Estamos no mesmo tumbeiro - alguns no convés e muitos nos porões
Ariano Suassuna escreveu na sua obra o Auto da Compadecida (1955) as palavras mais sinceras que já ouvi sobre a morte, “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.
Rubem Alves em O que é científico? (2009), conta que seu pai dizia que a vida até os 60 anos deveria ser de direito e o que viesse depois seria uma espécie de bônus. Confesso que aceito melhor a morte das pessoas que viveram até os 60 anos, mas tenho uma enorme consternação e sofrimento por aqueles que não conheceram nem mesmo os prazeres bobos da vida como completar 18 anos ou os gozos que duram átimos como o de uma boa foda ou o de acordar e perceber que está respirando depois de uma noite de crise asmática.
Todos deveriam ter a confiança/certeza de terminar o Ensino Médio cheios de sonhos, ter tempo de fazer a prova de direção quantas vezes fosse necessário pra dar aquele berro ridículo – passei! - na frente de um monte de estranhos, vibrar por entrar numa faculdade ou em fazer um curso na área que gosta, ter a alegria de chegar aos 30 anos e pensar: Putz! Que merda esse lance de vida adulta. Se aproximar dos 40 e se sentir realizado numa viagem de férias, abeirar-se dos 50 e ponderar: Caramba! Passou tão rápido. Chegar aos 60 e descobrir que há um bônus para viver mais e não se preocupar com nada além de aproveitar cada dia ao máximo – Carpe Diem.
Infelizmente a vida não é assim. A vida de cada pessoa é como um navio navegando em mares agitados e com um rumo incerto. É uma incursão ao inesperado, ao desconhecido. Como bem disse Fernando Pessoa em Prece, “Dá o sopro, a coragem – ou desgraça ou ânsia”, porque no fundo vivemos para desbravar os mares, para conquistar. Não é fácil seguir um caminho incerto, às vezes nos deparamos um mar silencioso, calmo, outras vezes agitado e feroz. Alguns momentos nos falta suprimentos básicos na viagem. Você sabe o que é ter tanta sede que dá vontade de saciá-la com água salgada? A vida é assim, cheia de calmaria e tempestades. E nem toda embarcação tem suportes necessários para prosseguir a viagem ao desconhecido.
Não bastasse as incertezas cotidianas imagina quando você, sua embarcação, encontro com um monstro que te suga para o escuro, para o vazio. Não há mais nenhum mar para navegar, não há mais nenhum segredo pra descobrir, não há mais sonhos. Acabou!
Minha mãe, uma mulher muito sábia que não chegou a viver o tão sonhado bônus, dizia que o ciclo natural da vida é o filho enterrar os pais e não o contrário. Dá para mensurar a dor que uma mãe ao enterrar seu filho? Dá pra saber o nó na garganta do pai em ter que escolher um caixão para pôr o corpo frágil de um filho?
Segundo dados da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), estima-se que a seca na Somália vai causar desnutrição grave em mais de 270 mil crianças só no presente ano. Não dá para prever quantos irão morrer por conta da seca. No ano de 2016 o mundo ficou estarrecido com as constantes violências e casos de mortes com as crianças Sírias. O pequeno Omran socorrido em Aleppo, banhando de pó e sangue, mostrava um olhar paralisado diante de uma guerra do qual ele era apenas mais uma vítima dentre tantas outras crianças. As feridas de Omran pareciam não incomodá-lo, ele simplesmente ficou atônito diante de tanta violência, de tanto sofrimento. Em 2015 a população mundial se sensibilizou com a imagem de Aylan morto por afogamento numa praia Turca. Ele só tinha 3 anos de idade. Não há crenças, valores ou ciência que abrande o fato das crianças do mundo estarem sofrendo de tantos maus-tratos, de tanta falta de cuidados em pleno século XXI.
