - (DEBORD, 2003, p. 25).

É neste a priori de dominação espetacular que surge a sociedade pós-moderna, da qual, obviamente não buscou sanar tais efeitos colaterais de sua dominação, mas sim torná-los mais extremos.

O imediatismo e a sociedade da ejaculação precoce.

Se pudéssemos atribuir a sociedade pós-moderna uma característica nova que lhe define, poderíamos seguir os sociólogos contemporâneos e admitir que é o imediatismo.

Neste novo cenário do “gelo fino”, onde tudo deve ser fluido e instantâneo para não quebrá-lo, o sociólogo Zigmunt Bauman, analisou as novas formas de relações sociais e os novos instrumentos de dominação capitalista, que a sociedade pós-moderna criou. Para permear esse gelo fino, criado pelo desenvolvimento do capital, nossa sociedade teve que se adaptar através de sua liquidez.

É a partir desse imediatismo que a sociedade pós-moderna impõe aos indivíduos, que os destina a uma desconfiança em relação ao futuro, limitando-os a buscar transformações objetivas à longo prazo:

“Por causa da evidente transitoriedade e vulnerabilidade de tudo (ou quase tudo) que conta na vida terrena, nossos tempos não são

hospitaleiros para a confiança nem, em termos mais gerais, para objetivos e esforços de longo prazo.”- (BAUMAN, 2008, p.196)

Com isso, o indivíduo pós-moderno, fica fechado no aqui e no agora, tendo a pressão social de aproveitar cada momento como se fosse o último de sua vida imediata, se sentindo imerso:

“Num mundo em que o futuro é cheio de perigos, [onde que,] qualquer chance não aproveitada aqui e agora é uma chance perdida; não aproveitá-la é imperdoável e não tem justificativa.“ - (BAUMAN, 2008, p.198).

Tendo assim, este cenário de movimento constante e instantâneo a vida do indivíduo pós-moderno se divide em uma série de momentos, registrados em páginas de redes sociais, carregando em si resquícios do espetáculo moderno, na sociedade pós-moderna:

“A vida fragmentada tende a ser vivida em episódios, numa

série de eventos desconectados. A insegurança é o ponto em que

o existir se desmorona em fragmentos, e a vida em episódios.” - (BAUMAN, 2008, p.202)

Esse modo de vida com que a sociedade pós-moderna modela seus indivíduos, atinge também as suas relações sociais, deste modo:

“Compromissos do tipo "até que a morte nos separe" se transformam em contratos "até que a satisfação diminua”(...)” - (BAUMAN, 2008, p.198).

E carregando consigo os critérios do consumo, desencadeados pela sociedade do espetáculo, as relações sociais são vistas:

“(...) como coisas a serem consumidas, não produzidas; estão sujeitos aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo.” - (BAUMAN, 2008, p. 198).

Utilizando ainda, como dominação, o desejo pelo consumo, nossa sociedade líquida, acrescenta-lhe a obsolescência, deste modo, consegue por muito postergar as crises de superprodução que é inerente ao desenvolvimento capitalista, mas desencadeia nos indivíduos uma satisfação sempre incompleta, para isso ela faz com que:

“todos os objetos de desejo ficam obsoletos e são deixados de lado antes que tenhamos tempo para aproveitá-los por completo.” - (BAUMAN, 2008, p.198).

Desta forma, a sede pelo consumo nunca cessa e a produção nunca para.

Sob essa satisfação sempre incompleta, a sociedade demanda dos indivíduos uma busca incessante para novos momentos de prazer, com isso:

“A constante abertura para as novas sensações e a cobiça

por novas experiências, sempre mais fortes e mais profundas do

que as anteriores, são condições sine quibus non de ser receptivo à sedução.” - (BAUMAN, 2008, p. 282)

É com este cenário que demanda dos indivíduos a satisfação inexistente, que a sociedade pós-moderna fundamenta seu novo instrumento de dominação e o seu novo artifício de coesão social, amenizando o policiamento e conquistando pela sedução os indivíduos pós-modernos:

“Hoje, a grande maioria das pessoas está integrada mais pela sedução

do que pelo policiamento, mais pela propaganda do que pelo

doutrinamento, precisa mais da criação do que da regulação

normativa.Quase todos nós estamos social e culturalmente

treinados e moldados para buscar e recolher sensações, mais

do que para sermos produtores e soldados.” - (BAUMAN, 2008, p.282) .

Esses indivíduos da pós-modernidade foram moldados para “recolher sensações”, com isso, todo o prazer que delas resultam, são meros gozos momentâneos que pelo seu imediatismo logo os destinam de volta a frustração e ao desânimo:

“Revigorados apenas por um momento, aqueles que buscam o prazer sensual logo caem na languidez e na apatia. Em outras palavras, a felicidade que proporcionam é

efêmera, os sonhos, autodestrutivos. Sêneca alertou: a satisfação

que chega mais rápido também é a primeira a morrer.“ - (BAUMAN, 2008, p.194).

