Carta 006 - A eutanásia é uma "boa morte"?

Carta 006

Assunto: A eutanásia é uma “boa morte”?

Um leitor de Belo Horizonte faz um questionamento ético sobre

a “eutanásia” a partir do desligamento – contra sua vontade –

de aparelhos de sobrevivência realizado em seu pai, idoso e

doente terminal. O ato foi realizado num hospital, por pessoas

da família.

Prezado amigo,

Paz e bem!

Diversos povos da antigüidade tinham por hábito (no Oriente, alguns têm até hoje) que os filhos matassem os seus pais quando estes estivessem velhos e doentes. Na Índia os doentes incuráveis eram levado s até a beira do rio Ganges, onde tinham as suas narinas e a boca obstruídas com barro. Uma vez feito isto eram atirados ao rio para morrerem. Nos países árabes os pais eram deixados no deserto; entre os esquimós, no gelo.

A partir de 1939 foi iniciado o programa nazista de eutanásia, sob o código “Aktion T 4”. O objetivo inicial era eliminar aquelas pessoas que tinham uma “vida que não merecia ser vivida”. Este programa materializou a proposta teórica da “higienização social” (ou faxina étnica) de Hitler.

Em 1954, o teólogo episcopal Joseph Fletcher, publicou um livro denominado “Morals and Medicine”, onde havia um capítulo com título “Euthanasia: our rigth to die”. A Igreja Católica, em 1956, posicionou-se de forma contrária à eutanásia por ser contra a “lei de Deus”. O papa João Paulo II, falando em nome da Igreja Católica, foi enfático em sua condenação: “Temos que denunciar mortes que ocorrem para aumentar a disponibilidade de material para transplantes, como retirada de órgãos sem respeitar os critérios objetivos e adequados de comprovação da morte do doador” (EV 15). É uma bandeira de todas as Igrejas Cristãs a defesa da vida, a partir do seu nascedouro, representado pelo momento da fecundação do óvulo.

O verbete eutanásia vem do grego, onde eú, (bom) + thánatos (morte) dão uma idéia de “boa morte” ou “morte feliz” isenta de dores e sofrimentos. A expressão eutanásia teria sido cunhada por F. Bacon († 1626) para caracterizar uma “boa morte”. No Brasil a eutanásia é considerada como sendo um homicídio doloso. Tanto assim que se encontram parados nas subcomissões da Câmara Federal, vários projetos para a legalização da “morte sem dor”.

O grande desafio da bioética moderna é conciliar o saber humanista com o saber científico na busca da felicidade do ser humano. Afinal parece ser este o objeto de desejo que buscamos da ciência: a realização de nossas expectativas de vida longa e saudável. No Catecismo da Igreja Católica, há vários textos na defesa da vida, contra aborto, manipulações genéticas e eutanásia. Cabe uma leitura atenta de alguns trechos.

2276 Aqueles cuja vida está diminuída ou enfraquecida necessitam de um respeito especial. As pessoas doentes ou deficientes devem ser amparadas para levarem uma vida tão normal quanto possível.

2277 Sejam quais forem os motivos e os meios, a eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas É moralmente inadmissível. Assim, uma ação ou uma omissão que, em si ou na intenção, gera a morte a fim de suprimir a dor constitui um assassinato gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu Criador.

O direito à vida é o valor mais importante do homem, pois constitui um princípio referencial às exigências éticas, às normas do direito, às práticas sociais e ao discurso das entidades voltadas para a defesa dos direitos humanos.

É imperioso defender a vida a qualquer preço, a despeito de quaisquer teorias pragmáticas, mesmo quando ela se fragiliza (infância, deficiência, velhice, doença terminal, etc.). Como ensina o professor G. Durand, “Apenas Deus é dono da vida, dirão os crentes. A inviolabilidade da vida, dirão os outros, é um princípio imediato, evidente, fundamental; não é necessário ser crente para acreditar nisso. Toda a negação a esse princípio apresenta uma tendência perigosa, como a experiência nazista assim provou”.

É lícito “desligar” os equipamentos de sobrevida? Este parece ser o tema central de suas dúvidas. Eu, como moralista (especialista em Teologia Moral) diria não!

A jovem americana Karen Ann Quinlan, tinha 22 anos de idade, quando em 15/04/75 entrou na emergência do Newton Memorial Hospital, de New Jersey/EUA, em estado de coma, em virtude de algum problema nunca esclarecido. Depois de dez dias, a garota foi transferida para o Hospital St. Clair, em New Jersey. Lá, seus pais adotivos, Joseph e Julia Quinlan, tendo as informações da irreversibilidade do caso e após conversarem com seu diretor-espiritual, Padre L. Trapasso, solicitaram, em 1o. de agosto, a retirada do respirador. O médico assistente, após ter concordado com a solicitação no primeiro momento, se negou, posteriormente, alegando a ética profissional.

