Infância, resiliência e escravidão no contexto brasileiro

Introdução

A palavra resiliência origina-se do latim, resílio, re + salio, que pode ser traduzido como ser elástico. Surgiu no cenário científico moderno compondo o vocabulário da Física e da Engenharia. Um dos primeiros porta-vozes deste conceito foi o pesquisador inglês Thomas Young (1807), nas suas investigações sobre a relação entre a força que era aplicada a um corpo e o nível de deformação produzida. Outro pesquisador, Silva Jr. (1972), denomina resiliência de um material a energia de deformação máxima que ele é capaz de armazenar sem sofrer deformações permanentes.

A utilização do conceito de resiliência nos espaços psico-médico-social é novo, pouco mais de vinte anos. Esta transposição, inicialmente, aconteceu de forma mecânica, desconsiderando a complexidade intrínseca à existência humana. Eram considerados indivíduos resilientes aqueles que, como uma bola de borracha ou uma verga de aço, seriam capazes de sobreviver a prolongadas situações de estresse sem apresentar qualquer tipo de dano definitivo em sua saúde emocional ou competência cognitiva. Atualmente, embora esta concepção ainda seja freqüente nos estudos da área, o conceito tende para outras dimensões, menos deterministas e mais atentas às condições sociais que propiciaram emergir o fenômeno.

A escravidão negra no Brasil foi à base das relações de trabalho durante os períodos colonial e imperial. O tráfico que alimentou o desenvolvimento da escravidão dos africanos, contudo, não lucrou com o comércio de crianças negras. Entre as poucas crianças que embarcavam na costa africana, menor era a quantidade das que sobreviviam à travessia do Atlântico até o Brasil. Trinta e cinco dias durava uma viagem de Angola até Pernambuco, quarenta até a Bahia e cinqüenta até o Rio de Janeiro. Isto quando os ventos não cessavam, prolongando a viagem por meses. Existem registros de travessias que duraram até cinco meses. Os índices de baixas eram altos, podendo chegar até a 50% do total da carga de escravos. Os historiadores contemporâneos concordam que, em média, as baixas eram em torno de 20%, Mattoso (1982, p. 48).

Escravidão e resiliência são conceitos que, em primeira instância, parecem inequivocamente entrelaçados. Contudo, ao aproximar as lentes, a reconstrução do cotidiano dos escravos negros no Brasil não traz a baila uma história de horrores, marcada por castigos extremos e trabalho exaustivo. A relação entre senhores e escravos é muito mais complexa, não se limitando a um mero jogo de dominação, mas também de uma rica rede de alianças. O foco central deste artigo é a realidade das crianças escravas nascidas no Brasil e moradoras em áreas de engenho. Pretendo estabelecer um diálogo entre escravidão e resiliência, tendo em vista problematizar a noção de risco social no cotidiano destas crianças.

I – Escravidão no Brasil

A escravidão é uma categoria social que pode ocupar diferentes lugares na dinâmica de uma sociedade, não representando necessariamente uma força produtiva. Mesmo exercendo uma função produtiva, a escravidão pode aparecer de maneira mais ou menos acidental e ser meramente acessória de relações de produção de tipo diferente. Segundo Gorender (1980, p. 60), quando se manifesta como tipo fundamental e estável de relações de produção, a escravidão apresenta dois modelos básicos de representação: o escravismo patriarcal e o escravismo colonial.

O escravismo patriarcal desenvolveu-se na Antiguidade Clássica na Grécia e em Roma. Caracteriza-se pela existência de uma economia predominantemente natural. Neste modelo, a produção volta-se para o consumo na própria unidade produtora. No escravismo colonial, que surgiu com a colonização das Américas a partir do século XVI, temos uma economia agro-exportadora, voltada para alimentar um mercado de consumo que se localizava fora das unidades produtivas. O trabalho escravo aqui é peça de uma engrenagem maior, o sistema mercantilista, que envolvia o comercio ultramar estabelecido entre áreas colonizadas em centros hegemônicos localizados na Europa.

