Análise de conjuntura religiosa
Aspectos introdutórios
Fazer uma análise de conjuntura tem diversos desafios e, muitas vezes, acaba prevalecendo uma visão fotográfica da realidade sem realizar um movimento de empuxo não servindo tanto para fazer avançar a ação transformadora das pessoas e da sociedade. Então me faço a seguinte questão: como realizar uma análise de conjuntura eclesial e religiosa que faça movimentar as pessoas, que leve à transformação, que nos tire da inércia?
Uma análise de conjuntura é uma leitura especial da realidade que envolve conhecimento e descoberta feita em função de alguma necessidade. Trata-se de um retrato da dinâmica da realidade, que permite identificar tendências com capacidade de influenciar positivamente ou negativamente. Neste caso, estaríamos diante de ameaças que podem ser identificadas. Ainda a análise de conjuntura precisa dimensionar as forças que participam da dinâmica social ou eclesial.
Ao mesmo tempo é preciso considerar que não existe uma análise neutra ou desinteressada. Sempre terá lado, pois sempre a leitura da realidade será feita sob determinado enfoque ou ponto de vista. Ela expressa um esforço de compreensão, mas pressupõe um posicionamento assumido previamente.
A proposta de trabalhar com análise de conjuntura nasceu na realidade dos cientistas políticos, e mais recente tem ocupado os estudos dos cientistas da religião. Por esse motivo, a Igreja Católica torna-se uma instituição que tem desenvolvido um trabalho de análise de conjuntura distinguindo a esfera político-social da esfera eclesial ou religiosa. São campos distintos, mas também complementares, haja vista o caminho concreto da política em nosso país e no mundo inteiro. Temos que reconhecer as diversas complexidades para análise e da análise.
Para alguns pensadores, a metodologia adequada da análise de conjuntura requer avaliação mais específica dos pilares da discussão e principalmente dos atores que influenciam. Daí ser necessário sempre um entrelaçamento da análise de conjuntura com a história concreta. Contudo, não há um método único e nem uma única metodologia que satisfaça, por esse motivo as análises de conjuntura não podem ser tomadas de modo dogmático como certezas, mas como tendências, pois são plurais além de parciais. Daí nosso senso de humildade diante de nossas análises.
Então concluímos que a análise de conjuntura não pode ser considerada um retrato técnico ou mesmo científico da realidade, mas uma aproximação analítica, um olhar, pois a conjuntura caracteriza-se como um conjunto de acontecimentos encadeados que explicam o processo histórico. São dinâmicos e complexos, resultantes de diversos fatores.
Elementos históricos
A Igreja Católica do Brasil tem larga experiência na organização de grupos de análise de conjuntura, com pesquisadores e professores universitários, não expressando em nenhum momento o pensamento dos bispos do Brasil. Nesse sentido, em 2019, a CNBB criou o Grupo de Análise de Conjuntura para a produção de material a ser entregue aos Bispos. Trata-se de analisar a conjuntura de modo que a ação evangelizadora aconteça de maneira encarnada.
Nesse ano de 2022 desde fevereiro estão sendo publicadas análises de conjunturas mensalmente. A do mês de agosto tem como título “Exigências éticas, justiça social e democracia”. Há um grande destaque nessa análise que são as relações entre o poder político e o poder religioso. Portanto, há um reconhecimento explícito de que a religião deixou a sacristia para se constituir em poder no meio da sociedade. Isso fica bem claro quando se percebe a forte presença das inúmeras lideranças religiosas no campo político. Por outro lado, o poder político acha-se no direito de invadir os espaços sagrados para realizar suas campanhas políticas, ameaçar lideranças religiosas ou ocupar o púlpito para sua própria campanha política.
A situação se agravou muito a partir do dia 16 de outubro a ponto de Dom Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo ser agredido e chamado de comunista por usar roupa vermelha. Assim ele se expressa: “A fé em Deus permanece depois das eleições; assim, os valores morais, a justiça, a fraternidade, a amizade, a família...vale a pena colocar tudo isso em risco no caldo da briga política? Tempos estranhos esses nossos! Conheço a história. Às vezes, parece-me reviver os tempos de ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nessa hora”!
