Água: O truque da água mineral e o lucro
*Sineimar Reis
Sou transplantado renal desde 2011, passei a conhecer vários fatores que causam doenças renais, alguns sintomas podem ser causados pela substância tóxica que vem na água para beber ou como medicamentos, tóxicos, cristais que precipitam na urina e anticorpos dirigidos contra os rins. Segundo especialistas, a maneira mais segura e eficiente de se filtrar a água de beber que existe vem do filtro de barro. Você sabia que ela sai do filtro 95% livre do cloro, parasitas, pesticidas, metais como ferro, chumbo e alumínio e o que é melhor, fresquinha, porque a cerâmica diminui a temperatura da água em até 5 graus centígrados. É ainda o único filtro de água que recebe a classificação P-I do Inmetro, capaz de reter partículas de 0,5 a 1 mícron (os demais só acima de 15 mícrons). Já a água mineral é aquela que é proveniente, ou de uma fonte natural, ou de uma fonte artificialmente captada, que possua composição química diferente de uma água comum, e que tenha alguma característica que possa ser considerada medicamentosa, segundo a lei que regulamenta o produto. E não é qualquer fonte que pode ser explorada para a obtenção de água mineral, mas somente aquelas autorizadas legalmente para isso. No Brasil existem leis rigorosas para o comércio de água mineral engarrafada, que está sujeita à fiscalização em todas as suas etapas, desde a captação na fonte de origem até chegar às prateleiras do mercado.
Fiz hemodiálise no Hospital Público Regional de Betim durante quatro anos, em 2011 realizei meu transplante e atualmente faço acompanhamentos pós-transplante no Hospital Felício Rocho em Belo Horizonte, nas idas e vindas dos consultórios médicos, fui conhecendo sobre o assunto: A água, os rins, filtros, água mineral, lucro etc... Beber menos de 1,5 L de água por dia pode prejudicar o funcionamento dos rins, provocando problemas como Insuficiência Renal Aguda, porque a falta de água reduz a quantidade de sangue no organismo e, por isso, o rim recebe menos oxigênio, provocando lesões em suas células. Além disso, beber pouca água aumenta as chances de desenvolver pedras nos rins e aumenta o risco de desenvolver infecções urinárias porque as toxinas, como ureia, concentram-se no organismo e as bactérias se podem desenvolver facilmente. Assim, a insuficiência renal aguda, que é a perda da capacidade dos rins em filtrar o sangue, surge rapidamente e se o tratamento for iniciado a doença pode ser curada em menos de 3 meses. Se sua urina está em pouca quantidade, muito escura e com cheiro forte, beba muita água e procure orientações médicas imediatamente. Ora, eu indico, beba muita água, compre aquela relíquia do tempo de avó, pois dele sai a melhor água para seus rins e sua saúde. Uma das maiores sacanagens do capitalismo, foi fazer você acreditar que precisa de alguma coisa e então passar a não viver mais sem ela. Outra, pior ainda, é conseguir convencer as pessoas de que algo antigo, durável e que funciona perfeitamente na verdade é obsoleto e, portanto, deve ser substituído. Ambas as situações ocorreram com os filtros de barro no Brasil.
A partir da década de 1990, fomos convencidos do contrário: que o filtro de barro era ineficiente e até mesmo ruim, e que a melhor água para o consumo humano é a engarrafada, pela qual desde então pagamos dinheiro, em vez de utilizar a que vem da torneira, pela qual também pagamos, e 2 mil vezes mais barato. O truque da água engarrafada nos fez cair como patinhos. Como a indústria de bebidas sabia que a curva ascendente dos refrigerantes tinha tempo para terminar –já que uma hora as pessoas iam se dar conta de que fazem mal para a saúde–, passou a investir em engarrafar e vender a pura, leve e saudável água. Quem tem algo a dizer contra ela? Resultado: o comércio de água engarrafada é hoje um negócio multibilionário. Só a Nestlé, a maior vendedora de água do planeta, fatura 9 bilhões de dólares anuais com um produto que nem sequer precisa fabricar, basta retirar do subsolo. A multinacional suíça é dona de mais de 70 marcas de água mineral, inclusive as famosas Perrier e S.Pellegrino.
