Hoje, tentei me matar... Foi por indignação.
Hoje acordei pela manhã com um gosto amargo na boca. Senti-me impotente perante as notícias do mundo e de minha vida em si. Mortes sem sentido, fome por corrupção e desprezo pelo sofrimento alheio.
Há vinte anos venho tentando fazer o que me está ao alcance para o bem público, dentro de uma polícia suja e medíocre, onde os pobres são a bola da vez. Vi torturas, roubos e assassinatos de pessoas inocentes, sufocadas e maltratadas por quem teria obrigação de protegê-las. Mas de tudo, o que mais me estarrece , é o modo cínico do convívio humano dentro deste trabalho. Somos induzidos a ver este comportamento como normal. Isto é repugnante.
“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
Rui Barbosa
Sinto-me como se tivesse feito alguma coisa errada, ao denunciar a corrupção que assola a Policia Civil do Estado de Minas Gerais. Sinto – me repudiado pelos meus colegas e ignorado pelos meus amigos. Sinto a piedade de alguns e desprezo de outros. Sinto a corrupção como algo divino e seu repúdio como traição ao meio em que vivo. Uma áurea de indignação circunda meu coração e ao olhar para meu filho, meu pequeno herdeiro, me envergonho do mundo que estou a lhe deixar.
Aprendi em meu trabalho, o qual ele, imagina ser heroico, que é preciso ignorar o sentimento das vítimas e a ganhar ao máximo com a ingenuidade humana. Aprendi neste meio sujo e vil, que a sociedade nos é inimiga e que nosso trabalho é apenas limpar a sujeira que os “pobres e pretos”, deixam por onde passam. Inclusive os pretos que se tornam policiais.
Aprendi que não devo questionar a maldade e a corrupção de meus superiores, pois todas as minhas verdades não valem mais que uma de suas mais ínfimas mentirinhas. Aprendi que acima deles, a sujeira é ainda maior e que em uma mesa de vime preto, sentados todos em gordos corpos, tomam, com longos goles nobres, caras bebidas. E rindo-se em longos caninos dementes, demonstram para as honestas almas ausentes, serem inimputáveis pelos seus crimes.
Meu filho me sorri todos os dias pela manhã, esperando que eu volte com o dever cumprido, e que meu trabalho lhe garanta um futuro pacífico e seguro. Mas à cada dia volto mais frustrado e nervoso, sentindo o mundo desabar sobre meus ombros e com a certeza de que tudo é ilusão e desassossego do espírito e que nada que lhe prometo é verdade. Sinto-me um traidor de meu próprio desejo e um fraco perante toda podridão deste mundo maldito.
Hoje tudo ficou tão pesado em minha consciência, que não consegui conter minhas lágrimas. Meu peito parecia se contrair e apertava-me com extrema força o coração. Ao ver novamente todos aqueles sorrisos de hienas, que com falsos semblantes alegres, vislumbravam-me, dia após dia, em uma infindável repetição em horas, meses e anos de trabalho inútil e desonroso, a angústia me explodiu em prantos. Tentei esconder-me de tal vexame. Mas não me vi mais com forças para escondê-los.
Em um acesso de fúria, quebrei o que vi ao alcance. Quebrei canetas e copos, soquei com energia as paredes, com tanta força e coragem que fizeram riscos de sangue. Mas não era nem mesmo o começo. Pensava em minha arma na cintura, carregada com tantas balas potentes, que num piscar flamejante me aliviaria tal sofrimento. Queria matar todos eles, aqueles chefes malditos, corruptos, safados e imundos. Mas me faltaria tantas balas, para lavar tal chiqueiro.
Resolvi então me matar. Não suportando tal dor, levei a mão a cintura, saquei com todo o desejo. Mas uma mão me impediu. Era um dos poucos amigos que o destino serviu.
Fui desarmado e contido. Mas meu peito ainda apertado me impelia ao alívio. Eram tantas lágrimas juntas querendo pular de meus olhos. Imensa e densa angústia cegando todo o meu senso. Mesmo sendo afagado, me apoderei de um estilete. Num golpe profundo e certeiro, feri meu pulso na veia. Vi me escapar a revolta em sangue quente e vermelho, que junto com a dor e a cor esvaziou minha alma. Por um segundo aparente, senti-me leve e contente.
Depois de todo esforço, não consegui me matar. Chegaram todos correndo. Uns me continham em abraços e outros apenas me olhavam. Mas meus olhos em pálidos e sem vida, riscavam toda a sala, marcando cada rosto espantado. Num lapso de médium ensaio, li todas as mentes presentes com as mesmas e poucas palavras:
— Este aí já era. É mais um pobre coitado, que sucumbiu a esperança, de ver este mundo mudado. Nadou contra a corrente, achando que era possível, tornar heroica esta polícia que é mergulhada em sujeira. É fruto de um podre governo e administrada por porcos.