Não são apenas lideranças que ocupam cargos ou representações na esfera federal. Trata-se de um conjunto de pessoas que está assumindo lugares de poder na sociedade marcando uma atuação historicamente conservadora. Quem contribuiu de maneira significativa para que isso acontecesse beneficiando o poder executivo com o apoio ao Presidente da República como apoio nos atores do congresso nacional foram parcelas significativas das igrejas cristãs ditas evangélicas. As questões religiosas tornaram-se pauta política cada vez mais forte. Nota-se desde 2020 o crescimento do poder religioso pentecostal e neopentecostal presente tanto nas denominações evangélicas como em certos círculos católicos, e essa postura está em sintonia com um modelo de Estado que estrutura uma “economia que mata”, como diz o Papa Francisco.
Tornam-se urgentes as discussões acerca das relações entre religião e política, pois chega-se ao ponto de o poder religioso buscar influenciar inclusive a composição dos conselhos tutelares. Certas batalhas eleitorais não passam de batalhas religiosas. Ao mesmo tempo, percebe-se como as pautas morais pouco ou nada tem a ver com a doutrina moral da Igreja Católica ou cristã, mas são elementos aglutinadores de atores políticos conservadores. É perceptível a mudança de foco político dos últimos anos, passando dos projetos de governo em torno de um Estado democrático para questões morais e religiosas. Ganha-se ou perde-se uma eleição, até para o conselho tutelar, de acordo com o posicionamento do candidato em relação ao aborto, à ideologia de gênero, ao ateísmo, às religiões não cristãs.
É preciso fazer um parêntese para dizer que esse movimento integrador entre religião e política nasceu nos EUA na década de 1930, e pode ser conferido na minissérie The Family: democracia ameaçada, bem como nos livros A família: o fundamentalismo secreto no coração do poder americano e Rua C: A ameaça fundamentalista à democracia americana. Ali nascia a Direita Cristã que hoje está espalhada pelo mundo todo criando uma liderança “cristã”, exercendo o poder político em nome da fé cristã, instrumentalizando o uso das Sagradas Escrituras com leitura fundamentalista e interpretação enviesada. Fazem diversos encontros de oração destacando-se o National Prayer Breakfast (café com oração), em seu 66º realizado, onde reúnem as lideranças do movimento e planejam as ações políticas pelo mundo a fora. Grande parte dos ataques ao Papa Francisco vieram do plano dessas lideranças que utilizam as mesmas pautas morais que circulam entre nós como a condenação da homossexualidade, da ideologia de gênero, do aborto, do ensino religioso laico, etc. Jamais essas lideranças conservadoras passarão da pauta moral para uma moral social conforme está descrito na Doutrina Social da Igreja.
Esse movimento da Direita Cristã dá todo apoio a Igrejas na medida em que elas servem e sustentam a liderança política de seus membros no exercício do poder. Católicos e cristãos presenciam eventos com deputados, senadores, vereadores, etc., reunindo as pessoas para práticas ditas “cristãs” como o “café com oração”. Estava previsto esse evento em 2020 e contava com o apoio do Presidente Jair Bolsonaro, e propunha reunir a Câmara dos Deputados, o Senado, o Judiciário, Ministros, Procuradores e autoridades influentes, para conhecerem as lideranças evangélicas e assim promover um trabalho espiritual voltado para as autoridades do país.
Vale ainda ressaltar a proliferação de pequenos eventos de cunho religioso que são estruturados com esse mesmo perfil. É o caso da “Noite de Clamor pelo Brasil: Terra de Santa Cruz”, convocada pelo Movimento Católico Missão Mundo Novo fundado pelo Deputado Federal Eros Biondini, reeleito, que realizou no último dia 17 de outubro em Brasília esse evento religioso com a presença dos componentes da campanha eleitoral do Presidente da República, também presente no ginásio onde foi realizado. Eventos dessa natureza vão se espalhando pelo Brasil a fora com as bênçãos de lideranças religiosas católicas.
