O RÁDIO E O MENDIGO – CASO VERDADE

 

Faz três anos e eu não esqueci. Era dezembro e por isto ficou marcado em minha mente. É uma história simples, mas emocionante pela pureza e simplicidade, não bastasse a riqueza simbólica do fato.

Tudo aconteceu em pleno calçadão da Avenida Boa Viagem, quando fazíamos a habitual caminhada logo cedo da manhã, em torno das seis horas. Fui abordado, entusiasticamente, por um mendigo que residia nas calçadas, mais exatamente na frente de uma padaria famosa do bairro. Na sua abordagem, ele me mostrava um radinho de pilha, desses que a gente compra por cinco ou dez reais no camelô dos grandes centros. Mostrando-me como quem mostra um troféu ele me contou da sua felicidade: “eu estava dormindo na calçada. Só durmo com o meu radinho ligado e, de repente, acordo com um ladrão roubando meu radinho! Eu me levantei às pressas saí correndo atrás dele pedindo pra me devolver o rádio, mas ele sumiu e eu não pude recuperar. A polícia ia passando e, me vendo naquele desespero, seguiu de carro atrás do ladrão. Eles pegaram o ladrão moço, olha aqui o meu RADINHO”!

Ouvindo sua história atentamente, segui minha caminhada refletindo sobre aquela lição que o mendigo me dera. Talvez ele nem soubesse daquela significação, mas eu fiquei o dia todo matutando naquela alegria por tão pouco. E com meus “botões”, fiquei  refletindo sobre os que tem tantos bens materiais e ficam brigando sempre por mais; sobre aqueles que tem casa, comida, emprego, saúde e ainda agravam a Deus dizendo-se infelizes. Da mesma forma em que não podemos deixar de refletir sobre o ladrão do rádio: chinfrim? Pode ser, mas não necessariamente! Maldade pura, talvez! Mas se foi mesmo porque não tinha um rádio é lamentável, pois certamente ele, o ladrão tinha mais que o mendigo que nem casa tinha – fazia das calçadas sua moradia.

Parece mesmo que ao ser humano é dada a pecha de insatisfeito sempre. Machado de Assis, magistralmente fez o CIRCULO VICIOSO – soneto que, de certa maneira, retrata nosso mendigo que ficou feliz com a recuperação do SEU rádio; do ladrão que provavelmente nem rádio tivesse. E de nós que tendo tudo queremos mais e, diante do mais, queremos ainda mais, mesmo que seja na forma do diferente, como o VAGA-LUME que queria ser uma estrela e esta a lua e esta o sol e este, o VAGA-LUME.

Esta história simples foi, naquele ano, o meu presente de natal. Tão valioso que ainda hoje reconto em prosa e em verso. Pergunto-me: por onde andará aquele mendigo? Será que ainda mora nas ruas? Será que já tem televisão além do rádio? Certamente deve continuar feliz e isto me basta pensar. Um dia chegará em que a felicidade será desatrelada dos bens de consumo, mas talvez uma nova ordem espiritual esteja dominando o universo...

 

Círculo Vicioso

 MACHADO DE ASSIS.

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
-”Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

-”Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

-”Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

-”Pesa-me esta brilhante auréola de nume
Enfara-me esta azul e desmedida umbela
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?”