Na região Sudeste do Brasil, de acordo com números do IBGE, até a década de 1990 mais de 70% das casas possuíam filtros de barro. “Havia inclusive um item na construção, no canto da cozinha, a cantoneira, feita apenas para abrigar o filtro, como se fosse um objeto artístico ou de decoração”, lembra o economista Julio César Bellingieri, autor de uma tese de mestrado na Unesp sobre a indústria da cerâmica em Jaboticabal, terra dos filtros de barro. As fábricas foram atraídas para lá no início do século 20 em virtude de uma abundante jazida de argila na região. Segundo Bellingieri, o filtro de cerâmica existe no Brasil desde 1910, quando começa a ser produzido por famílias de imigrantes italianos e portugueses. O tradicional filtro São João, de barro vermelho e com vela porosa que ilustra esta reportagem, foi criado entre 1926 e 1928 pela Cerâmica Lamparelli, de Jaboticabal. Em 1947, quatro irmãos da família Stéfani adquiriram a fábrica e continuaram a produzir os filtros com o mesmo nome e aparência até hoje. Com a queda da procura pelos filtros a partir da década de 1980, as demais fábricas faliram e a Cerâmica Stéfani se tornou a maior produtora de filtros de cerâmica do País e quiçá do mundo. A Stéfani chegou a vender 80 mil filtros de barro por mês, mas quase fechou na última década, diante da concorrência da água engarrafada. Acabou contratando um executivo, Emilio Garcia Neto, para recuperar a empresa, que há quatro anos saiu do vermelho e atualmente exporta filtros de cerâmica para 45 países, 8 deles na África. “Tem gente que acha o filtro antigo, outros acham vintage”, brinca Emilio. A Stéfani fez algumas modificações no design de alguns filtros, substituindo a parte de cima por plástico, mas o São João continua um clássico. 50% do processo de fabricação ainda é feito manualmente.
O economista Bellingieri não sabe afirmar com certeza, mas é possível que o filtro de barro, neste formato, seja invenção brasileira. Já se usavam na Europa filtros de louça e cerâmica, mas iguais aos daqui, de barro vermelho, não –talvez sejam uma evolução das moringas, de origem indígena. Quando foi lançado no mercado, na década de 1920, o filtro de barro chegou a ser símbolo de status. “O público-alvo do filtro São João era formado por indivíduos com uma renda mais alta. Se o público consumidor da Cerâmica Lamparelli fosse ordenado em cinco ‘classes’ de ‘poder de compra’, poder-se-ia dizer que o filtro São João era comprado pelas classes A e B; as classes C e D compravam uma talha com torneira ou um ‘filtro reto'; e a classe E comprava um pote ou moringa sem torneira”, escreveu o pesquisador em sua ótima tese. Durante os anos 1980, os filtros de barro passaram a sofrer a concorrência dos filtros de carvão ativado, que pareciam a coisa mais moderna do mundo, mas que não purificam a água melhor do que os filtros de barro e sem usar energia elétrica. Nos anos 1990, as classes média e alta começam a substituir a água filtrada pelos galões de água mineral entregues em domicílio e o velho e bom filtro de barro é aposentado de vez. “A partir dos anos 2000 a venda de água mineral chega ao auge e passa a ser considerado ‘coisa de pobre’ ter um filtro em casa”, diz Bellingieri. Este aspecto do “status” conferido a quem toma água mineral é curioso. No documentário Bottled Life (2012), do diretor suíço Urs Schnell, se comenta como jovens do Paquistão foram seduzidos pela ideia de que tomar água em garrafinha é cool, e assim a Nestlé conquistou mais um mercado. O documentário investiga o controle da multinacional suíça sobre a água mineral bebida em vários países do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Lá, a Nestlé é dona da marca de água mais vendida do país, a Poland Spring. Em uma passagem do filme, moradores de Fryeburg, no Maine, resolvem proibir que a empresa extraia a água para vender porque estaria poluindo o rio da cidade, e a Nestlé incrivelmente vai à Justiça… contra os cidadãos. E ganha. Em Nova York, a água mineral em garrafinha Poland Spring também é campeã de vendas e virou símbolo do life style saudável e esportista dos novaiorquinos –sendo que, ironiza uma especialista no documentário, eles têm na torneira, grátis, a água limpíssima que vem das montanhas Catskill. É chocante ver como o chairman da Nestlé, o austríaco Peter Brabeck-Lemathe, fala com jeito de galã e voz melíflua sobre a “importância” da água para o planeta como se fosse um ambientalista, enquanto a empresa explora o líquido para gerar lucro. Ninguém na Nestlé deu entrevista ao documentarista em nenhuma parte do mundo. No Brasil, um grupo de moradores da cidade de São Lourenço, em Minas Gerais, e o Ministério Público se mobilizam contra a exploração do Parque das Águas da cidade pela Nestlé há 14 anos, uma verdadeira guerra se instaurou entre a Nestlé e o Parque das Águas de São Lourenço ( acesse o link para saber mais sobre o assunto https://apublica.org/2014/04/em-guerra-contra-a-nestle/ ).
