A eutanásia é uma boa morte?

A EUTANÁSIA É UMA “BOA MORTE”?

Diversos povos da antigüidade tinham por hábito (no Oriente, alguns têm até hoje) que os filhos matassem os seus pais quando estes estivessem velhos e doentes. Na Índia os doentes incuráveis eram levados até a beira do rio Ganges, onde tinham as suas narinas e a boca obstruídas com o barro. Uma vez feito isto eram atirados ao rio para morrerem. Nos países árabes os pais eram deixados no deserto; entre os esquimós, no gelo. A discussão sobre tão delicado tema, tem prosseguido ao longo da história da humanidade. No século XIX, na então Prússia, quando, durante a discussão do seu Plano Nacional de Saúde, foi proposto que o Estado deveria prover os meios para a realização de eutanásia em pessoas que se tornaram incompetentes para solicitá-la.

Há países da América Latina em que, através da possibilidade do “homicídio piedoso”, doentes, idosos e deficientes são sacrificados, por auto-solicitação ou da família. A partir de 1939 foi iniciado o programa nazista de eutanásia, sob o código “Aktion T 4”. O objetivo inicial era eliminar aquelas pessoas que tinham uma “vida que não merecia ser vivida”. Este programa materializou a proposta teórica da “higienização social” (ou faxina étnica) de Hitler. Em 1954, o teólogo episcopal Joseph Fletcher, publicou um livro denominado “Morals and Medicine”, onde havia um capítulo com título “Euthanasia: our rigth to die”. A Igreja Católica, em 1956, posicionou-se de forma contrária à eutanásia por ser contra a “lei de Deus”. O papa João Paulo II, falando em nome da Igreja Católica, foi enfático em sua condenação: “Temos que denunciar mortes que ocorrem para aumentar a disponibilidade de material para transplantes, como retirada de órgãos sem respeitar os critérios objetivos e adequados de comprovação da morte do doador” (EV 15). É uma bandeira de todas as Igrejas Cristãs a defesa da vida, a partir do seu nascedouro, representado pelo momento da fecundação do óvulo.

O verbete eutanásia vem do grego, onde eú, (bom) + thánatos (morte) dão uma idéia de “boa morte” ou “morte feliz” isenta de dores e sofrimentos. A expressão eutanásia teria sido cunhada por F. Bacon

(† 1626) para caracterizar uma “boa morte”. No Brasil a eutanásia é considerada como sendo um homicídio doloso. Tanto assim que se encontram parados nas subcomissões da Câmara Federal, vários projetos para a legalização da “morte sem dor”. Reconhecendo que nem tudo o que é cientificamente possível de ser realizado é eticamente aceitável, tal linha de raciocínio nos conduz à reflexão que se consolidou a partir da necessidade em se reconhecer o valor ético da vida humana e recolher subsídios para conciliar o imperativo do desenvolvimento tecnológico e a proteção da vida e da qualidade dessa vida. O grande desafio da bioética moderna é conciliar o saber humanista com o saber científico na busca da felicidade do ser humano. Afinal parece ser este o objeto de desejo que buscamos da ciência: a realização de nossas expectativas de vida longa e saudável.

A Igreja e a eutanásia

A respeito da eutanásia, bispos católicos da Inglaterra advertiram em uma carta aberta à Câmara dos Lordes Britânica (09/06/2003) que a legalização da eutanásia ou o suicídio assistido seria equivalente a legalizar o homicídio intencional. A carta procede do arcebispo de Glasgow – monsenhor Mario Conti – na qualidade de membro da Comissão de Bioética dos bispos católicos da Grã-Bretanha e da República da Irlanda, e do arcebispo de Cardiff, monsenhor Peter Smith. “O primeiro e fundamental princípio do direito humano é o direito à vida – escrevem os prelados – e o primeiro dever do Estado é protegê-lo, salvaguardando a vida de seus próprios cidadãos”.

“Em nossa nação – prosseguem os bispos ingleses – temos uma grande tradição no cuidado dos enfermos, que encontra uma particular expressão nas casas de recuperação. E na promoção dessas, e não matando os anciãos e deficientes, é como avançamos na civilização”. Finalmente, os prelados do Reino Unido recordam em sua carta que 75% dos médicos britânicos são contrários a esta prática, ainda na hipótese de que se legalize.

No Catecismo da Igreja Católica, há vários textos na defesa da vida, contra aborto, manipulações genéticas e eutanásia. Cabe uma leitura atenta de alguns trechos.