A condição primordial do ser escravo é de ser propriedade de alguém. Segundo Gorender, (1980, p. 62) a escravidão assume sua forma completa quando decorrem dois derivados desta condição primordial: a perpetuidade e a hereditariedade. Dito de outra forma, o escravo morre escravo e seus filhos serão também escravos. Na sua condição de propriedade, o escravo torna-se coisa, objeto. O Eclesiastes comparou o escravo a um asno e Aristóteles escreveu que o boi serve de escravo aos pobres; a Lei Aquiliana, em Roma, equiparava o crime de morte de um escravo alheio ao de um quadrúpede, para efeitos de indenização do proprietário lesado; as ordenações portuguesas – Manuelinas e Filipinas - sintetiza em um mesmo texto o direito de enjeitar escravos e bestas por doenças ou manqueira, quando dolosamente vendidos, Gorender, (1980, p. 64).

Ter escravos no Brasil não constituía privilégio apenas da elite. A base das relações de trabalho no Brasil até o final do século XIX eram escravistas. Além dos escravos que atuavam nas áreas agrícolas, nas regiões pastoris ou nas minas, existiam os escravos domésticos e os escravos de ganho. Apenas grandes produtores possuíam muitos escravos. Uma parte significativa da população livre vivia da exploração de pelo menos um escravo de ganho. Estes escravos desempenhavam múltiplos papeis: vendedores, artesãos, marceneiros, prostitutas, dentre outros. Fato comum era negros, libertos ou não, tornarem-se proprietários de escravos. Na mentalidade escravista, todo trabalho braçal deveria ser realizado por escravos. Apenas pessoas muito pobres não tinham nenhum escravo.

Um aspecto importante no escravismo brasileiro é a complexa dinâmica das relações sociais que suscitou. As estratégias de dominação freqüentemente utilizadas pelos senhores de escravo contavam com esquemas menos impositivos, do tipo ameaças, e mais manipulatórios, de caráter paternalista e patriarcal. Buscavam fazer do escravo um serviçal, membro da grande família. O escravo, assim, adquire uma certa identidade social e, a depender do seu comportamento, da sua adesão e fidelidade ao seu senhor, poderia vir a ocupar diferentes papeis como feitor, mestre, cabo de turma. Esta possibilidade de ascensão social que, inclusive, poderia conduzir à alforria, representou um importante aliado na construção de uma ideologia de submissão passiva entre os escravos. Esta estratégia teve efeitos intensos e produziu muitas adesões, mas não silenciou as vozes rebeldes dos negros, que durante todo o período escravista organizaram fugas, sabotaram o trabalho ou cometeram suicídio.

Outra característica fundamental diz respeito às diferenças existentes na dinâmica das relações entre senhores e escravos decorrentes dos diferentes contextos que aconteceu a escravidão no Brasil. Na realidade urbana o escravo tinha mais liberdade de trânsito, freqüentemente constituía família, atuando principalmente no comercio e em atividades artesanais: como marcenaria, calafetaria, sapataria, dentre outros. Nas regiões de engenho, os escravos que atuavam diretamente no cultivo e beneficiamento da cana de açúcar tinham rotinas extremamente duras e longas – até 16 horas dia – estando sua vida sócio-cultural limitada as práticas noturnas desenvolvidas nas senzalas. Nas áreas de pastagens, a vida dos escravos estava muito próxima dos seus senhores, que participavam ativamente das rotinas de trabalho. Nas regiões de mineração os escravos eram expostos às condições de trabalho mais insalubres e sua vida era muito controlada para tentar impedir o contrabando. Aliado a estas diferenças regionais, existiam as diferenças pessoais. Afirmar que todos os senhores de escravo tinham um mesmo padrão de conduta é incorrer em generalização ingênua.