É nesse contexto que nasceu e cresceu a perspectiva do fundamentalismo pentecostal e neopentecostal que visa a ocupação do Estado fazendo crescer práticas de intolerância religiosa e cultural. Nesses eventos nascem os direcionamentos da política nacional e internacional de modo prático. O fortalecimento de lideranças políticas de cunho conservador ligadas à essa perspectiva, fortalecendo estreiteza de compreensão cristã e sectária, vai solapando muitas ações pastorais de Igrejas comprometidas com o Evangelho. Esses mesmos líderes produzem uma “ortodoxia” rígida fazendo crer que eles estão no lado correto da fé cristã, e aos demais que estão do outro lado, são considerados infiéis, hereges e precisam ser excluídos. Trata-se de um movimento de exclusão e não de misericórdia. Dessa forma, a pluralidade deve ser banida.
O que sustenta teologicamente a tendência fundamentalista pentecostal é a Teologia da Prosperidade que defende que a pobreza e a exclusão social são efeitos do pecado e da culpa individual. Por isso é preciso aceitar Jesus. Somente assim se alcançaria a libertação das “forças das trevas”. O segundo pilar que sustenta o fundamentalismo pentecostal é a Teologia do Domínio, que recusa a laicidade do Estado. Defende que o Estado deve ser governado por cristãos, fieis da Bíblia interpretada literalmente. Nesse sentido, cresce a presença da religião na esfera social com eventos religiosos, praças abençoadas, placas religiosas, como elemento central da organização social e domínio, ordem. Jamais de salvação conforme se lê nos Evangelhos.
Nessa relação entre religião e política enraizada no fundamentalismo religioso cresce o caminho da violência presente numa agressiva militância digital fortalecida pela geração de fake News; cresce a violência em torno de um racismo estrutural que inferioriza a maioria da população brasileira (“não há pobres” como nos diz o Presidente da República) instrumentalizada com mecanismos permanentes de dominação; cresce uma violência estética inspirada no fascismo, no nazismo, no integralismo; e cresce uma violência sustentada por uma agenda moral ultraconservadora e projetos politicoreligiosos comuns, inserindo-se na engrenagem social.
Conjuntura Estadual
No plano estadual há alguns posicionamentos institucionais do Leste 3 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Nessas eleições foram publicadas uma Carta Pastoral e uma Carta ao povo capixaba.
A Carta Pastoral dos Bispos do Leste 3 publicada em 18 de agosto de 2022 a esse respeito confirma o crescimento de “muita violência institucional, simbólica e física, além de no panorama das candidaturas muitas delas estão ligadas aos “territórios controlados por milícias e facções do crime”. Trata-se de uma violência que vem de cima para baixo que é a forma como as classes dominantes remodelam a sociedade, em vista de seus interesses. Não há nesse processo de violência nenhuma possibilidade de integração dos setores populares.
Logo no início da Carta os bispos do Leste 3 lamentam profundamente o uso da mentira como arma política e método para arregimentar apoiadores e seguidores e convoca para a leitura da Doutrina Social da Igreja que afirma que “os homens estão obrigados de modo particular a tender continuamente à verdade, a respeitá-la e a testemunhá-la responsavelmente”. Mais lamentável ainda é encontrar católicos, inclusive ministros ordenados, servindo à divulgação da mentira nos mais variados espaços.
Da carta os cincos Bispos do Estado do Espírito Santo, publicada no dia 20 passado, podemos destacar os seguintes pontos:
1. “As mentiras sobre fechamento de Igrejas, o medo, o ódio e a violência política que são disseminadas pelas ruas e pelas mídias sociais não podem calar a verdade do empobrecimento e da fome que a realidade nos mostra, orientando, assim, o agir e o voto dos cristãos. Não podemos admitir que o nosso Estado retroceda na garantia de direitos, na confiança e seriedade das instituições, no combate a toda forma de violência que provoca tanto prejuízo, dor e sofrimento ao povo, principalmente aos pequenos e empobrecidos”.
