Vivência e convivência

VIVÊNCIA E CONVIVÊNCIA

Numa dissecação, rápida e acadêmica, podemos dividir o ser humano em inclinações, tendências, reações a estímulos, sensibilidade, carga genética e biótipo. Tudo isto, somado a outros caracteres e alguma ampliação intelectual, cria a individualidade da pessoa. Por causa dessa individualidade, a pessoa humana torna-se irrepetível. Para entendermos bem este assunto, devemos, então partir do princípio de que não existem, em termos de atitudes e reações, duas pessoas iguais: Joãozinho gosta de cinema e Maria Luíza de teatro; Pedro vai muito ao futebol, Neusa detesta; Jader é tímido, Marluce extrovertida. E assim por diante.

Deste modo, não é difícil constatar que numa união de duas pessoas, a primeira barreira que se verifica são as individualidades: cada um tem a sua. Não se pode, no entanto, confundir individualidade, que é o caráter distintivo da personalidade de cada um, com individualismo, que é uma distorção no comportamento, quando a pessoa entroniza sua individualidade, em torno da qual as demais devem curvar-se a amoldar-se. Sem renunciar às individualidades, as pessoas que se propõem a uma vida a dois precisam, pelo diálogo e esforço, procurar integrar anseios e buscas, para que as características de cada um, ao invés de desencadear conflito, gere convivência.

Os grupos sociais, as famílias e os casais, são formados por pessoas, semelhantes em sua condição de humanidade e diferentes nos aspectos físicos e principalmente psicológicos. Importante salientar essa diversificação, que é fundamental para o grupo, pois o torna vivo e criativo, e a soma dos aspectos positivos de cada elemento ajuda a dissipar os inevitáveis pontos negativos. A individualidade de uma pessoa é a formadora de sua personalidade. Se alguém é tímido ou extrovertido, por exemplo, é praticamente impossível que alguém consiga modificá-lo, pois isto faz parte de sua própria natureza e é marco da personalidade. Algumas terapias atuam como reeducação de determinados comportamentos. Sua eficácia, no entanto, é, em muitos casos, discutível, pois, se de um lado induz a um comportamento, de outro pode acarretar outras distorções mais graves.

É comum escutar alguém (equivocadamente) dizer: “Carlos agora é assim, mas quando nos casarmos, eu mudo ele”, ou “Deixe-a, por enquanto. Depois eu a coloco “nos eixos”, direitinho, como eu quero!”. Uma pessoa, com intenções de se casar, ao fazer uma declaração dessas, está dando uma cabal demonstração que escolheu a pessoa errada.

Falar assim é deixar claro que tem em mente um modelo de pessoa ideal e que pretende, depois que casar, transformar “essa coisinha amorfa” na viva semelhança daquele modelo, utopicamente imaginado. Este é, sem dúvida, um casamento com poucas chances de sobrevivência, pois haverá choque de personalidades e competição para ver quem vence o processo de domínio. Quem vencer será “o senhor”, e o perdedor “a coisa”.

Nesse processo de despersonalização, ao vencido caberá renunciar à sua individualidade para assumir aquele papel previamente desenhado pelo outro. Uma dominação assim, porém, nunca é definitiva. Ela dura, normalmente, a fase do encanto, que alguns especialistas situam entre quatro e sete anos de casados. Quando surge a rotina, os defeitos começam a aflorar, o conflito latente explode, há a revolta e, não raro, a separação.

As formas de explosão são as mais diversas: retraimento, desinteresse, frigidez, violência e traição. Não se quer dizer aqui que ninguém deva ceder em favor do outro. Amor é entrega e sacrifício, mas tudo dentro do razoável, com carinho, diálogo e reconhecimento de falhas e erros que devam, efetivamente ser mudados. Existe um ceder que se processa por amor, através de um recíproco entendimento.