Existem também os padrões de assimilação da condição de escravo pelos diferentes grupos de negros. Uns resistiram, se amotinaram, organizaram fugas, construíram quilombos, lutaram, mataram ou morreram. Outros organizaram irmandades para alforriar e recambiar para a África seus irmãos. Houve aqueles que se exauriram e morreram ou cometeram suicídio. Também aqueles que se deixaram cooptar de maneira mais ou menos dócil. Outros souberam se apropriar da cultura escravista em proveito próprio e conquistaram diferentes benefícios. Enfim, muitas foram às formas possíveis de vivenciar a escravidão e muitos foram os arranjos estabelecidos na complexa trama das relações sociais estabelecidas no contexto multifacetário do Brasil escravista.

II - A criança escrava e suas redes de proteção

Os registros históricos sobre as crianças negras no Brasil são muito restritos. Na correspondência oficial entre Lisboa e Bahia ou Rio de Janeiro, foram praticamente ignoradas. Nos documentos da época pouco se falava sobre o cotidiano das pessoas. Não havia interesse em comentar sobre como viviam os escravos, pobres, mulheres ou crianças. Os registros da época versam apenas sobre questões econômicas e políticas. Segundo Scarano (2000, p. 107):

“[...] As autoridades locais, quando escreviam para os centros do poder no momento, não estavam interessados em modos de viver, só se preocupavam com a situação dos “povos” quando havia perigo de revolta e outros problemas, sem se interessarem pela população infantil”.

As questões mais ordinárias do cotidiano somente podem ser lidas de forma indireta. Falta um corpo específico de documentos, prejudicando ou impossibilitando uma análise mais completa a respeito dos diferentes grupos da população, particularmente os que não participavam da vida econômica. No caso específico das crianças, o volume de documentos existente é quase nada. Mesmo as irmandades e confrarias religiosas também não apresentam dados específicos sobre a infância. A falta de maiores referências não significava que a criança não tivessem nenhum valor. Figura nas entrelinhas dos documentos uma ou outra maneira de revelar o tipo importância que gozava. “[...] era a continuidade da família, gozava do afeto dos seus, participava dos acontecimentos e das festas, enfim, tinha presença na vida do momento”, (Scarano, 2000, p.109-110). Contudo, sua morte não era chorada como uma tragédia. Simplesmente era aceita como uma fatalidade, que logo seria esquecida. As crianças não eram tidas como quem faria falta.

O filho crioulo – nome dado ao escravo nascido no Brasil - sobrevivente, logo ao nascer caia em uma rede de relações sociais escravas, parentais ou não. Possivelmente teria irmãos e irmãs, tios e tias, primos ou mesmo avós. Ocasionalmente também era dado para outro escravo ou mesmo pessoa livre. Na ausência de parentes, a criança seria amparada pela rede de apadrinhamentos que os pais providenciavam logo no nascimento. Além disso, acontecia do crioulo ter como padrinho o seu senhor. Este acontecimento implicava em uma situação privilegiada e de proteção especial no grupo de escravos. Não raro, o senhor era o próprio pai da criança, que não quis assumir publicamente a paternidade. Segundo Mattoso ( 1982, p. 132), era um fato raro no Brasil, padrinhos não assumirem a obrigação de dar assistência aos afilhados.

Em 1842 haviam sido realizados na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro aproximadamente 1,6 mil batizados, sobretudo de crianças. Os escravos e escravas foram padrinhos em 67% das cerimônias, os libertos em 24% e as pessoas livres em menos de 10%. Nas maiores propriedades, 75% dos padrinhos eram escravos, evidenciando o empenho dos escravos em constituir laços familiares.

Gilberto Freyre, (apud Scarano,2000, p.182) comenta a importância do catolicismo lusitano na sobrevivência dos laços culturais africanos. Os escravos souberam se apropriar dos vínculos de compadrio que se estabeleciam via batismo, como uma importante estratégia de assistência social, que permitia não apenas já nascer acompanhado por um padrinho, mas também morrer protegido. Os escravos desenvolveram, na complexa tessitura da sociedade escravista, com os meios possíveis, vigas de uma vida comunitária e cooperativa. Em grande medida, este empenho em desenvolver redes de amparos pode ser considerado vital para aquelas crianças que conseguiram tornar-se adultos.