2276 Aqueles cuja vida está diminuída ou enfraquecida necessitam de um respeito especial. As pessoas doentes ou deficientes devem ser amparadas para levarem uma vida tão normal quanto possível.

2277 Sejam quais forem os motivos e os meios, a eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas É moralmente inadmissível. Assim, uma ação ou uma omissão que, em si ou na intenção, gera a morte a fim de suprimir a dor constitui um assassinato gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu Criador.

O erro de juízo no qual se pode ter caído de boa-fé não muda a natureza deste ato assassino, que sempre deve ser proscrito e excluído (CDF – Iura et Bona: AAS 72(1980) 542-552), O direito à vida é o valor mais importante do ser humano, pois constitui um princípio referencial às exigências éticas, às normas do direito, às práticas sociais e ao discurso das entidades voltadas para a defesa dos direitos humanos.

É imperioso defender a vida a qualquer preço, a despeito de quaisquer teorias pragmáticas, mesmo quando ela se fragiliza (infância, deficiência, velhice, doença terminal, etc.). Como ensina o professor G. Durand, “Apenas Deus é dono da vida, dirão os crentes. A inviolabilidade da vida, dirão os outros, é um princípio imediato, evidente, fundamental; não é necessário ser crente para acreditar nisso. Toda a negação a esse princípio apresenta uma tendência perigosa, como a experiência nazista assim provou”.

É lícito “desligar” os equipamentos de sobrevida?

A jovem americana Karen Ann Quinlan, tinha 22 anos de idade, quando em 15/04/75 entrou na emergência do Newton Memorial Hospital, de New Jersey/EUA, em estado de coma, em virtude de algum problema nunca esclarecido. Há quem diga tratar-se da ingestão de tranqüilizantes com bebida alcoólica. Depois de dez dias, a garota foi transferida para o Hospital St. Clair, em New Jersey. Lá, seus pais adotivos, Joseph e Julia Quinlan, tendo as informações da irreversibilidade do caso e após conversarem com seu diretor-espiritual, Padre L. Trapasso, solicitaram, em 1o. de agosto, a retirada do respirador. O médico assistente, após ter concordado com a solicitação no primeiro momento, se negou-se, posteriormente, alegando a ética profissional. Inconformada, a família foi à justiça solicitar a autorização para suspender todas as medidas extraordinárias, alegando haver, por parte da paciente uma manifestação anterior, que não gostaria viver mantida por aparelhos. Em despacho em novembro de 1975, o juiz responsável pelo caso, não autorizou a retirada dos aparelhos, baseando a sua negativa no fato da impossibilidade de confirmar que a paciente tivesse dado aquela declaração.

A família apelou para a Suprema Corte de New Jersey, que designou o Comitê de Ética do Hospital St. Clair como responsável para estabelecer o prognóstico da paciente e assegurar que a mesma nunca seria capaz de retornar a um patamar aceitável de vida. O Comitê, que até então não existia, deu parecer de irreversibilidade. Em 31/03/76, a Suprema Corte de New Jersey concedeu, por sete votos a zero, o direito da família em solicitar o desligamento dos equipamentos de suporte extraordinários. Após isto, a paciente sobreviveu quase dez anos, sem o uso de respirador e sem qualquer melhora no seu estado neurológico.

Em 1995, ministrei, na cidade de Pelotas, RS, um curso intensivo (5 noites) de teologia sobre “vida após a morte” (escatologia). Num determinado momento do programa, para falar em após a morte, tivemos que definir a hora da morte, quando veio à baila o assunto morte encefálica (ME) e conseqüente desligamento de aparelhos. Uma religiosa, que trabalhava na UTI de um dos hospitais da cidade, relatou que, por conta de um acidente de carro, uma moça foi declarada em ME, sendo recomendado pelos médicos que lhe desligassem os aparelhos e depois dessem a notícia do falecimento à família. A irmã de caridade resistiu à idéia, e os aparelhos não foram desligados como fora adredemente solicitado. Para não se alongar, a religiosa perguntou: “Sabem onde está a moça hoje? É dentista, casada e tem dois filhos”. Nenhum dos médicos presentes contestou o depoimento.