Do mesmo modo que na sociedade espetacular, o desejo incessante pelo consumo, extrapola a vida social e atinge intimamente a consciência que o indivíduo tem de si, a sociedade líquida com sua demanda por prazeres e sensações constantes, extrapola a vida social e atinge, através do culto ao prazer, a vida sexual dos indivíduos:

“Todas as contradições inerentes à vida de um colecionador de sensações costumam afetar a vida sexual com um impacto concentrado(...)” - (BAUMAN, 2008, p.284).

Deste modo, ela:

“Impulsiona o colecionador de sensações pós-moderno a desenvolver plenamente o potencial de sujeito sexual.“ -(BAUMAN, 2008, p.297).

Com isso, o sexo, ou o prazer que ele proporciona ganha maior notoriedade em nossa sociedade pós-moderna, assumindo a função de modelo de satisfação, ele estabelece critérios às outras sensações que os indivíduos buscam:

“O prazer sexual é o auge das sensações de prazer; na verdade, um padrão pelo qual todos os outros prazeres tendem a ser medidos e do qual eles são, de comum acordo, apenas pálidos reflexos no melhor dos casos, e imitações inferiores e falsificadas no pior.” - (BAUMAN, 2008, p.284).

Estabelecendo sobre as relações líquidas da sociedade pós-moderna, o sexo então perde o caráter reprodutivista, afetuoso ou espiritualizado de outros tempos e resume-se ao prazer:

“Em sua expressão pós-moderna, a atividade sexual está concentrada estritamente no efeito orgástico; na prática, o sexo pós-moderno gira em torno do orgasmo.” - (BAUMAN, 2008, p. 284).

Desta forma, os colecionadores de sensações (indivíduos pós-modernos) adquirem uma nova pressão social, permeada em suas relações sexuais - que demandam-lhes constantemente o ápice do prazer, causando-lhes a busca incessante pela melhor atuação sexual:

“Sua tarefa suprema é fornecer um Erlebnisse mais forte, infinitamente variável, de preferência novo e sem precedentes; contudo, pouco pode ser feito nesse campo, e assim a experiência sexual definitiva permanece para

sempre uma tarefa para mais adiante e nenhuma experiência

sexual real é verdadeiramente satisfatória, nenhuma elimina a necessidade de mais treinamentos, instruções, conselhos, receitas, drogas ou aparelhos.” - (BAUMAN, 2008, p.284-5).

Esse modo de vida que tem como motivador dos indivíduos o culto e a busca incessante pelo prazer, desencadeia-lhes um abismo de insatisfação e angústia, que resulta na tão disseminada ansiedade. Deste modo, podemos caracterizar nossa sociedade como a sociedade da ejaculação precoce, do qual, os indivíduos não conseguem se satisfazer plenamente, já que seus prazeres são momentâneos e imediatos. Sendo, portanto, modelados com a ansiedade, “o desejo de sempre desejar”, o indivíduo, após atingir seu prazer efêmero e instantâneo, sente-se novamente frustrado e insatisfeito, e assim, como todo ejaculador precoce, o indivíduo pós-moderno busca novamente mais uma chance de mostrar a si mesmo o potencial de sujeito sexual, ou de colecionador de sensações prazerosas que possui, e que, a sociedade pós-moderna tanto lhe demanda.

Conclusão

Estamos, de certo modo, fatigados de saber que a sociedade alicerçada na produção capitalista é uma sociedade doente, como demonstraram-nos autores como Foucault, Deleuze, Debord, Bauman e entre outros, que explicitaram as feridas abertas da sociedade capitalista. Mas acima de trazer os diagnósticos dos efeitos colaterais que a dominação capitalista em diferentes épocas nos desencadeia, esses autores demonstram como essas mesmas feridas abertas, são o que garantem ao corpo social capitalista: o oxigênio para manter-se na história.

O capitalismo move-se justamente ferindo continuamente o seu corpo social, mais precisamente os indivíduos que dele fazem parte, assim, produz suas doenças e suas feridas para que os próprios indivíduos busquem seus momentâneos remédios e tornem-se dominados-dependentes .

Ao estimular meras satisfações instantâneas, seja pelo consumo ou pelo prazer, nos indivíduos, o capitalismo aumenta seu arsenal de dominação, destinando-lhes aos extremos da alienação.

Nós, indivíduos pós-modernos estamos sobrevivendo numa verdadeira roda de hamster, onde a sociedade do tempo imediato nos pressiona constantemente a correr; correr em busca do queijo da satisfação e do prazer que é solidamente inexistente.

Notas

1- Hedonistas - Filósofos da era clássica que seguem corrente filosófica do hedonismo, que possuía a tese de que o prazer era o bem supremo da humanidade;

2 - Cirenaicos - escola filosófica da clássica era grega, que estudava a partir da teoria do hedonismo.

Referências

BAUMAN, Zigmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Trad.: José Gradei, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad.: Railton Sousa Guedes, Coletivo Periferia, 2003.

EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo: UNESP, 1997.

________. Máximas Principais. São Paulo: Loyola, 2010.

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora

Universitária de Brasília, 2008.

Por, Johnny.