Ao completar 12 anos, estava fechado o ciclo de adestramento que tornava uma criança adulto. Esta passava a ter por sobrenome a sua profissão: Chico Roça, João Pastor, Ana Mucama. O mercado escravista desconfiava da alta taxa de mortalidades das crianças.O preço de uma criança valia 60% mais aos 7 anos e duas vezes este valor aos 11. Ao completar 14 anos seu valor era o mesmo de um adulto.

III. Resiliência: histórico do conceito

A utilização do conceito de resiliência nos espaços psico-médico-social relaciona-se ao surgimento de um outro conceito, “invulnerabilidade”, que foi cunhado na década de 70 pelo psiquiatra infantil E.J. Anthony. Segundo Anthony (1974), eram invulneráveis crianças que, apesar de prolongados períodos de adversidades e de estresse psicológico apresentavam saúde emocional e alta competência. Segundo Rutter (1993), um dos pioneiros no estudo do fenômeno da resiliência, a concepção de invulnerabilidade passa a equivocada concepção de absoluta resistência ao sofrimento. Zimmerman & Arunkumar (1994), consideram a resiliência como sendo uma “habilidade para superar adversidades”, o que não significa sair ileso da situação como implica a palavra invulnerabilidade.

Nos primeiros estudos sobre resiliência, embora existam referências aos aspectos sociais decorrentes de redes de amparo parentais ou não, o foco das lentes dos pesquisadores centrava-se nos componentes psicológicos do indivíduo. No clássico estudo longitudinal de Werner (1986) e Werner & Smith (1982). foram acompanhadas 698 crianças em Kauai, ilha do Havaí. As crianças foram avaliadas com 1 ano de idade e acompanhadas até as idades de 2, 10, 18 e 32 anos. Entre estas, 72 (42 meninas e 30 meninos) apresentavam-se em situação de risco: pobreza, baixa escolaridade dos pais, estresse perinatal, baixo peso ao nascer ou, ainda, a presença de deficiências físicas. Uma quantidade significativa dessas crianças era proveniente de famílias cujos país eram alcoólatras ou apresentavam distúrbios mentais. Nenhuma delas desenvolveu problemas de aprendizagem ou de comportamento. O objetivo inicial deste estudo não foi abordar o tema resiliência, mas os efeitos cumulativos da pobreza, do estresse perinatal e dos cuidados familiares deficientes no desenvolvimento físico, social e emocional, das crianças. Os resultados do estudo, porém, levaram as pesquisadoras a denominar resilientes estas crianças, posto que já existia na época uma discussão sobre o que fazia crianças não serem atingidas por situações adversas presentes em sua criação (Yunes & Szymanski, 2001, p. 18).

Uma outra amostra estudada por Werner (2000), totalizou um grupo de 49 jovens da mesma ilha. Estas crianças viviam em situação de pobreza, em ambiente familiar marcado por conflitos e por abuso de álcool. Entrevistados por volta de 18 anos, 41% deste grupo apresentou problemas de aprendizagem. Os 59% restantes foram nomeados de resilientes. Os fatores que discriminaram os grupos resilientes tanto neste estudo como no de 1982 foram: temperamento, nível intelectual, auto-estima, auto controle e contexto familiar. Fica evidente a ênfase no indivíduo, porém anuncia-se um lugar, ainda que secundário, para os cuidadores (ambiente familiar) da infância na produção do fenômeno da resiliência.