2. “Quando o voto é iluminado pela fé e a razão e não pela mentira e pelo medo, realiza-se um pacto com os governantes, pelo nosso futuro e pelo futuro de quem amamos, como uma manifestação de nossa vontade de viver num Estado que gera e faz a vida crescer”.
3. “A verdadeira cidadania cristã exige diálogo, respeito, solidariedade e repúdio a toda e qualquer forma de violência, que fere a vida e a dignidade das pessoas”.
Triste também é perceber que nesse meio de candidaturas estão lideranças religiosas cristãs que tem crescido muito nos últimos anos. A mesma Carta Pastoral apresenta dados preocupantes desse crescimento. Desta forma em 2014 tínhamos 344 candidaturas religiosas, passando para 736 em 2018 e atingindo nas eleições desse ano a cifra de 902 candidatos que se apresentaram como pastores (476), sacerdotes e outros títulos (112), irmãos (96), missionário (75). O título de padre apareceu em 12 candidatos.
A Bancada Evangélica tinha por meta eleger 30% da Câmara Federal e com os resultados atuais chega a 115 deputados federais, tendo o maior eleito que foi Nikolas Ferreira com 1,5 milhões de votos. Assembleia de Deus elegeu 24 deputados, a IURD 14 e a Batista 10 deputados. Assim temos o seguinte quadro: 53 de direita/extrema direita, 14 de centro e 8 de esquerda. É considerada a maior bancada, sendo 90% de viés conservador e de direita. Tem função mais ideológica que pragmática e utiliza a religião como pano de fundo para as discussões políticas. Gostaria de destacar a postura do Pastor Henrique Vieira que não se enquadra nesse viés ideológico: “Não faço parte da bancada evangélica. Não estarei em Brasília para defender os interesses da Igreja, não quero que o Estado seja extensão da Igreja e não quero que a Constituição seja expressão da doutrina religiosa”.
Dos resultados dessa eleição depreende-se de maneira muito visível o forte enraizamento da ultradireita como fenômeno mundial e bem forte no Brasil. Isso deve nos levar a pensar sobre suas causas mais profundas e não apenas conjunturais. Nesse aspecto a Igreja Católica necessita tomar conhecimento dessa realidade para poder agir com mais eficiência e tentar frear essa onda, pois o fim já conhecemos em termos concretos na história com o nazismo e o fascismo. É preciso ir muito além do volume emocional das disputas eleitorais, pois esse crescimento está muito enraizado nos ambientes eclesiais tanto evangélicos como católicos.
Muitas hipóteses podem ser feitas na tentativa de explicação do crescimento do fenômeno evangélico pentecostal em sua relação com a Igreja Católica. É inegável o elemento empreendedor alimentando pela teologia da prosperidade. Além disso são bem rápidos na ocupação dos espaços na sociedade civil, enquanto os católicos nem assumem seu perfil religioso. Também tiveram muita capacidade na inovação da linguagem e na observação dos problemas que envolvem as comunidades e na rapidez em buscar soluções.
Cabe perguntar pelo lugar da Igreja Católica nesse panorama. É preciso destacar que é visível uma aliança entre grupos fundamentalistas católicos e evangélicos que sustenta ideais de extrema-direita, com religiosos extremistas, objetivos próprios e pessoais. O grupo de análise conjuntura da CNBB sinaliza também que está havendo uma igualdade entre a necropolítica com uma necrorreligião, que serve como avalista moral do ódio difundido como política pública e de governo.
A transição religiosa
Um movimento que não pode ser desconsiderado como determinante na cultura brasileira é o que se chama transição religiosa. O crescimento das Igrejas pentecostais e neopentecostais é algo marcante nos últimos dez anos. Os novos dados do IBGE devem apontar um declínio ainda maior do número de fiéis católicos. Os prognósticos apontam para uma posição de igualdade numérica em 2040. Nesse processo mais do que circunscrever a preocupação com o quadro numérico em si, há que se preocupar com as pessoas que estão deixando as Igrejas formando o grupo dos desigrejados ou aderindo a outros movimentos religiosos chamados de religiões neopagãs como a Nova Era, a Wicca, o Neoxamanismo, etc.
