O MAL BANAL
Os terríveis males da II Guerra Mundial, e dos conflitos posteriores, motivaram filósofos e escritores a retomar com intensidade a problemática do mal. Quem se notabilizou neste debate foi a escritora e filósofa política Hannah Arendt. Ela própria havia sofrido na carne as atrocidades contra o povo judeu.
Em seus primeiros escritos sobre os males do nazismo, Arendt recorre ainda ao termo kantiano do “mal radical”, embora interpretasse Kant a seu modo. Mais tarde, quando nos anos 60 vai fazer a cobertura jornalística do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, ela abandona o conceito do “mal radical” e cria a versão da “banalidade do mal”, como explicação para os males praticados por Eichmann, protótipo dos nazistas, e dos adeptos de qualquer outro totalitarismo.
Durante o processo em Jerusalém, Hannah Arendt observou que Eichmann havia sido um bom funcionário público, cumpridor da lei, respeitador dos horários, obediente às ordens dos superiores, um bom sujeito. Não dera sinal de ser um monstro. Pelo contrário, tudo levava a crer que era um homem normal, comum, superficial como tantos outros. Em seu escritório, como qualquer outro funcionário obediente, planejava e ordenava normalmente o deslocamento de massas de judeus para os campos de extermínio.
No decorrer do julgamento, Eichmann declarou, com toda naturalidade e sem sinal de remorso ou arrependimento, que a “solução final” – o extermínio dos judeus – fora implementada numa reunião comum de trabalho, de uma hora e meia, dos chefes da SS, ao fim da qual se serviram aperitivos e um almoço.
Frente a este homem comum, sem características de taras patológicas, confiante de que cumprira simplesmente com seu dever, Hannah Arendt se pergunta como Eichmann, e tantos outros homens comuns são capazes de praticar crueldades como as dos campos de concentração, das guerras e do dia-a-dia da vida. As tentativas de explicação do passado não ofereciam resposta satisfatória. O mal com que se confrontava objetivamente não provinha de demônios nem de monstros, nem parecia explicável racionalmente.
Perplexa, Arendt descobre-se diante de um mal “sem raízes”, um mal de superfície, sem profundidade, um mal banal. Mas como fora possível que indivíduos, e até um povo inteiro relativamente culto, como o povo alemão, chegasse a ser contaminado por tanto mal banal? Um mal que se espalhou com a rapidez dos fungos e das bactérias pela imensa superfície do povo?
Na busca de uma resposta, Arendt se lembra do pai da ética ocidental, Sócrates, que atribui a prática do mal à ignorância. A partir desta lembrança, Arendt propõe uma teoria sobre a “banalidade do mal”. Este mal é consequência da falta de exercício da faculdade de pensar.
Os totalitarismos ideológicos, de várias ordens, são capazes de burocratizar de tal forma os homens que eles simplesmente não exercitam mais um pensamento crítico. Ficam dominados por um esquema de vida em que o mal se torna normal, e se dilui nas funções sociais e profissionais. Eichmann confessa que não teria duvidado em mandar executar seu próprio pai, se assim lhe tivessem ordenado.
As reflexões de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, naturalmente, não se esgotam com a análise do “caso Eichmann”, ou da “solução final”. Eles são aplicáveis a todos os tipos de totalitarismos, geradores da carência do pensamento crítico. Totalitarismos na ordem política, religiosa ou cultural. Nos totalitarismos as pessoas são levadas a se massificarem. Alguns “lideres” assumem a função de pensarem pelas massas. As massas, simplesmente, obedecem. Na história não faltam exemplos de fundamentalismos totalitários, tanto políticos quanto religiosos. Observem os fundamentalismos absurdos de muitos pregadores em nossa mídia! O que, sem dúvida, é um perigo.
A teoria da “banalidade do mal” pode ser aplicada em todos os casos onde acontece o “mal gratuito”: sequestros, homicídios, roubos e furtos, torturas de toda ordem e crueldades racionalmente inexplicáveis, falta de sensibilidade social, corrupção e injustiças. No Brasil, com uma estrutura política, social e cultural, terrivelmente precária, com certeza, há muitos “Eichmanns” soltos por aí, tanto entre o povo comum, e principalmente entre “os que não se consideram povo”.
Para Hannah Arendt, o mal é tão difícil de ser compreendido e explicado porque ele é superficial, pois a racionalidade trabalha com as dimensões de profundidade do ser humano. Para ela, somente o bem tem profundidade. Dali a convicção de Arendt, a partir do processo de Eichmann, de que o mal não é “radical”, ele não tem “raízes profundas”. Ele é fruto da falta de exercício da faculdade de pensar. Por isto ela conclui que a “raiz” do mal é a carência de consciência crítica. Ou melhor, o mal não tem raiz. É superficial. Somente o bem tem profundidade.
A partir das considerações de Hannah Arendt, faço-me uma pergunta: uma “meditação sobre o mal” pode concluir alguma coisa?
Desde os primórdios da filosofia e da sabedoria se falou de diversos modos sobre a problemática do mal, sem que se chegasse a uma resposta satisfatória. Diante da óbvia constatação de que o problema do mal, e sua realidade efetiva, acompanham toda a história, e que não existem perspectivas reais de superá-lo, contudo a humanidade sempre alimentou esperanças de que o homem, por suas iniciativas, era capaz de minimizar os males.
O primeiro esforço sugerido pelos filósofos e mestres da sabedoria era progredir num autoconhecimento, que não deveria restringir-se a conteúdos conceituais, mas abranger todas as dimensões humanas espirituais e materiais da existência.
O ser humano terá que conviver com o fenômeno do mal em todos os tempos, pois o mal tem suas “raízes” no próprio homem. Mas o próprio homem poderá superar a “banalidade do mal”, na medida em que exercitar sua consciência crítica, buscando revelar a si e aos outros as dimensões de profundidade de seu ser. Antes de obedecer terá que examinar qual o conteúdo de sua obediência. Pois o que fizer com o que lhe é mandado é de sua responsabilidade individual.
O certo é que nem anjos, nem demônios poderão ser responsabilizados pelo bem que deixarmos de fazer, ou pelo mal que praticarmos. O fenômeno do mal é um fenômeno humano, e não de poderes infernais. O mal moral se efetiva pela vontade do homem.
Inácio Strieder é Professor de Filosofia – Recife/PE