Outro nome importante nos estudos sobre resiliência é o já citado psiquiatra britânico Michael Rutter. Em um clássico estudo, Rutter (1979) pesquisou jovens da Ilha de Wight e da cidade de Londres com histórico de pobreza, violência familiar, criminalidade e doença mental. Seus resultados apontaram na direção de que apenas um único agente estressor não tem impacto significante, mas a combinação de dois ou mais pode diminuir a possibilidade de conseqüências positivas no desenvolvimento. Constatou também que a presença de estressores adicionais potencializam os outros estressores presentes. Em 1981, Rutter publica um estudo que trata da relação entre ausência materna e psicopatologias infantis. Um dos pontos levantados pelo autor é a relação entre experiências de desamparo e desenvolvimento psicológico.

Em trabalho posterior, Rutter (1987) define resiliência como “variação individual em reposta ao risco”, afirmando que “os mesmos estressores podem ser experienciados de maneira diferente por diferentes pessoas”. Segundo este autor a resiliência não é uma característica fixa que alguns indivíduos possuem, posto que mudanças no contexto de vida podem alterar a resiliência. Por exemplo, uma pessoa pode superar a perda dos pais, porém sucumbir à perda de seu emprego ou de sua mulher. Compreender esta dinâmica no fenômeno implica em um corte radical com a concepção fragmentada que inspirou muitas pesquisas quantitativas. O fato do indivíduo ter uma experiência de resiliência em algum momento de sua vida não significa que ele seja um resiliente. Não existem pessoas resilientes, mas experiências de resiliência. Esta concepção relativista implica em também considerar o conceito de risco dentro de uma perspectiva mais complexa e imprecisa.

IV. Risco e resiliência

O conceito de risco remonta ao campo do comércio em vias marítimas no século XVI. No campo das pesquisas científicas, os primeiros estudos sobre risco foram feitos no campo da epidemiologia e da medicina. O foco destes estudos era pesquisar padrões de doença em determinadas populações e os fatores que influenciam estes padrões.

A concepção de risco foi tornado-se mais complexo na medida que passou a ser utilizado no campo da saúde mental. São consideradas fatores de risco situações negativas para o desenvolvimento que quando presentes aumentam a probabilidade do indivíduo apresentar problemas físicos, sociais ou emocionais. São consideradas situações de risco divórcio dos pais, perdas de entes próximos, abuso sexual/físico, pobreza, holocausto, desastres e catástrofes naturais, guerras. Estes fatores, contudo, não podem ser analisados isoladamente como fatores geradores de situações de risco. Embora seja obvio que todo tipo de violência é prejudicial para crianças ou adultos, o que vai definir se esses fatores irão se constituir em risco ou não relaciona-se aos mecanismos pelos quais os processos de risco operam seus efeitos negativos na criança.

Falar de risco, portanto, implica em contextualizar a situação e não em padroniza-la. Rutter (1999) faz uma distinção entre indicadores de risco e mecanismos mediadores presentes quando há indicações de risco. Por exemplo, uma situação de perda prematura dos pais. Conta o histórico da criança, as relações estabelecidas no âmbito familiar, as rede de cuidados, as conseqüências imediatas desta perda, a forma que foi elaborado o luto e qual o novo contexto que a criança será inserida. A perda dos pais constitui o evento chave, um indicador de situação de risco. Os mecanismos mediadores de risco envolvem as situações anteriores e posteriores ao evento chave. Estes mecanismos mediadores modulam formas de vivenciar a situação, definindo se o contexto implica em risco ou não.

Outro aspecto relevante em relação a complexidade que envolve o conceito de risco diz respeito ao que Luthar (1993) denomina de risco distal e proximal. Embora uma criança esteja inserida em um contexto estatisticamente considerado de risco, como pobreza – risco distal – existem variáveis relacionadas às relações familiares, cuidados, etc. - risco proximal – que podem alterar totalmente a situação da criança. Estas considerações são relevantes na medida que evidenciam os possíveis equívocos em manipular o conceito de risco de maneira isolada. Risco não é uma categoria em si, depende sempre de outras variáveis para constituir-se enquanto risco. Falar sobre resiliência implica em considerar a complexidade do conceito de risco sob pena de produzir interpretações distorcidas sobre os seus pretensos efeitos em determinado grupo ou indivíduo.