Inconformada, a família foi à justiça solicitar a autorização para suspender todas as medidas extraordinárias, alegando haver, por parte da paciente uma manifestação anterior, que não gostaria viver mantida por aparelhos. Em despacho em novembro de 1975, o juiz responsável pelo caso, não autorizou a retirada dos aparelhos, baseando a sua negativa no fato da impossibilidade de confirmar que a paciente tivesse dado aquela declaração.

A família apelou para a Suprema Corte de New Jersey, que designou o Comitê de Ética do Hospital Saint Claire como responsável para estabelecer o prognóstico da paciente e assegurar que a mesma nunca seria capaz de retornar a um patamar aceitável de vida. O Comitê, que até então não existia, deu parecer de irreversibilidade. Em 31/03/76, a Suprema Corte de New Jersey concedeu, por sete votos a zero, o direito da família em solicitar o desligamento dos equipamentos de suporte extraordinários. Após isto, a paciente sobreviveu quase dez anos, sem o uso de respirador e sem qualquer melhora no seu estado neurológico.

Em 1995, ministrei, numa cidade do interior gaúcho, um curso intensivo (5 noites) de teologia sobre “vida após a morte” (escatologia). Num determinado momento do programa, para falar em após a morte, tivemos que definir a hora da morte, quando veio à baila o assunto morte encefálica (ME) e conseqüente desligamento de aparelhos. Uma religiosa que trabalhava na UTI de um dos hospitais da cidade, relatou que, por conta de um acidente de carro, uma moça foi declarada em ME, sendo recomendado pelos médicos que lhe desligassem os aparelhos e depois dessem a notícia do falecimento à família. A irmã de caridade resistiu à idéia, e os aparelhos não foram desligados como fora adredemente solicitado. Para não se alongar, a religiosa perguntou: “Sabem onde está a moça hoje? É dentista, casada e tem dois filhos”. Nenhum dos médicos presentes contestou o depoimento.

O homicídio involuntário (o agente não teve a intenção de praticar o ato danoso) não é moralmente imputável. Mesmo assim, não está isento de falta grave quem, de modo culposo (imperícia, imprudência ou negligência) age de maneira a provocar a morte, ainda que sem a intenção de causá-la. É indiscutível que as fronteiras biológicas estão sendo derrubadas, e por isto deve-se refletir sobre o papel do Direito na tentativa de evitar a utilização indiscriminada da ciência quando não ligada aos princípios éticos consensuais, oferecidos pela reflexão bioética. É imperioso buscar a proteção da vida humana e de suas características intrínsecas relacionadas à dignidade, inviolabilidade, e identidade do ser humano.

Na Europa e Estados Unidos já se falou mais em suicídio assistido, que nada mais é que uma forma (mascarada) de eutanásia. Hoje o assunto está em “banho maria”. Em alguns países ditos evoluídos, da América do Norte e da Europa, por exemplo, cresce a prática do suicídio assistido, em que o doente (ou a família) encomenda a um médico ou a uma equipe especializada uma “morte higiênica e indolor”. É mundialmente conhecida a atividade do Dr. Jack Kevorkian († 2011), um médico patologista norte-americano, que auxiliou mais de uma centena de pessoas a cometerem suicídio assistido ou eutanásia desde 1990. A repercussão mundial foi muito grande, porém os resultados de pesquisas de opinião surpreenderam pelo apoio dado a procedimentos deste tipo. Contudo estes resultados apontam para algumas questões que merecem uma maior reflexão moral. Instaurou-se o debate ético. Condenado em diversas ações nos Estados Unidos, Jack Kevorkian, que era conhecido como Doctor Death (o “doutor morte”) nunca chegou a ser preso.

Com referência à abreviação da vida humana, já em 1955, o papa Pio XII († 1958) se manifestou: “Não se pode interromper a vida sem uma sólida justificativa moral. E como a moral e a ética defendem a vida sobre todos os valores, não há ética em qualquer forma de interrupção da vida”. Ou seja, mesmo que houvesse justificativa para suprimir a vida, ela não seria ética.

Espero ter esclarecido suas dúvidas.

Deus o abençoe!

Antônio Mesquita Galvão

Especialista em Bioética – Doutor em Teologia Moral