Senhora
SENHORA
Lembro bem que na minha infância, Dona Mercedes, minha mãe, tinha um ponderável acervo discográfico onde se destacavam músicas de alta qualidade, desde líricos, clássicos e também populares. Dentre tantos títulos, eu recordo “Señora” um dramático bolero cubano, não recordo o intérprete, cujo texto, traduzido diz, mais ou menos assim: “Senhora, te chamam senhora, todos te respeitam, sem ver quem tu és... senhora, pareces senhora, mas tu tens a alma cheia de pecados, falsa como és... senhora, és uma senhora, mas és mais perdida que as que precisam perdidas viver, senhora tu manchaste o nome, o nome de um homem que um dia em teus braços feliz tentou ser... senhora, com teu ouro de ti sinto pena pois não tens na vida nem Deus nem moral”. Na década de 50 esta música foi proibida no Peru, pois julgaram que ela se referia à mulher do ditador de plantão, cujo comportamento não era dos mais exemplares. Mais tarde o bolero foi lançado no Brasil, cantado pelo brega Waldik Soriano.
Muitos anos depois, eu já trabalhava na Caixa, quando cheguei à agência havia uma mulher sentada na sala de espera da gerência, certamente esperando para falar comigo. Era uma pessoa de uns trinta e poucos anos, de estatura meã, modestamente vestida. Não era feia. Tinha o cabelo bem preto, longo e grosso, como crina de cavalo, que com a pele morena lhe dava um toque de paraguaia. Ao chegar perguntei: “A senhora quer falar comigo?”. Ela respondeu afirmativamente, pedi que ela sentasse à frente da minha mesa. Como primeiras palavras ela disse: “Por favor, não me chame de senhora, eu sou china!” A palavra china, no Rio Grande, tem vários sentidos, inclusive o de prostituta. A mim chamou atenção a sinceridade humilde daquela mulher, diferente de tantas que tinham comportamento de china e tentavam vender uma falsa imagem de senhora grã-fina.
Ela queria um pequeno empréstimo para reformar e equipar sua casa, que as más línguas chamavam de “chineiro”, situada na periferia da cidade. Queria a verba para comprar umas camas novas, uma geladeira maior e outros quejandos inerentes ao ramo. Em pequenas agências do interior, o deferimento de empréstimos estava afeto ao gerente. Ela levou o empréstimo e mais outros posteriores, pagando a todos com invulgar pontualidade. Aliás, uma das classes que melhor pagam suas contão são as prostitutas.
Acho que a senhora, objeto dessa crônica, já deve ter morrido, pois era bem mais velha que eu. Mas, segundo soube, através de seu ofício rejeitado pelos moralistas e pelas senhoras da sociedade, formou dois filhos, um deles médico e ainda ajudou a muita gente.