Os mecanismos mediadores de risco podem impedir que uma determinada situação indicadora de risco venha a se constituir efetivamente em um risco. Rutter (1986) chama a atenção para os fatores de proteção que relacionam-se a influencias que podem modificar a resposta de uma pessoa diante dos efeitos de determinado mecanismo de risco. O papel deste fator não é diminuir ou evitar o risco, mas possibilitar que o risco seja vivenciado de uma forma menos danosa. Relaciona-se à maneira como a pessoa administra mudanças em sua vida, como se comporta diante de situações adversas.

Por exemplo, o contexto de abuso de um psicoativo como o crack. O crack é uma substância que não existe dose segura de consumo e produz graves quadros de abstinência com pouco tempo de uso. Produz também sintomas paranóicos e anti-sociais no usuário. Os fatores de proteção relacionam-se, em primeira instância, a aspectos orgânicos do sujeito: como seu corpo vai reagir à substância, principalmente durante os momentos de abstinência; segundo, envolve aspectos subjetivos que pesarão na forma como o indivíduo vai administrar esta situação, as pessoas que vai se envolver, como conseguirá dinheiro para adquirir a substância e terceiro, envolve as redes de amparo parentais ou não que possam se fazer presentes. Os fatores de proteção são elementos chaves que podem tornar possível a experiência da resiliência. No caso hipotético de nosso usuário de crack, os fatores de proteção podem possibilitar um trânsito menos trágico, que impeçam que o indivíduo se deixar destruir pela droga. Garmezy (1985, apud Yunes & Szymanski, 2001 p. 40) identificou três fatores de proteção:

“[...] a) os atributos disposicionais da criança: atividades de autonomia , orientação social positiva, auto-estima e similares; b) a coesão familiar, ausência de conflitos, de negligências, com a presença de pelo menos um adulto com grande interesse pela criança e c) uma rede de apoio social bem definida com recursos individuais e institucionais bem definidos”.

O conceito de fatores de proteção assim como o de resiliência freqüentemente se encontram impregnados de forte conteúdo ideológico normatizador. Ao falar de redes de proteção social ou de uma família coesa, quais valores estariam embutidos nestas formulações? Esta linha fronteiriça precisa ser transitada com muita atenção pelos pesquisadores do tema sob pena de formularem discursos distorcidos por uma perspectiva sociocêntrica. Falar sobre fatores de proteção ou de resiliência exige um olhar sensível à pluralidade cultural que caracteriza a existência humana. Esta discussão caminha para um terreno comum às realidades contemporâneas: ética. O homem não aprendeu a conviver com a diversidade e o diferente continua sendo tratado como desviante ou anormal. Este olhar reducionista gera uma oferta típica nos projetos sociais: recuperação e adaptação.

O fenômeno da resiliência denuncia as limitações desta abordagem, evidenciando a importância de alargar o conceito de adaptação para uma dimensão mais crítica e menos normativa. Como lembra Lucchini (2000, p. 35) a experiência da resiliência é compatível com a existência de conflitos e produz comportamentos freqüentemente considerados desviantes pela sociedade. Um paradoxo que não pode ser desfeito, mas que pode e deve ser assistido. Várias evidências indicam que este é um dos segredos da resiliência: o encontro com pelo menos uma pessoa significativa que possibilite fazer acreditar que vale a pena continuar vivendo.

VI. Resiliência e escravidão

Ser escravo no Brasil foi uma realidade sempre atravessada por constantes situações indicadoras de risco, tanto para crianças como para adultos. Como já foi mencionado anteriormente, a existência de determinados mecanismos de mediação pode alterar totalmente o sentido do contexto, sendo incorreto dizer que determinada situação é ou não de risco sem conhecer a sua dinâmica.