O homicídio involuntário (o agente não teve a intenção de praticar o ato danoso) não é moralmente imputável. Mesmo assim, não está isento de falta grave quem, de modo culposo (imperícia, imprudência ou negligência) agiu de maneira a provocar a morte, ainda que sem a intenção de causá-la. É indiscutível que as fronteiras biológicas estão sendo derrubadas, e por isto deve-se refletir sobre o papel do Direito na tentativa de evitar a utilização indiscriminada da ciência quando não ligada aos princípios éticos consensuais, oferecidos pela reflexão bioética. É imperioso buscar a proteção da vida humana e de suas características intrínsecas relacionadas à dignidade, inviolabilidade, e identidade do ser humano.

O suicídio assistido

O suicídio assistido nada mais é que uma forma (mascarada) de eutanásia. Em alguns países ditos evoluídos, da América do Norte e da Europa, por exemplo, cresce a prática do suicídio assistido, em que o doente (ou a família) encomenda a um médico ou a uma equipe especializada uma “morte higiênica e indolor”. É mundialmente conhecida a atividade do Dr. Jack Kevorkian, falecido em junho de 2011, um médico patologista, que já auxiliou mais de uma centena de pessoas a cometerem suicídio assistido ou eutanásia desde 1990.

No primeiro caso em que atuou, em 1990, ele auxiliou uma senhora, chamada Janet Adkins, que desejava morrer, por ter recebido o diagnóstico de doença de Alzheimer. O Dr. Kevorkian nunca teve contato direto com esta senhora antes de realizar os procedimentos que possibilitaram o seu suicídio assistido. Ele atuava sem licença médica desde 1991. Em 1997 vários relatos de casos de pessoas que foram auxiliadas a cometerem suicídio utilizaram técnicas que indicam a participação do Dr. Kevorkian, mas sem que o mesmo tenha assumido este fato. Vale lembrar que ele foi processado e inocentado em diferentes estados americanos.

Um caso de suicídio assistido por ele realizado, com a Sra. Rebecca Lou Badger, Detroit/EUA, deixou algumas pessoas muito preocupadas com os critérios utilizados para a realização dos procedimentos. Esta senhora, então com 39 anos, tida como portadora de esclerose múltipla, solicitou a assistência do Dr. Kevorkian para a realização de suicídio assistido. Foi submetida (pela família) a uma bateria de testes, onde não foi constatada qualquer evidência da doença que justificasse a interrupção de sua vida. Não seria uma eutanásia, mas um mero suicídio.

Em novembro de 1998, o Dr. Kevorkian realizou uma eutanásia ativa, isto é, fez todos os procedimentos necessários para que um paciente viesse a morrer. Gravou toda a seqüência de ações e divulgou mundialmente pela televisão. Em 25 de novembro a promotoria do estado de Michigan fez uma acusação formal por homicídio. A repercussão mundial foi muito grande, porém os resultados de pesquisas de opinião surpreenderam pelo apoio dado a procedimentos deste tipo. Contudo estes resultados apontam para algumas questões que merecem uma maior reflexão. Instaurou-se o debate ético. As pessoas entrevistadas acharam que é adequado auxiliar as pessoas a morrer, mas concordam que o Dr. Kevorkian devia ser acusado de homicídio, considerando-o, porém, inocente. Estes fatos e considerações estão por merecer uma abordagem mais ampla no sentido de diferenciar claramente as várias condutas. A seqüência de procedimentos realizados pelo Dr. Kevorkian reforça a proposta de que aceitação de procedimentos como o suicídio assistido podem desencadear uma situação de slippery slope.

O Dr. Kevorkian era conhecido como Doctor Death (o “doutor morte”). Há menos de dez anos (maio de 2003), os jornais mundiais noticiaram a experiência do médico australiano Dr. Phillip Nitschke, que inventou uma “máquina de morrer”, um equipamento que leva à morte rápida por inalação de monóxido de carbono puro. Naquele país é facultado o uso da “eutanásia voluntária”, que é o mesmo que “suicídio assistido”.

Com referência à abreviação da vida humana, em 1955, o papa Pio XII († 1958) se manifestou: “Não se pode interromper a vida sem uma sólida justificativa moral. E como a moral e a ética defendem a vida sobre todos os valores, não há ética em qualquer forma de interrupção da vida”. Ou seja, mesmo que houvesse justificativa para suprimir a vida, ela não seria ética.

A resposta à questão título: Não! A eutanásia, por ser um homicídio, não pode ser valorizada como “boa”.

O autor é filósofo, Doutor em Teologia Moral e especialista em Bioética. Possui 112 livros editados, no Brasil e exterior, entre eles “Bioética. A ética a serviço da vida. Uma abordagem multidisciplinar”. Ed. Santuário, 2004.