A transição religiosa está impactando fortemente o modo de conduzir a relação entre religião e política, enfraquecendo o princípio constitucional da laicidade do Estado. Ao mesmo tempo, alterando o modo de proceder das lideranças cristãs que desejam um Estado a serviço de seus interesses eclesiais, um Estado a serviço da fé cristã pentecostal.
Análise de conjuntura eclesial
Em termos de uma análise de conjuntura eclesial, alguns pontos merecem ser destacados. Antes é preciso registrar que nosso propósito é realizar essa análise com a chave de leitura do pontificado de Francisco. Esse recurso metodológico nos ajuda a tomar a análise de conjuntura numa dinâmica que rompe a inércia das análises tradicionais e nos lançam num horizonte eclesial bem mais adequado à história da Igreja ao longo da história. Ele tem dito na visita ad limina Apostolorum aos Bispos em Roma para não terem medo.
Temos que destacar a forma como o Papa Francisco recebe como herança pesada que foram as revelações e os escândalos de abusos sexuais por parte dos clérigos e religiosos, e o vazamento dos escândalos financeiros no Vaticano. Francisco reposicionou de maneira clara, rigorosa, sem fazer concessões, abrindo a Igreja para os novos modelos de tratar de questões como essas, a maneira transparente e justa.
A Igreja também assume dianteira no conjunto mundial as graves questões como a precipitação de eventos climáticos, as tensões políticas como as Guerras consideradas e tratadas como III Guerra Mundial “em pedaços, em capítulos”. Nessas questões a Igreja tem se mostrado em movimento de ir ao encontro dos problemas e enfretamento com coragem.
Internamente a Igreja vive experiências de tensionamento com grupos abraçando símbolos antigos deleitando-se em grandes práticas religiosas que expressam profunda saudade. Contudo, são experiências ultrapassadas de dois séculos atrás. Outro grupo age no sentido de evangelizar para trazer as pessoas de volta para a Igreja. E um terceiro grupo caminha numa visão de Igreja samaritana e dialogal.
Nesse contexto, dois fatores são determinantes para uma análise de conjuntura que não se prenda em juízos a respeito de cada grupo. Em primeiríssimo lugar há que se destacar a identidade do pontificado de Francisco. Não é por acaso que ao ser eleito ele toma o nome de Francisco. Ousadia? Talvez. Na verdade, ele está na sintonia do que se passava com os cardeais que o elegeram. O desejo do colégio de cardeais era e continua sendo a escolha de um pontífice que conduza as reformas da Igreja. Logo se apresenta como Bispo de Roma e assim aponta o caminho a ser trilhado doravante. Será com a colegialidade episcopal que o caminho das reformas seguirá nos trilhos da sinodalidade, que é o caminho da Igreja desde os tempos primitivos.
O segundo ponto determinante para essa análise não pode desconsiderar a convocação do Sínodo dos Bispos, situado nas entranhas da sinodalidade. A Igreja desde então está em tempo sinodal, de escuta de cada comunidade eclesial, cada paróquia, cada pessoa, diocese, continente, até chegar em Roma em outubro de 2023. A conjuntura eclesial universal assim está marcada pelas Reformas do Papa Francisco que serão continuadas nos próximos pontificados uma vez que na Igreja católica as reformas são longas, demoradas, muito discutidas. Francisco nos diz que é preciso ter paciência e seguir com pressa. O segundo marco dessa conjuntura eclesial é e está sendo o caminho sinodal. Portanto, nossas análises a seguir seguirão esse caminho. Dessa forma, qualquer questão particular da Igreja local será objeto de análise na medida em que não se enquadram nesse reposicionamento interno da Igreja. Sem essas duas referências corremos riscos sérios de nos dividir, numa guerra fratricida. Ao mesmo tempo, essas análises nos retiram da inércia.
