Entre a realidade fria e a virtualidade enganosa
A dimensão do sentido esta transposta para a dimensão virtual e do consumo. Quanto mais o mundo se tornou mecânico, frio e automatizado mais este espaço do sentido, cuja a necessidade não conseguimos ainda extirpar, migrou para áreas inofensivas e não produtivas.
Buscamos nas drogas, nos filmes e nas redes sociais o prazer que a competitividade, burocracia e inocuidade do trabalho nos tira a cada dia. Antidepressivos, doenças somáticas e vícios tentam nos tirar do trabalho que ao mesmo tempo nos mantém e no mata.
Áreas não produtivas no caso, não significa não lucrativas. Significa que se encontram de tal forma virtualizadas e idealizadas que não ameaçam o mundo da produção. No mundo virtual e do consumo posso me sentir um milionário, um piloto de avião, uma celebridade, um esportista famoso.
As plataformas digitais tem avançado neste sentido, de me proporcionar uma sensação cada vez real de ser algo que provavelmente não seria na vida real. O que me permite suportar a rotina burocratizada e sem sentido, já que com ela poderei comprar a simulação de uma liberdade e de um sentido que não poderia ter neste mundo sem quebrar certas regras ou sem me adequar a dura filtragem e seleção das peças certas para a engrenagem produtiva.
Algo acontece de preocupante nesta complementaridade, e não contradição, entre um mundo virtual e de consumo onde posso comprar o sentido e simular os sonhos que nunca realizarei. Quando mergulho neste mundo virtual e do consumo, faço minhas revoluções e guerras inofensivas para o mundo real, eu não estou me capacitando para quebrar as regras do mundo real.
Em outras palavras, fazer do mundo real um mundo de sentidos exige a chamada práxis, a relação entre teoria e ação, algo que se encontra divorciado na dualidade real-virtual em que vivemos. Assim toda vez que eu me revoltar contra o mundo, irei me manifestar e xingar no Facebook, sentirei que estou fazendo alguma coisa. Mas não estou.
Então toda a energia para a mudança e transformação é dirigida para um simulacro, onde meus socos, meus gritos e minha raiva se dirige para o vazio virtual - sem atingir ou transformar o mundo real. E o que é pior: sem aprender na relação prática e teórica com o mundo real a transformá-lo.
Me desculpem as palavras, mas tenho visto muito medíocres acreditando em conspirações comunistas e em nova ordem mundial. A não ser para alguns marxistas ortodoxos, que acham que o mundo parou no quinquênio final do século XIX quando Marx escrevia O Capital, a revolução se daria com a derrubada violenta da burguesia pelo poder revolucionário do proletariado.
Para quem enxerga que estamos no século XXI, sabe que o sistema se encontra de tal forma organizado e estabelecido que o discurso da modernidade, as chamadas grandes Narrativas, se encontram obsoletas. Nacionalismos, fundamentalismos, e tantos outros projetos ordenadores da sociedade se encontram no máximo na mão de alguns grupos marginalizados do poder.
O sistema social e econômico em que vivemos não necessita de grandes narrativas e projetos como o que representou os nacionalismos, comunismo e liberalismo para manter o povo coeso. O lugar de cada um se configura no trabalho que poderá realizar e o sentido para o que faz se define pelo acesso aos meios de consumo variáveis conforme o valor de seu trabalho.
As regras, as leis, a economia, as formas de trabalho se encontram de tal forma institucionalizadas que se parecem naturais e impessoais. Não vemos facilmente nelas poder ou ideologia, tudo se parece como derivado de leis naturais e além da vontade humana.
Este mundo impessoal não precisa de comunismos, liberalismos, nacionalismos ou fundamentalismos religiosos para funcionar. Pelo contrário, ele precisa o tempo todo se instrumentalizar e se desumanizar - travestir-se o tempo inteiro de regras naturais e impessoais.
A democracia tal como vivemos não escapa desta lógica. Vejo cientistas sociais tratando o Estado em termos funcionais, sem percebe-lo como construção humana e ideológica. Criar consenso, a igualdade formal, mecanismos de decisão não são mais do que formas de transformar a vontade e interesse de certos grupos em regras impessoais e lógicas.
A Guerra Fria acabou. A discussão contemporânea, verdadeiramente contemporânea, é sobre a liquidez das relações que vivemos e como ela deriva e funciona no sistema econômico e social no qual estamos atrelados da vida a morte.