Famílias sem crises?
FAMÍLIAS SEM CRISES?
Tem gente que tem verdadeira ojeriza à palavra crise. Na verdade, toda crise traz consigo um problema e uma solução. A crise é, antes de tudo, uma atitude de perplexidade diante de uma situação anormal. Com origens no grego, xrisis quer dizer encruzilhada de opções, ocasião própria para um julgamento.
A crise introduz, num processo qualquer, algo de novo, porém incerto, que pode levar tanto a resultados positivos como negativos. Quando o homem viu que não podia atravessar rios e mares, surgiu uma crise. Havia duas alternativas; não cruzar a água, ou criar algo que proporcionasse satisfazer esse desejo. Depois de muito pensar, a crise levou os seres primitivos a inventar a canoa.
Por sua capacidade criadora, a crise faz cair o que está obsoleto e faz surgir novas posições e formas de vida. A crise sempre é uma apresentação de novas alternativas e novos julgamentos. A família é a instituição básica da sociedade, e portanto não permanece imune às crises da sociedade e do mundo. Essas crises exigem dela uma nova tomada de posição em relação ao seu papel e à sua missão no contexto social. Podemos dizer que a crise da família é proporcional à crise existencial das pessoas e à crise do mundo. Sobre as crises na família, achamos importante transcrever um significativo provérbio hindu, que diz,
Não há nenhuma árvore que o vento não tenha sacudido.
Adaptando o provérbio a este texto, diríamos, sem medo de errar que, não existe casa que não tenha sofrido o rigor das chuvas ou a ameaça dos ventos. Esses agentes externos são inevitáveis. A família humana, dentro de um contexto psicossocial, tem uma trilha, uma marcha histórica através dos tempos. Essa trilha, ao mesmo tempo em que faz uma remissão ao passado, projeta ao futuro. É na família que se forma o caráter e a consciência, com os pais exercendo função de mestres das atitudes ético-sociais de seus filhos. Um pai que permite que seu filho falseie a verdade é, no mínimo irresponsável. Muitos jovens, pelo testemunho deficiente ou negativo que percebem em suas casas, tornam-se contra a idéia de família como instituição sagrada, não poupando argumentos para apresentá-la como algo anacrônico, fora de moda, decadente...
Os saudosistas costumam dizer que a família no passado era mais estável. O problema do passado, quem sabe, é que, diante da crise, a posição era de inércia e acomodação. A crise ao invés de se solucionar, potencializava-se em um conflito latente, muitas vezes não-percebido, sob a mordaça da tradição, cultura e obediência. E o pior é que esse tipo de solução de crise, ainda impera até hoje, e é motivador de muita infelicidade no terreno familiar. A vida da família é ameaçada por muitos ventos e enxurradas, que poderemos chamar de elementos geradores de crises. Vamos relacionar alguns:
a) a rotina
A rotina, pela crise que deflagra, tem sido causa de ruptura de muitas relações matrimoniais. Lá pelas tantas as coisas ficam chatas, iguais, repetitivas, a gente perde até a vontade de discutir, e surge uma crosta de indiferença, o desânimo toma conta e, quando menos se espera, a relação torna-se inviável, pois o afastamento é maior que a aproximação;
b) vícios (fumo, droga, álcool)
Incapaz de enfrentar seus problemas, a pessoa vai buscar força nos vícios, especialmente na bebida e na droga. Aí, ao invés de encontrar solução, afunda-se cada vez mais, e não consegue sair sem uma ajuda especializada. O vício, seja ele qual for, dá uma sensação de falsa euforia momentânea, fazendo cair em profunda depressão, depois. Colocamos o fumo, por dois motivos: primeiro porque é sabidamente prejudicial à saúde; segundo, porque, quando um dos dois não fuma, embora no princípio o outro não reclame, aos poucos o contato fica mais difícil;
c) discussões e brigas
A discussão tem lugar privilegiado na ruptura do relacionamento de um casal. Dialogar é uma coisa, discutir é outra, bem diferente. O diálogo, palavra tão batida em nossos dias, mas de valor sempre atual, é a melhor solução para o ajustamento dos conflitos que surgem no decorrer de uma caminhada. É errado afirmar que não existem questões, problemas, crises. Existir elas existem. Quem dialoga tem condições de superá-las.
d) erotismo e pornografia
O erotismo e a pornografia, como são apresentados pelos meios de comunicação, são dois fatores extremamente desagregadores da família. Conduzem diretamente à infidelidade conjugal, pois mostram ou acenam com atitudes irreais, fantasiosas e falsas, capazes de induzir os espíritos desavisados de quem não possui um senso crítico formado.
e) falta de fé
Quando alguém não vê em seu matrimônio um sinal sagrado do amor de Deus, é evidente que existe ali, entre outras coisas, falta de fé. Essa falta leva os esposos a encarar sua relação sob a ótica estritamente material e tentar soluções pragmaticamente humanas, ao invés de buscar humildemente a ajuda de Deus. A arrogância e a auto-suficiência se contrapõem à humildade, e resultam na falta de fé. Ao contrário, à medida que a fé é vivificada, a graça de Deus torna-se uma constante no seio da família, e as crises são mais facilmente dissipadas e contornadas.