O arcabouço em torno desses dois pontos referenciais é a Reforma da Igreja que pela primeira vez no período pós-Vaticano II que um papa recebe a eclesiologia do Vaticano II e a expande no sentido da sinodalidade e da descentralização. Ao reestruturar a Cúria romana essa eclesiologia é essencial, senão iriamos continuar uma Cúria vista como lei em si mesma, autorreferencial e altiva. Daí ser necessário repensar a eclesiologia da Cúria a partir da conversão pastoral e da pastoralidade do governo da Igreja. Estamos assim diante de uma Roma em missão, uma Cúria sinodal marcada pela reciprocidade e participação.
O princípio que guia essa reforma é muito simples e isso implica a escuta sinodal das Igrejas particulares. O que afeta a todos deve ser discutido por todos. Não tem sentido uma paróquia nesse tempo de escuta sinodal ignorar as comunidades transferindo a responsabilidade para os conselhos paroquiais ou mesmo para a secretaria paroquial para que respondam à questão fundamental.
Outro elemento chave nesse novo contexto eclesial diz respeito ao governo da Igreja em dois perfis: o poder na cúria é exercido vicariamente, ou seja, é exercido em nome do Papa, cada cargo ou função está em ser delegado do Papa. O segundo elemento do perfil de governo é que ele não deve ser exercido em vista do sacramento da ordem, mas da missão canônica. Há que se distinguir o que deve estar nas mãos do padre em razão do sacramento da ordem e o que é apenas por ordem canônica e não sacramental. Aqui o clericalismo recebe um golpe fatal que deverá levar à morte esse exercício centralizado do poder.
Por fim, nessa reforma da Cúria se exige o chamado de pessoas que devem se distinguir não pela altivez e arrogância, poder de mando, mas por sua vida espiritual, por sua experiência pastoral, por sua sobriedade de vida e amor aos pobres, por sua competência técnica e capacidade de discernimento, servindo com espírito de colaboração e corresponsabilidade. Podem ser chamados bispos, padres, diáconos, leigos, leigas, mas sempre no espírito de serviço e missão. Acabam-se os cargos vitalícios e após cinco anos a pessoa chamada retorna para sua diocese de origem. Essa forma, a função da Cúria romana é essencialmente pastoral.
Conjuntura eclesial local
Essas reformas devem implicar cada diocese do mundo inteiro. Na escuta realizada na Arquidiocese de Vitória diversas falas estão situadas nos problemas entranhados por uma eclesiologia pré-Vaticano II.
Nosso caminho nessa análise de conjuntura toma o caminho do geral para o particular e assim chegamos para um olhar sobre a nossa realidade eclesial na Arquidiocese de Vitória. Antes de tudo é preciso destacar a longa história, sobretudo pós-Vaticano II com destaque para as Comunidades Eclesiais de Base, a Grande Avaliação que definiu como opções fundamentais – pelos pobres e pelas CEBs – a serem concretizadas com a participação dos leigos, com a ligação entre fé e vida, e a luta pela transformação social. Ainda devem ser destacados a realização do I Sínodo Arquidiocesano que fez um longo processo sinodal com escuta em cada comunidade e a realização dos planos pastorais partindo das paróquias e comunidades, passando pelas áreas e chegando na assembleia arquidiocesana. Dessa forma, temos uma análise de não apenas se debruça sobre o presente, mas olha para o passado, para a história construída e para o futuro.
Uma Igreja mais sinodal se constitui com o povo, os padres e os bispos caminhando juntos em missão. As reformas da Igreja devem ir criando estruturas nessa direção, embutindo em todos os setores um processo de renovação que vai durar mais que o pontificado de um papa. O Papa Francisco apenas está reinicializando a Igreja, sem acrescentar absolutamente nada, configurando a Igreja para funcionar de maneira otimizada. A pandemia impulsou a Igreja para dentro da revolução digital e tecnológica criando novas oportunidades para a Igreja que se tornasse mais ágil e criativa. A escuta de todos os batizados conforme foi solicitada mostra que o Sínodo está buscando o sensus fidei. Há muitas dificuldades que mistura resistência, inércia, medo e incerteza. A Igreja local está sendo instruída a encontrar sua própria voz. Estamos desenvolvendo uma mudança de cultura. É normal o medo de que os sínodos provoquem tensões, desacordos e dificuldades.
