O cristianismo se constituiu a partir do fato novo e radical que Jesus apresenta ao mundo no seu mistério Pascal. Caso a ressurreição não fosse um fato histórico – ainda que não em sentido positivista – Ele seria apenas mais um entre tantos judeus condenados à crucifixão. Porém, a ressurreição muda tudo, mudou naquele tempo, e muda hoje também. A ressurreição não mudou apenas os rumos da história, mas ecoa ainda hoje, mudando horizontes, dando novo sentido e novo vigor a todas aquelas vidas que a Vida alcança. No entanto, não nos iludamos, Ele não vai entrar em nossas Igrejas, casas ou trabalho mostrando suas chagas, seu lado, comendo um pedaço de peixe ou de pão. É preciso, e as próprias Escrituras nos ensinam isso, aprender a reconhecer a presença do ressuscitado em nosso meio, através de elementos que Ele mesmo constituiu. Um dos mais belos modelos dessa nova forma pós-pascal de experimentar o encontro com Jesus está narrado no Evangelho de Lucas, o episódio dos discípulos de Emaús.
Após o processo de prisão, condenação e morte de Jesus, seus discípulos ficaram desorientados, eles mesmos tiveram seus sonhos frustrados, foram tomados pelo medo de ter o mesmo destino de Jesus, e se esconderam ou começaram mesmo a dispersar. Ora, aos olhos de quem ainda não compreendeu o amor de Deus que se manifesta no mistério pascal de Cristo, não é possível reconhece-lo. “Eis que dois deles viajavam nesse mesmo dia para um povoado, chamado Emaús, a sessenta estádios de Jerusalém; e conversavam sobre todos esses acontecimentos. Ora, enquanto conversavam e discutiam entre si, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles: seus olhos porém estavam impedidos de reconhece-lo.” (Lc 24, 13-16). Não são mais os elementos físicos, das feições, da entonação de voz que determinarão a presença de Jesus. Assim, os discípulos, que ainda não compreenderam a história da salvação, relatam ao forasteiro os eventos dos últimos dias, e como suas esperanças foram frustradas com aquele grande profeta que morrera na cruz.
Sem a compreensão da ressurreição, sem o encontro consciente com o ressuscitado, o relato é frio, sombrio, desesperador. Assim também acontece conosco, não se trata de uma limitação ou maldade da parte de Deus, ele sempre se coloca no caminho ao nosso lado, sempre caminha conosco, ‘está no meio de nós’, mas para que nossa vida adquira um sentido, um rumo novo, é preciso reconhece-lo, experimentá-lo. “Ele, então, lhes disse: ‘Insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas anunciaram! Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?’ E, começando por Moisés e percorrendo todos os Profetas, interpretou lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito.” (Lc 24, 25-27). Aqui temos um primeiro elemento pelo qual a presença do ressuscitado começa a se manifestar: a Palavra; toda a Sagrada Escritura precisa ser lida à luz do ressuscitado, tudo brota dEle, Verbo de Deus pelo qual o mundo foi criado, e leva a Ele, consumador dos tempos, redentor do mundo, salvador. A Palavra não é a narrativa de eventos remotos, mas um modo pelo qual Deus permanece em nosso meio, uma história de amor que orienta nossa caminhada. Desta primeira forma de reconhecer Jesus presente em nossa vida, brota então um desejo: “Aproximando-se do povoado para onde iam, Jesus simulou que ia mais adiante. Eles porém, insistiram, dizendo: ‘Permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina.’ Entrou então para ficar com eles” (Lc 24, 28-29). Quem experimenta a Palavra, não como um livro, mas como uma pessoa experimenta o desejo de permanência, isto é, não quer sair da presença dessa pessoa. O Verbo de Deus reage ao coração aberto, anima o desejo de eternidade, uma eternidade na presença e no amor de Deus.
Há ainda um segundo modo bem concreto pelo qual o ressuscitado passa a ser reconhecido. Na ceia antes da Paixão, Jesus insere uma novidade na vida de seus discípulos, um meio pelo qual Ele sempre estará presente entre Eles, vivificando e animando a vida da Igreja que nasce. Esse gesto da ceia se institui como memorial, uma força que não permanece apenas na memória dos discípulos, mas atualiza constantemente a presença do Senhor na vida de seus discípulos: “E uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e deu-o a eles. Então seus olhos se abriram e o reconheceram; ele, porém, ficou invisível diante deles.” (Lc 24, 30-31). O gesto memorial é a prova cabal, que com sua força renovadora abre os olhos dos discípulos para a realidade que está diante deles. Eis a força desta segunda forma de reconhecer o ressuscitado: através do gesto, os olhos se abrem para ver, experimentar a vida nova. A experiência de encontro com o ressuscitado não anula a experiência da cruz, mas lhe dá um novo sentido, um novo rumo, uma nova vida.
Por fim, uma terceira forma pela qual nos encontramos com o ressuscitado, a forma mais pessoal, ao mesmo tempo dependente das duas anteriores: “E disseram um ao outro: ‘Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?’” (Lc 24, 32). O ardor no coração que brota pela força própria de atração que o discurso de Jesus tem, e se concretiza no gesto memorial, é uma força geradora que coloca nossa vida em um movimento novo. O coração que arde por se encontrar com o Senhor não pode permanecer estático, mas deve anunciar, transbordar, transmitir essa verdade e amor ao mundo. A consequência de sentir o coração arder é encher-se de uma coragem que vem de fora, que vem dAquele que venceu a morte. O medo da morte não tem mais sentido, e por isso, com o coração ardendo, os discípulos voltam: “Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém. Acharam aí reunidos os Onze e seus companheiros, que disseram: ‘É verdade! O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!’ E eles narraram os acontecimentos do caminho e como o haviam reconhecido na fração do pão.” (Lc 24, 33-35). Um coração ardente é sinal do amor, dá ânimo, vigor, coragem e tudo isso transborda em Kerigma: Ele está no meio de nós.
Estejamos atentos, aprendamos a reconhecer Jesus pelos meios dos quais Ele usa para se colocar a caminho conosco. Uma verdadeira experiência de Deus não é aquela que nos arranca de nossa realidade e caminho de maneira violenta e muitas vezes irracional. Deus se coloca no caminho e se reconhecemos sua presença pela Palavra, desejaremos permanecer com Ele, se o experimentamos no partir do pão, o veremos, e se o nosso coração arder, o anunciaremos sem medo. Permitamos que o ardor tome conta de nosso coração, que o Pão nos sustente, e que a Palavra nos permita permanecer com o Senhor.
Abra a Porta e Hiago Fonte Boa
Enviado por Abra a Porta em 07/05/2021
Reeditado em 07/05/2021
Código do texto: T7250171
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.