Em São Paulo, uma megalópole cuja região metropolitana concentra 20 milhões de habitantes, consumindo água mineral engarrafada sem parar e que agora está passando por uma falta d’água histórica. Não é de ficar com uma pulga atrás da orelha que estes dois eventos possam estar relacionados? Isso sem falar de Minas Gerais, que tem a COPASA exploradora do líquido, a empresa anunciou que não haverá racionamento de água nem sobretaxa nas tarifas, pelo menos, até este ano de 2018. O governo Pimentel começa, assim, a superar um dos principais gargalos encontrados ao assumir, em janeiro, uma crise hídrica sem precedentes na região. A mudança do quadro não se deu por obra do destino. Só aconteceu porque o governador, ao contrário de seus antecessores, não jogou o problema para debaixo do tapete.
Segundo o ex-Deputado Durval Ângelo PT, Com responsabilidade e transparência, o atual governo, mesmo sabendo ser uma medida impopular, esclareceu a população da gravidade da situação e realizou campanhas de conscientização que levaram a uma redução do consumo de 13,4%. Economia fundamental, ainda que não tenha atingido a meta almejada, o que foi compensado, em parte, pela melhoria do índice de chuvas em relação a 2014. Não há como negar que foram cruciais para reverter o colapso do sistema de abastecimento as ações emergenciais e estruturais adotadas pelo governo Pimentel. Exemplo disso é a obra de captação de água do rio Paraopeba, para a qual o Executivo destinou recursos da ordem de R$ 128,4 milhões. Iniciada em junho, ela vai possibilitar, a partir de dezembro, o bombeamento de 5.000 litros de água por segundo para a Estação de Tratamento Rio Manso, permitindo que os reservatórios sejam poupados quando atingirem níveis alarmantes. Além da imprevidência dos governos passados, que não agiram diante da iminência da crise, o risco real de desabastecimento vivenciado no começo do ano, quando o Sistema Paraopeba operava com apenas 30% de sua capacidade, traduz uma realidade mundial. Diante da escassez, a água adquire na atualidade dimensão aglutinadora de conflitos, sejam sociais, políticos ou ambientais, sejam jurídicos, econômicos ou éticos. Fato é que, na avaliação de muitos estudiosos, pode ser o estopim de uma terceira guerra mundial. Na lógica do capitalismo e da sociedade de consumo, há uma tendência planetária de privatização da água. Esse recurso, finito e não renovável, ainda é priorizado como dimensão de caráter privado, em detrimento de sua faceta vital. Na outra ponta, amplia-se o debate acerca do acesso à água como um direito fundamental, uma vez que sua ausência viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Seria, ainda, um dos direitos fundamentais de terceira geração, também conceituados como os direitos de fraternidade ou de solidariedade, caracterizados por garantias não ao indivíduo, mas a uma coletividade. Bom... Um nó na garganta... A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e posto à venda no mercado?
O Brasil é hoje o quarto maior consumidor de água mineral do mundo –só fica atrás dos EUA, México e China. São 7,1 bilhões de litros de água engarrafada por ano, quase 3 bilhões deles só em São Paulo. O consumo de água mineral cresce 10% por ano no país e, em 2014, com a Copa do Mundo e a seca, a ABINAM (Associação Brasileira da Indústria de Água Mineral) fazia previsões de chegar a um consumo de 14 bilhões de litros.
O economista Pedro Portugal Júnior, autor de uma tese de mestrado na Unicamp sobre as empresas de água mineral. “Temos um problema institucional: aqui, a água mineral é considerada um minério, como o ferro, a bauxita, e, portanto, é fiscalizada não pelos órgãos que regem os recursos hídricos, mas pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral). E o próprio DNPM admite que estes números sobre o consumo são subestimados”. De acordo com Portugal, as águas minerais deveriam ser integradas à gestão de recursos hídricos o mais rápido possível para que a fiscalização seja descentralizada. “Agora, por exemplo, está chovendo pouco. E se há uma estiagem, o DNPM tinha obrigação de exigir que as empresas diminuíssem a extração”, defende.
De acordo com Cynara Menezes. As empresas de água mineral, que já são isentas do pagamento do PIS/Cofins desde 2012, receberam um presente de Geraldo Alckmin no início do mês de fevereiro: por decreto e atendendo ao pedido da ABINAM, o governador de São Paulo colocou a água mineral na cesta básica e concedeu uma redução no ICMS de 18% para 7% sobre o galão. Quer dizer, enquanto os paulistas choram com a falta d’água, o setor comemora a seca. A expectativa é que a redução do ICMS estimule a produção e que extraiam ainda mais água mineral do exaurido solo de São Paulo. Se na cidade do México, outra gigante populacional e enorme consumidora de água mineral, o solo está afundando 2,5 centímetros por mês devido à retirada de água dos subsolos, por que São Paulo não sofreria nenhum efeito dessa exploração toda? Será coincidência que a falta de água seja mais grave nos Estados do Sudeste, onde mais se consome água mineral engarrafada no Brasil? Com a palavra, o leitor.