Os sínodos de 2014 e 2015 sobre a família, de 2018 sobre os jovens e de 2019 sobre a Amazônia se apresentaram mais como fóruns de discussão livre e discernimento genuíno. Muitos temem os sínodos na perspectiva da sinodalidade achando que se assemelha a um cavalo de Troia para a mudança ou veículo para promover mudanças que se acha necessário. No passado, a unidade era mantida fortalecendo a autoridade dos pastores. Hoje manter a comunhão requer circularidade, reciprocidade, caminhar juntos. Como o Papa diz, trata-se de uma harmonia da diversidade, enquanto o inimigo quer que a diversidade se transforme em oposição tornando-a ideologia. A verdadeira reforma vem por meio do consenso.
Os desafios do mundo atual só podem ser enfrentados através de um caminhar juntos, sob a condução do Papa Francisco representado na Igreja local pelo Bispo/Arcebispo. Preservar a colegialidade episcopal em uma “Igreja em saída”, em unidade, e com todo o povo de Deus, por isso em caminho sinodal, será a forma com a qual a Igreja católica deverá se conduzir para o futuro imprevisível e incerto. Em nossa conjuntura particular da Arquidiocese de Vitória chama-nos a atenção a resposta dada pelas paróquias na escuta realizada ao longo desse ano. Foram encaminhadas 66 sínteses das paróquias, e algumas com formato de resposta burocrática dada por alguém responsabilizado pelo pároco. Contudo, o dado mais preocupante está no fato de 21 paróquias não terem enviado nada e 4 enviaram a síntese depois do prazo dado quando já havia sido concluída a síntese arquidiocesana pela equipe.
Participação na sociedade
Considerando que isso se refere à participação na cidade – urbano, civil, público – ou seja, a tudo o que se refere a nós, a nossa cidade, à nossa rua, ao nosso Estado, ao nosso País. Não se trata apenas de participação em tempos de eleição, que é o interesse de quem está no comando da sociedade. Participação está relacionada com democracia. Trata-se da cidadania, das lutas pelo direito. Vejamos como isso está presente em nossas comunidades num testemunho dado por uma paróquia:
“Percebemos que nossa comunidade paroquial já foi mais engajada e participativa naquilo que se refere a vida pública. Já tivemos muitas lideranças engajadas politicamente em prol de melhorias em nossa realidade. Infelizmente, nos últimos tempos observamos certa apatia dos fiéis em relação aos temas ligados a política e cidadania. Poucos são os que participam de associação de moradores e sindicatos. Percebemos que não temos pessoas preparadas em nosso meio para exercer uma função pública. Não raras vezes, a aproximação com os políticos se dá motivada por algum interesse de ordem pessoal”.
Para evitar as participações manipuladas, decorativas e simbólica – para inglês ver – a educação é o esteio da formação. De maneira mais detalhada, em tempos de tanta informação circulante torna-se essencial informações verdadeiras e seguras e desenvolvimento do senso reflexivo nas pessoas aliado ao pensamento crítico entre o povo. Portanto, há uma demanda grande por melhor formação para a atuação social. A Escola Fé e Cidadania está dando passos e promovendo capacitação.
Qual a herança desse período de campanha eleitoral?
Em termos de uma conjuntura religiosa e eclesial, o Brasil pós-eleitoral terá um saldo muito negativo em decorrência da manipulação religiosa que desvirtuou descaradamente os valores do Evangelho, retirando o foco dos reais problemas da sociedade brasileira. A intensificação da exploração da fé e da religião para angariar votos e garantir o poder da aliança não deverá desaparecer de nosso meio. O lado perverso desse movimento é que o país que não atingiu a meta de vacinação contra a poliomielite, que tem 30 milhões na pobreza, que tem um estupro a cada 10 minutos, e um feminicídio a cada 7 horas, desapareceu de todas as pautas eleitorais e propostas de governo.