Brasil, 1990, Chacina de Acari. Já ouviu falar? Vou trazer os nomes só dos adolescentes e jovens que foram sequestrados e mortos por policiais que queriam dinheiro e joias em troca da liberdade deles. Foram sequestrados num sítio em Magé, onde estavam passando um feriado, são eles: Cristiane Souza Leite (16 anos), Wallace do Nascimento (17 anos), Antonio Carlos da Silva (17 anos), Viviane Rocha (13 anos), Luiz Henrique Euzébio (17 anos), Wudson de Souza (16 anos) e Edson de Souza (17 anos). Onde estão? Cadê seus corpos? Que a histórica não se esqueça de contar o caso das Mães de Acari, algumas delas morreram sem nunca ter tido o direito de enterrar os restos mortais de seus filhos.
Infelizmente temos uma lista enorme de casos em todo território nacional envolvendo mortes de crianças, adolescentes e jovens negros pobres de forma violenta e trágica, na maioria dos casos tem o envolvimento de agentes de repressão do Estado. E o papel desses não seria proteger a população?
Brasil – teu passado te condena. Conforme estudos na base de dados do Sistema de Informações de Mortalidade – Ministério da Saúde, que copila informação desde a década de 1980, com base nos dados de 2013, pode-se afirmar que a morte por causa externa superam as naturais a partir do 14 anos de idade, ou seja, um adolescente de 14 anos tinha mais chance de morrer por causas externas (por arma de fogo, violência doméstica, violência nas ruas etc.) do que por causas naturais (doenças e outros).
Segundo o Atlas da Violência 2016 do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), aos 21 anos há um pico de chance de uma pessoa sofrer homicídio no Brasil. Se a pessoa for preta ou parda sua chance é de 174% em relação aos indígenas, aos brancos ou aos amarelos.
Quando você lê um post viral dizendo que “No Habbib’s a carne é negra – a mais barata do mercado”, é preciso entender que há todo um contexto histórico de violência contra o negro no Brasil e que ainda se perpetua nos dias de hoje. Se nossas crianças estão morrendo antes mesmo de chegar aos 21 anos, há algo de muito sério que exige participação de toda a sociedade no debate sobre morte com emprego de violência contra crianças, assim como, uma ampliação de debates e política públicas que garantam a qualidade de vida para crianças, adolescente e jovens pobres de periferias.
A morte de João Victor Souza de Carvalho vem trazer para debate algo que acontece cotidianamente. Seguranças de restaurantes e de outros estabelecimentos dão um “sacode” (quando não fazem covardias piores) na molecada que pede uns trocados para comer, que vende bala e até mesmo naqueles que oferecem um “trato” no sapato. Sem contar os pequenos furtos realizados por crianças e adolescentes em mercados que são “resolvidos” de forma violenta no próprio estabelecimento.
É preciso compreender que certas práticas estão envoltas de um contexto mais nefasto que é o abandono de nossas crianças a própria sorte. Quando vem a público, casos como o do pequeno João Victor mostra que todos os seguimentos da sociedade falharam e/ou falham com os “miúdos”. Estes precisam de suportes para chegar a uma vida adulta saudável tanto física, emocional, social e profissional.
Qualquer um que frequente a orla de Copacabana, a Cinelândia, o Calçadão de Nova Iguaçu ou qualquer outro local com concentração de restaurantes pode observar não só o esporros que eles dão nas crianças, como também alguns atos violentos. Mas o que você faz quando vê isso? Vira o olhar para outra direção? Fica feliz por não ter sua refeição interrompida por moleques baderneiros?
Fechamos os olhos todos os dias, talvez para não sofrer por depressão com todos os males do mundo ou talvez por achar que a culpa é dos pais, da escola, do Estado, até mesmo da própria criança.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), no Art. 18 diz: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” Todos temos o sangue de João Victor e tantas outras crianças em nossas mãos. Isso pelo simples fato que vivemos nos moldes de uma sociedade, mas não agimos como sociedade. Somos uma nação meramente consumista e com pouca humanidade.