Os escravos brasileiros criaram uma complexa rede de amparos como a instituição do apadrinhamento, que cimentava as relações sociais e criava alianças que envolviam não apenas afilhado e padrinho, mas entre os pais e os padrinhos, que tornavam-se compadres. Fato que potencializava afetividades e privilégios. A base das relações entre senhores e escravos, em geral, se inspiravam em um modelo paternalista. Neste modelo firmava-se um pacto quando cabia aos escravos obedecer e aos senhores proteger. Isto não significa dizer que não existiam maus tratos, mas como já foi mencionado, implicava em laços de solidariedade que ultrapassavam a mão única da mera exploração de uma força produtiva.

Existem dois indicadores básicos de risco que o contexto da escravidão suscitava para as crianças escravas: a possibilidade de morte provocada por doenças, e a perda dos pais. Superar a morte prematura seguramente era o principal desafio. Segundo Roberto de Góes (2000 p. 180), nos inventários das áreas rurais fluminenses figura que, no intervalo de tempo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros, os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos. Entre estes, dois terços morriam antes de completar um ano e, 80% dos restantes, antes de completar os cinco anos. Sob o ponto de vista médico, as crianças escravas que simplesmente não pereceram frente às parcas condições de higiene que imperava particularmente nas senzalas, vivenciaram uma experiência de resiliência. A escritora Kátia Mattoso (1988, p. 20), afirma que a principal causa de morte entre os escravos adultos não era nem os maus tratos nem o excesso de trabalho, mas as doenças que se tornaram endêmicas, como: tuberculose, sífilis, verminoses, escorbuto, malária, desinterias e tifo.

Outra situação indicadora de risco freqüente entre as crianças escravas foi a perda dos pais. Nas áreas rurais fluminenses, uma entre cada dez crianças escravas não possuía nem pai nem mãe antes de completarem um ano de vida. Aos cinco anos, metade e, aos 11 anos, oitenta porcento eram completamente órfãs, Roberto de Góes (2000 p. 180). Compreender o significado destas perdas implica em situar a dinâmica das famílias escravas na época.

A concepção de família que se estruturou no Brasil nas fases colonial e imperial, não limitava-se ao núcleo parental: pai, mãe e filhos. A concepção predominante era a família patriarcal do tipo extensiva. Neste modelo existe um referencial de pai, o pater famílias, que reúne ao seu redor além de mulher e filhos, também tios, tias, sobrinhos, irmãos, primos, bastardos, afilhados, além de agregados do tipo genros, noras, dentre outros. Também fazia parte da família os escravos. Segundo Mattoso (1988, p. 124), uma família urbana de recursos médios conta facilmente com vinte pessoas. Para conviver nesta comunidade heteróclita torna-se mister submeter-se aos detalhes de suas regras. Seja no campo, na cidade, nas áreas de pastagem ou nas minas, o chefe da casa é o pai de todos e o escravo como “cria” da casa é um filho menos privilegiado, mas é filho. A família passa a ser o lugar onde o escravo deve aprender a ser uma eterna criança e sempre estar disposto a obedecer os seus senhores.

A criança escrava vai crescer à sombra desta grande família e vai experimentar, ao longo do seu desenvolvimento, as ambigüidades destes dois mundos que faz parte: o dos brancos e dos negros. Durante o dia era acolhida na casa grande, onde convivia em total liberdade com as outras crianças brancas, participando das brincadeiras e das carícias das mulheres da casa. “[...] verdadeiros “cupidos de ébano”, como os classifica bem um viajante ao descrever a admiração beata dos senhores - inclusive do capelão – ante as cambalhotas dos negrinhos brincado com os cachorros de grande porte” Mattoso (1988, p. 128). A criança escrava estava sempre mais próxima do mundo branco do que do negro. A vivência com os valores e práticas dos seus “irmãos” acontecia pela noite, quando os escravos adultos retornavam da labuta. Uma vivência ambígua, que inscreve mundos diferentes porém misturados, onde a criança terá que aprender a se posicionar, estabelecendo suas alianças e redes de proteção.