Estamos diante de um projeto de cristandade como já conhecemos desde os tempos de Constantino, quando a liberdade dos cristãos implicou o crescimento dos privilégios, apoio na construção de catedrais e basílicas, dispensa de impostos dos bens religiosos, líderes religiosos equiparados a altos funcionários do Estado, a Igreja fica livre para receber doações em qualquer espécie sem prestar conta ao fisco e a constituição de tribunais próprios para jugar os infiéis. Temos visto o crescimento do número de pastores com isenção de impostos pessoais, compra de Bíblias e barras de ouro por parte do Estado para ajudar na construção de Igrejas, aumento absurdo de passaportes diplomáticos para líderes religiosos, isenção de tributação do lucro das Igrejas. A religião tornou-se interlocutora da política perante a sociedade em pé de igualdade.
Ao mesmo tempo é preciso duvidar que 43% da população brasileira seja de extrema direita. Na verdade, há um Brasil profundo que está no interior do bolsonarismo. Este é muito mais que um fenômeno político. É antes de tudo um fenômeno sociocultural. Nesse Brasil profundo estão os elos entre desejos e pensamentos escondidos ao ódio que vocifera no bolsonarismo.
Esse Brasil profundo está eclodindo no interior das Igrejas, nas celebrações, no controle das homilias dos padres, na liberdade religiosa. A direita tem tido mais capacidade de produzir uma narrativa agregadora de estabilidade social ao alavancar valores tradicionais e conservadores. Por outro lado, a esquerda tem tido mais dificuldade para proceder a transição para as formas sociais, políticas, econômicas e culturais mediadas por digitalização, redes e plataformas virtuais interativas.
Como dissemos no início a análise de conjuntura deveria não apenas contribuir com o conhecimento da realidade mas servir para uma força de empuxo em que se fortalecem as ações de aglutinação, da união, de caminho conjunto de pessoas e grupos, fazendo passar pelas turbinas sociais, o que forçaria obrigatoriamente o movimento para frente. A estagnação e o desânimo são as doenças, os defeitos das turbinas. Nossas sociedade está com diversas naves adoecidas, enfraquecidas. Escola enfraquecida. Movimentos sociais enfraquecidos. Comunidades enfraquecidas e até doentes. Um empuxo social, mesmo reunindo poucas correntes de vento, irá alavancar movimento de decolagem da ação transformadora da sociedade.
Ao modo de concluir:
um poema apocaliptico
Quando se esgota a força do bem comum
Logo vem taxado de ideologia comunista
Quando o amor à vida cede lugar o culto a morte
Quando o pão que mata a fome deixa de ser necessidade
Quando governar se transforma na arte de odiar
Quando gestos de carinho se tornam abomináveis,
Quando amar se torna modo de dominar,
Quando a homilia do padre é censurada por seus fieis
Quando o vermelho litúrgico das vestes, símbolo do martírio, é contestado,
Quando armar toma o lugar do amar
Chegamos no modo apocalíptico,
Tocamos no Brasil profundo.
As bestas se erguem das profundezas de cada um de nós
E assumem o trono da utopia.
Hoje compreendi mais um pedaço da filosofia de Thomas Hobbes.
Segurem e prendam os lobos,
Pois os cordeiros estão pastando.
Pastores mudaram sua voz,
As bestas se erguem das profundezas de cada um de nós
E assumem o trono da utopia.
Hoje compreendi mais um pedaço da filosofia de Thomas Hobbes.
Segurem e prendam os lobos,
Pois os cordeiros estão pastando.
Pastores mudaram sua voz,
As ovelhas não mais os reconhece.
Queimaram os santos livros.
Profanaram os templos do Senhor.
A política não é lugar de profetas,
Mas carece muito deles.
Nessas horas, o testemunho da fé.
Vigiai e orai, pois não sabeis a hora!
A oração foi um dos modos de força de empuxo que Jesus ensinou a seus discípulos sob a forma de Pai Nosso, e nunca de um Deus acima de todos. O Pai e o Pão são nossos, e nossa força de empuxo.