Pra Não Dizer que Não Falei das Mortes
De forma alguma tenho por objetivo esvaziar o significado e a gravidade dos atentados em Paris. Mas vejo que a preocupação e intensa cobertura dos jornalistas aos atentados não se deve à barbaridade, já que há muitas e até piores pelo mundo que não recebem a mesma preocupação.
A compreensão dos jornalistas a respeito dos fatos, incluindo suas limitações políticas, dá o teor da verdade. A ideologia do jornalista fica mais clara quanto mais convicção possui a respeito do que deve ser noticiado e de que perspectiva. E sua canalhice quanto mais procura a amenizar fatos graves ou acentuar fatos simples.
Não verão a mesma indignação, clamores pela civilidade e brados contra a barbárie, quando os mesmos estão diante de fechamento de escolas ou genocídios de jovens negros brasileiros. Os mortos na guerra civil na Síria também não merecem muita atenção. Nem mesmo na chacina promovida pelos mesmos motivos na Universidade do Quênia.
Mas por que os atentados em Paris merecem tal comoção pelos jornalistas? Crianças sírias sendo executadas não mereceriam a mesma atenção.
Isto por que os operadores do Estado Islâmico sabem que o rompimento com a normalidade gera notícias. Crianças africanas sendo escravizadas pra fins sexuais, não choca - as pessoas já esperam erroneamente que lá aconteça isto. Por isto quanto mais inocentes e imprevisíveis os atentados maior o choque a normalidade das pessoas.
A mídia se aquece com a anormalidade, as pessoas se preocupam com a ordem ameaçada e começam a se munir de informações... O rompimento de barragens construídas por renomadas empresas é algo do tipo "pode acontecer". Não chama muito a atenção dos jornalistas, que cobrem quase como uma obrigação chata - dada a dimensão do evento.
Avião sendo abatido ainda levantando voo no Egito, não gera o choque contra a normalidade, afinal trata-se do Egito, lugar onde "habitualmente" estes conflitos tem ocorrido. Enfim, tanto o terrorismo quanto a mídia utilizam como matéria prima os eventos que provocam o choque contra a normalidade.
O que me assusta nesta história toda é como no momento em que estabelecemos certas "normalidades" como jovens negros sendo mortos, desigualdades de renda entre brancos e negros, estupros, crianças pobres sendo mortas, o jornalista não consegue com convicção fazer destes fatos uma anormalidade e com isto, infelizmente, ter a dignidade de ter o interesse neste tipo de assunto.
Um garota inglesa perdida pelos pais em Portugal é uma quebra na normalidade que desperta o interesse das pessoas. Crianças que praticamente todos os dias se encontram desaparecidas, não são notícias.
A perversidade da mídia também é a nossa perversidade, pois o que nos interessa é tão valiosa ordem que nos deixa em paz e seguros. O sofrimento gratuito infelizmente é normal pra nós. O sofrimento valioso para grupos terroristas compartilha a perversidade conosco, evidentemente muito mais potencializado.
À mídia acrescentamos um outro agravante. Se o cidadão comum teme a anormalidade, a mídia tem o poder de produzir esta anormalidade e a normalidade.
Quando evita tratar da responsabilidade criminal da Vale, falando em acidente, ela ameniza. Quando não é notícia que os deputados que investigarão a Vale receberam financiamento de campanha da mesma. Quando não é polemizada a frase cafajeste do senador mineiro Aécio Neves: "Não é hora de apontar culpados".
Quando esquece a cobertura da tragédia de Mariana, para tratar o ocorrido na França - ela exerce um controle sobre a normalidade e influencia o público.