No Centro do Rio de Janeiro a quantidade de crianças em situação de rua era assustadora no final da década de 80 e começo dos anos 90 e havia uma crescente onda de violência e extermínio dessas crianças, adolescentes e jovens. Recordo de grande impacto internacional que foi a Chacina da Candelária (1993). Eram pedintes no sinal de trânsito, pedintes nas portas da igreja, crianças tomando banho nos espaços público. Se buscarmos na memória lembraremos que os chafarizes das praças foram “secando” um a um. Uma das formas de inibir a população de rua foi retirar-lhes o acesso a água. Assim, as constantes investidas de assistentes sociais e grupos religiosos encaminharam muitas crianças, jovens e adolescentes para abrigos ou para seus lares de origem, garantindo o mínimo de segurança e condição de vida.
A criação do Conselho Tutelar, as políticas públicas direcionadas as famílias de baixa renda e outras medidas por parte do Estado foram colaborando para que esse quadro diminuísse. No entanto, o Brasil está um período de crise, melhor dizendo, sofrendo por constantes furtos/desvios dos cofres públicos e pela péssima gestão, o que tem ocasionado uma pressão maior na população mais pobre e uma desestabilização econômica e política. Isso tem se refletido no fechamento de escolas, hospitais, desemprego etc. Logo, também numa atuação maior das crianças pobres nos espaços públicos.
Ao pensarmos no ciclo da vida, nesse navio sem rumo, é preciso perceber que todo esse momento conflituoso, tanto na política, quanto na economia vem repercutindo/impactando nas gerações mais novas. E apelar para o discurso de diminuir a menor idade penal, que ao meu ver é uma falácia, um atestado de incompetência de todos os seguimentos da sociedade, não resolverá o problema imediato que são: desemprego, falta de escolas e hospitais. Trancafiá-los é a solução? Será que oferecer-lhes uma vida mais digna com educação, saúde, alimentação, moradia etc., onde pudessem ter perspectivas para o futuro, onde pudessem sonhar, não seria o melhor para toda sociedade?
O caso do João Victor (13 anos), que foi agredido por funcionários do Habbi’s em São Paulo (zona norte), e que veio a óbito depois de um infarto do miocárdio (aguardando laudo para comprovação) ainda está sendo investigado. Os laudos e imagens poderão colaborar para saber ao certo o que ocorreu. O episódio tem várias versões. A primeira, sustentada por Silvia, também catadora de material reciclado, como o pai do menino e confirmada por outras testemunhas, afirma que os funcionários do Habbi’s seguraram o adolescente pela gola da camisa, chacoalharam e deram um soco na cabeça dele, a outra versão sustentada pelos funcionários do estabelecimento é que clientes deu um soco na cabeça do João, há ainda a hipótese de João ter sofrido um mal súbito quando correram atrás dele.
João Victor de Souza Carvalho, 13 anos, adolescente, filho de pais catadores de material reciclável, usuário de lança-perfume (confirmado pelos pais), era conhecido na região por pedir esmolas e no dia 26 de fevereiro de 2017 encontrou-se com o único mal irremediável – a morte. Cumpriu sua sentença? Estaria o guri de 13 anos xingando e jogando pedras nos carros dos clientes? Será que o guri estava só pedindo um alimento? Imagens de câmeras mostram a criança segurando um pau, depois mostra o menino correndo dos seguranças e em seguida sendo levado por dois homens (pelo uniforme são funcionários do Habbi’s), está com a bermuda na altura dos joelhos e sem chinelos. Um corpo esguio, frágil e já sem nenhuma vitalidade sendo arrastado pelo asfalto molhado, sem esboçar nenhuma reação é jogado no chão como um pano velho. Os laudos e perícia irão informar a causa e forma como o adolescente morreu, mas o “por quê” todos nós já sabemos - preto pobre de periferia é a carne mais barata do mercado.
Publicado na Revista Outsider mar.2017