f) más companhias e maus ambientes
Freqüentemente pedimos “... e não nos deixeis cair em tentação...” enquanto, ao mesmo tempo, nos aproximamos de ambientes, pessoas e situações que podem nos induzir ou conduzir a caminhos diversos. Hoje é muito fácil, tanto o homem como a mulher, arrumar amigos ou amigas, conselheiros, terapeutas e gurus capazes de aconselhar a praticar o mal, a pecar, a ser infiel. Muitos irão chamar de covarde, retrógrado ou quadrado quem resiste a esses apelos. Covarde é quem quebra a aliança, com Deus e com o cônjuge. Identifique e fuja dos maus amigos e das más companhias.
g) falta de vigilância
A falta de vigilância é um relaxamento na postura séria e nos princípios rigorosos de ética e moral. A vida moderna, a liberalidade de costumes, as rotinas, tudo vai anestesiando consciências, e lá pelas tantas a pessoa, por falta de vigilância, cai fragorosamente. O exame de consciência, o julgamento crítico, o rigor consigo mesmo, levam a pessoa a manter um razoável estado de vigilância. Jesus advertiu seus discípulos, e adverte a nós, hoje:
Vigiem, portanto... (Mt 25, 13).
h) materialismo
Entediada dos valores morais, a pessoa passa a canalizar seu interesse para as coisas materiais, para o consumo, para a ostentação. As vitrinas das lojas estão cheias de apelos motivadores, capazes de excitar em qualquer um o desejo de comprar, de possuir. Nossa sociedade, nesse final de século, de inspiração neoliberal, tem no mercado, na riqueza e no consumo uma trindade maldita, que exige, insaciavelmente, sacrifícios diários e cada vez maiores. É comum, nesse tipo de sociedade, valorizarem as pessoas não pela bondade, inteligência ou capacidade de se comprometer, mas pela riqueza, pelo que pode consumir. A ambição, gerada pelo materialismo, torna-se uma fossa sem fundo, por onde naufragam os mais puros valores humanos.
i) dureza de coração
Nos Evangelhos, Jesus fala, em muitas oportunidades, no bloqueio de algumas pessoas em aceitar e praticar o bem, por causa da dureza de seus corações. Nos tempos atuais é crescente e alarmante o número de pessoas que praticam a iniqüidade por causa desse motivo. Há uns meses atrás, falávamos, justamente nessa dureza de coração, capaz de pôr a pique um casamento, a uma platéia composta de casais e jovens, quando alguém pediu: “Dêem exemplos de corações duros”. Juntando as idéias do grupo, chegamos a uma extensa lista. Vamos rever alguns daqueles fatores:
 alguém que não dialoga; briga, discute e
levanta a voz;
 a pessoa egoísta que só pensa em si;
 o dono da verdade; radical;
 uma pessoa que não gosta de trabalhar;
 quem é infiel, de pensamentos, atitudes e
no coração;
 alguém falso, incoerente, com falta de
autenticidade;
 a pessoa incapaz de perdoar, de acolher,
de servir.
Em muitos casos, crises simples e facilmente contornáveis, “por causa da dureza de vossos corações...”, têm se convertido em motivo para quebra da aliança matrimonial e conseqüente separação. Quais as razões desses fracassos? Egoísmo! Incoerência! Falta de espírito cristão! Em muitos casos, lares têm se desfeito, porque os esposos buscam soluções de onde elas não podem surgir, e se esquecem que
Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os
pedreiros (Sl 127, 1).
Isto equivale a dizer que, se os cônjuges não construírem seu lar sobre aquela rocha que é o amor de Deus, sua casa afetiva tem poucas chances de se manter de pé,
E foi grande sua ruína... (Lc 6, 49).
É triste ver uma família que sucumbe diante de uma enxurrada de crises. Em geral, quando se observa um casal infeliz, um lar desfeito, se pode dizer, com boas chances de acertar que, por detrás de uma família que experimentou um fracasso, está a ausência de Deus, seja no amor dos cônjuges, ou na participação sacramental e comunitária. Quando Deus não é presença real no seio de uma família, as crises tornam-se um fator constante, com a inevitável carga de sofrimentos, mútuas acusações, infidelidade, ausência de perdão, indiferença...
Quais as causas das crises tornarem-se supervenientes à possibilidade de ajus-tes? Muitas vezes, apenas uma: Deus, nesses lares, foi substituído pelo conforto material, pelos títulos profissionais, pelas honrarias humanas, pelo status, etc. Para vencer a crise há algumas pistas:
Que o ser humano não separe o que Deus uniu... (Mt 19, 6)
Peçam e receberão! (Mt 7, 7)
Perdoem e serão perdoados (Lc 6, 37)
Outra dica para espantar a crise: Que o casal nunca expulse de seu lar o Deus da Vida que os uniu em matrimônio. Existem outros perigos que podem gerar crises. Um deles é o chamado “demônio do meio-dia”. Na hora do almoço, quando a família devia reunir-se, conversar, trocar idéias, algumas pessoas resolvem assistir televisão, apresentar queixas ou iniciar discussões. Aí a casa vira um inferno.