Se existem igualdades entre homem e mulher, é igualmente claro que também existem diferenças biológicas, físicas e psicológicas. É exatamente esse conjunto de diferenças que faz surgir a grande atração de um pelo outro. Só Narciso queria amar uma pessoa igual a ele. Narciso é uma figura mitológica de um ser que se apaixonou por si mesmo. A psicologia contempla, sob a síndrome de Narciso, aquela pessoa individualista que só enxerga as suas virtudes e nenhuma nos outros.

Fisicamente, o homem é mais forte, embora há quem afirme que alguns temam mais a dor que a mulher; o homem, entretanto, agüenta a dor moral e a pressão psicológica melhor que mulher. No trabalho, o homem prefere tarefas mais planejadas e de volume, enquanto a mulher, em geral, gosta do improviso e tende à especialização e às minúcias. Ela é mais afeto e ternura...

Isso dá a ambos conotações comportamentais diversas e respostas distintas aos mesmos estímulos. É um erro esperar - como muitos hoje querem - respostas idênticas de constituições psicológicas diferentes. O ajustamento do masculino e do feminino exigirá sempre de ambos, atenção, dedicação e boa vontade constantes. Cada um espere encontrar-se no outro, e que o outro encontre em nós aquilo que espera. Assim, os dois encontrarão o verdadeiro sentido de uma vida a dois.

O amoldar-se não significa despojar-se de sua personalidade. É de bom alvitre a pessoa, para o bem da relação a dois, reconhecer sempre seus defeitos e os méritos do outro. Essa descoberta ajuda muito na hora das decisões. A adaptação e a con-vivência só acontecerá se for embasada no amor, no ceder-para-tomar, na boa vontade, no diálogo e na compreensão. Nesse particular, para o casal, não basta uma abordagem momentânea de seus problemas. É necessária uma análise mais profunda, que possibilite a pesquisa dos fatos desde onde eles nasceram. Mais importante do que julgar os efeitos é buscar as causas. Numa casa, dentro de uma família, de um lar, as pessoas não podem apenas viver, é preciso, mais que tudo, conviver.

Para uma boa convivência, dentro de um nível ótimo, é necessária a maturidade. Com esse atributo é possível encarar e resolver, responsavelmente, os problemas, as enxurradas que embatem contra o lar. Ser maduro é saber identificar e julgar alternativas. No entanto, o cuidado necessário é que maturidade não ocorre nessa ou naquela idade, nem, tampouco existem cursos ou postos de venda de maturidade. Só a vivência do verdadeiro amor, é capaz de dar maturidade ao casal.

O verdadeiro amor, em cuja fonte encontramos Deus, é aquele amor-aprendizado, onde pela observação dos méritos do outro e dos defeitos próprios, pelo diálogo e através do desejo de agradar, a pessoa vai conformando sua vida a do outro, sem perder seu referencial nem degradar sua individualidade.

A maturidade física impele os jovens ao encontro. Alguns casais jovens, quando sentem despertar em si a maturidade da natureza, predispondo-os à sexualidade, julgam-se inteiramente aptos ao casamento. Que engano!

Amor, sexo e segurança psicológica são fatores que têm que seguir uma relação harmônica, sob pena de total fracasso. A lucidez, a liberdade, a responsabilidade e o senso crítico, tão indispensáveis para a estruturação de um matrimônio, têm na maturidade, psíquica, afetiva e social, seu fator de desenvolvimento. Nessa contextualização, podemos notar que a pessoa madura dialoga e supera crises, enquanto que o indivíduo imaturo permanece embrutecido, discute, agride. É a maturidade psicológica que favorece a convivência de duas pessoas de culturas, padrões sociais e individualidades, às vezes tão distintas.

O diálogo e o carinho formam a base para a convivência e comunicação entre as pessoas que de fato se amam. O diálogo mostra a pessoa por dentro, favorece a confiança e aplaina os caminhos de uma família, às vezes tão desnivelados por problemas, externos e internos.