Quando tornava-se órfã, existia sempre alguém para ocupar o lugar de quem morreu. Importante assinalar que não eram freqüentes uniões estáveis entre os escravos nas áreas rurais. Este fato afrouxava os laços das crianças com o seu pai biológico, que nem sempre era conhecido. A perda da mãe era um evento significativo, raramente do pai. O choro que choravam as crianças quando perdiam suas mães, contudo, encontrava amparo tanto no mundo dos brancos, como na comunidade dos escravos. Ao que tudo indica, a criança escrava órfã raramente ficava sem algum tipo de amparo.

Sob o ponto de vista psicológico, um momento crucial, que imprime uma marca definitiva sobre os mediadores de risco que estiveram presentes na infância, é quando a criança escrava começa a prestar serviços entre os 7-8 anos. Nesta idade as contradições inerentes ao convívio com o mundo dos brancos começam a ficar evidentes. A criança terá que desenvolver suas estratégias para estabelecer negociações frente às situações que enfrentará. A pedagogia que lhe será imposta é a da obediência irrestrita e terá de aprender a conviver com as perdas de todos privilégios que um dia gozara. Assim termina a infância dos escravos, com o desmoronamento de um mundo. A depender do local que vá trabalhar esta passagem será menos ou mais violenta. Caso seja escolhido para escravo doméstico a realidade será bem diferente daquela existente nos canaviais. No segundo caso, este processo lança cada vez mais a criança em direção ao mundo dos negros. Vai encontrar novas solidariedades entre seus novos companheiros, que um dia poderão ajuda-lo a se libertar.

Esta passagem representa um campo de reflexões cruciais para pensar a questão da subjetividade dos negros escravos. Como conciliar estes mundos dispares e, ao mesmo tempo, complementares? A presença deste componente paradoxal aponta em uma direção flutuante, enigma precioso para compreender as modulações que entrelaçam os mundos negro e branco. Um contexto sempre marcado pela duplicidade. Uma marca que seguramente produz ecos no mundo contemporâneo revelando um componente ambíguo presente no imaginário brasileiro a cerca do sentido daquilo que ele acredita.

CONCLUSÃO

O conceito de resiliência implica em uma abertura para pensar a plasticidade do comportamento humano diante das adversidades da vida. Se por um lado anuncia a imensa capacidade adaptativa que possuímos, por outro, evidência nossa fragilidade e dependência. Um conceito complexo, que resgata a dimensão dialética dos componentes biológicos, individuais e sociais do comportamento humano.

A realidade das crianças escravas de engenho é pouco conhecida, demandando maiores estudos para subsidiar formulações sobre o fenômeno da resiliência neste contexto. Este estudo é inconcluso, porém possibilita considerar a relevância do papel das redes de amparo tecidas pelos escravos na mediação de situações indicadoras de risco, tanto para crianças como adultos. Estas redes de amparo podiam atuar como fator redutor de risco em uma determinada situação, bem como fator de proteção, possibilitando redução de seqüelas diante de uma situação de risco.

O contexto das crianças escravas, tudo leva a crer, não se caracterizava pela presença sistemática de maus tratos ou de abandono, pelo menos até iniciar seu adestramento para o trabalho, por volta dos sete anos. O maior indicador de risco para estas crianças era de morte decorrente, não de negligência, mas devido às precárias condições sanitárias reinante nas senzalas. O problema da perda dos pais fazia ativar a complexa engrenagem de apadrinhamentos existente. Sua inserção na comunidade branca era acolhida com receptividade.

Um hiato que o presente estudo não penetrou e que constitui uma lacuna na literatura especializada, diz respeito às crianças resistentes ao cativeiro. O que acontecia com estas crianças? Elas organizavam fugas? Onde viviam após a fuga? Existiu alguma versão semelhante aos nossos meninos de rua entre as crianças escravas? Quais as conseqüência que estes atos poderiam incorrer? Se existiram tais crianças, seguramente conviveram com um tipo de situação indicadora de risco social que, aparentemente, não existia entre aquelas que permaneciam na comunidade dos escravos.

Referências Bibliográficas

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