Outro perigo é o “habito de Deus”. Deus é quadro na parede, é nome, talismã, mas deixa de ser prática, encontro, sacramento. Alimentados por um conforto humano que os torna cativos, certos corações são transformados em meros clientes de Deus, que se torna uma idéia longínqua, deixando de ser divindade, para se tornar uma simples crença, irrefletida, desorganizada. O ciúme é outro desses ”demônios”. Ele é como o sal na comida: pouco, fica sem graça; demasiado, estraga. O ideal é em quantidades normais, adequadas.
Em geral o ciúme, se de um lado revela amor (o ciúme adequado), em excesso, denota imaturidade e insegurança, como um medo de perder a pessoa amada. Em alguns casos aparece como um estado patológico de carência afetiva e insegurança psicológica que, via-de-regra, tem origem em problemas de rejeição na infância e até na gestação. A perda da auto-estima leva o ciumento não só a acreditar que a pessoa amada possa vir a traÍ-lo, como a esperar constantemente por isso. A falta de diálogo potencializa a crise.
Complexos, tanto de inferioridade como de superioridade, falta de hábito em dialogar, mentalidade tradicional, excesso de trabalho, vida social, tevê sempre ligada, preconceitos, tudo isso pode servir de bloqueio para o processo de diálogo. O diálogo propicia a revelação de ambas as partes. Em diálogo sempre temos o que crescer e aprender. Com o tempo, e dizemos isso por experiência, o hábito do diálogo transcende as palavras, e é possível, em algumas situações, dialogar por gestos e olhares. Até o silêncio, rico em expressões, é diálogo. Às vezes, um palavreado excessivo não o é.
Concluindo, repetimos: não existem famílias sem problemas, ou crises. A existência de discordâncias não é o que se pode chamar de fim do mundo, mas simplesmente reflete a individualidade de duas pessoas. Há quem procure negar, mascarar ou esconder suas crises debaixo do tapete. A crise em si não é o problema. O problema é não saber resolver a crise. Crises, nunca é demais repetir, todos têm. As crises são, de certo modo, inevitáveis como a chuva e como as ventanias. O que se faz contra essa intempérie? Consolidam-se os alicerces da casa, reforçam-se o telhado e rejuntam-se bem as paredes. Feliz é a família que, havendo se estruturado sobre a rocha que é Cristo e seu amor, consegue, por essa razão, superar suas crises.
Há quem diga que Deus nos dá os problemas que compreendamos o quanto precisamos dele. Uma sintonia de amor com Deus, nos dá a força, a coragem e o discernimento para enfrentar os problemas, inevitáveis na vida das pessoas e das famílias. Às vezes, quando se contempla a ruína de certas famílias por aí, é lamentável constatar que suas bases eram frágeis, construídas sobre valores falsos ou equivocados. Por isso caiu,
“... ela imediatamente desabou e foi grande sua ruína ...”
TESTEMUNHO
Nós tivemos, certa vez, uma crise séria. Por contingências profissionais, fomos para o nordeste. Lá vivemos durante cinco anos, trabalhando, desfrutando as maravilhas daquela natureza abençoada e participando de atividades eclesiais. Quando mudou o governo, houve a natural substituição dos cargos de confiança, e tivemos que retornar para o sul, no meio de um inverno, para nossa fria e chuvosa Porto Alegre. As crianças eram pequenas e não entendiam como podíamos deixar aquele ensolarado nordeste, com praia quase que todos os dias, para vir para aquele frio do sul. A mudança ensejou uma crise. Tivemos algumas discussões. O diálogo não foi o bastante para esclarecer certas posições e aparar devidamente as arestas. Num dia, era manhã de domingo, o Senhor nos falou. Estávamos na janela e escutamos um barulho estranho. Fomos ver o que era. Em cima do aparelho de ar condicionado, aproveitando o calor que dali emanava, um andorinha fez seu ninho; um grande número de filhotes piavam alegres... Estava dada a lição. Aquela residência que tinha calor suficiente para as aves do céu fazerem seu ninho, também teria o calor de um lar, se nós soubéssemos por onde recomeçar. A partir daquele sinal de Deus, recomeçamos, e chegamos, neste 2013 a 49 anos de casados.
As famílias cristãs não são aquelas que não têm crises, mas as que vão buscar, em Deus, o amigo que vai ajudar a resolvê-las. Só isso. Ou melhor, tudo isso!
O autor é, junto com a esposa Carmen, especialista em família, atuando em encontros, cursos de noivos, terapias de aconselhamento e seminários para casais. Escritor, com mais de cem obras publicadas, entre elas “Quer casar comigo?” (Ed. Paulinas, 1983), “A família Modelo” (Ed. Loyola, 1986), “A casa sobre a rocha” (Ed. Vozes, 2ª. edição, 1996) e Vivência e convivência!’” (Ed. Recado, 2012).