A VERDADEIRA ORIGEM DO TOTALITARISMO

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A filósofa política Hannah Arendt, em sua obra monumental intitulada “As origens do totalitarismo” (1951), explica que, para que um governo possa ser considerado totalitário, é indispensável que se realizem contemporaneamente pelo menos as seguintes condições:

1) Presença de uma ideologia dogmática e falsamente utópica;

2) Existência de um partido único defensor dessa ideologia;

3) Concentração de todo o poder nas mãos de um ditador, expressão desse partido;

4) Polícia política secreta, onipresente e onipotente, a serviço exclusivo do ditador;

5) Uso extensivo do terror de massa.

Esse último ponto é fundamental e, não tendo sido realizado durante o fascismo italiano, o regime liderado por Benito Mussolini, embora bastante iliberal, não pode ser considerado totalitário.

Do ponto de vista histórico a primeira manifestação concreta e completa de totalitarismo foi registrada durante a Cruzada Albigense (1209-1244) durante a qual todos os cinco requisitos propostos por Hannah Arendt foram satisfeitos. Em particular:

1) Ideologia judaico-cristã, utópica, rigidamente dogmática e totalizante;

2) A Igreja, considerada come partido único, defensora da mencionada ideologia;

3) Todo o poder nas mãos do Papa e, no caso em exame, também do rei de França;

4) Ação repressiva da Inquisição a serviço do Papa;

5) Extermínio indiscriminado de pelo menos um milhão de pessoas naquilo que a maioria dos historiadores considera o primeiro genocídio da história europeia.

Nos séculos sucessivos, apesar dos horrores da Inquisição ou das Guerras de Religião, não se assiste a nenhum evento que possa ser considerado expressivo de um Estado totalitário, pelo menos até o ano de 1793 quando eclodiu a Guerra de Vendeia travada entre católicos monarquistas e republicanos jacobinos. Mais uma vez os axiomas estabelecidos pela filósofa judia são respeitados:

1) A ideologia é representada pela utopia revolucionária sintetizada pelas palavras “Liberté, Égalité, Fraternité”;

2) O partido dominante e custode dessa nova ideologia foi o Clube Jacobino que, apesar de ter governado a França durante apenas um ano, tornou-se o maior responsável dos massacres da fase histórica conhecida como “Terror”, durante a qual foram guilhotinadas entre 200 e 300 mil pessoas;

3) Todo o poder se encontrava nas mãos do fundador desse Clube, o advogado Maximilien de Robespierre, chefe da Convenção Nacional;

4) Embora não existisse uma verdadeira polícia secreta, os soldados republicanos agiram de forma ilegal, prendendo, torturando e matando indiscriminadamente sem processo.

O ponto 5 (o terror de massa) merece ser analisado nos detalhes para mostrar ao leitor como os métodos usados contra a população civil da Vendeia não diferiram daqueles usados pelas tropas nazistas. Sob o comando do líder revolucionário Jean-Baptiste Carrier, as tropas, recrutadas entre os elementos mais fanáticos e até entre criminais comuns, visando exterminar o maior número possível de rebeldes, utilizaram fuzilamentos de massa, tentaram usar gases tóxicos e explosivos, envenenaram os poços, lotaram bateis de inimigos afundando-os no rio Loire. Carrier inventou também os “casamentos republicanos” nos quais, um homem e uma mulher, ambos nus, eram atados juntos e afogados nos rios; esse tratamento era reservado preferencialmente aos religiosos: um padre, amarrado com uma freira, era jogado nas águas geladas do rio.

Entretanto, a violência mais cega e brutal foi reservada às mulheres e às crianças, no claro intento de não apenas reprimir a revolta, mas de extirpar a população da Vendeia. Sabemos de casos em que mães com seus filhos pequenos foram jogadas em fornos preventivamente aquecidos e que as tropas se deliciavam ouvindo seus gritos de dor. Na cidade de Clisson, os soldados mataram 150 mulheres e as queimaram até extrair dez quilos de gordura. Numerosos recém-nascidos foram perfurados com as baionetas, enquanto mulheres grávidas foram esmagadas com prensas ou esquartejadas. Inúmeras jovens sofreram estupros antes de serem estripadas. Pele humana foi curtida para fabricar acessórios, exatamente como aconteceu nos campos de concentração nazistas. Em tudo, foram registrados 118 massacres e ainda hoje, ocasionalmente, são descobertas valas comuns. Duzentos mil mortos em nome da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade com a desculpa de realizar a República que teria proporcionado felicidade à população da França.

Então, se Carrier (guilhotinado em 1794 pelos crimes cometidos na Vendeia) foi um “filho” da Revolução Francesa, quem seria o pai ideológico da mesma? Surpreendentemente, foi o iluminista calvinista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor de textos fundamentais come “O Contrato Social” considerado, justamente, a "Bíblia da Revolução". De acordo com Michel Onfray, Rousseau forneceu os elementos tóxicos para o surgimento de uma nova sociedade que, na tentativa utópica de aperfeiçoar a humanidade, gerou a matriz dos futuros totalitarismos responsáveis de dezenas de milhões de mortes.

De fato, já no começo de seu livro intitulado “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, o filósofo genebrês declara de querer descartar os dados objetivos preferindo trabalhar a partir de axiomas, postulados e hipóteses que, aos seus olhos, se transformam em verdades absolutas, ou seja, em dogmas. Em seguida, no Contrato Social, Rousseau postula a necessidade de obrigar o cidadão a respeitar a vontade da maioria, forçando-o a “ser livre”. Qualquer pessoa recuse essas condições representa um perigo para o Estado e, consequentemente, um dos dois deve desaparecer: ou o Estado, ou o rebelde. Mas como a queda do Estado significaria um grave prejuízo para a sociedade, deve ser o rebelde a sucumbir. Quem não concordar com esse Contrato terá apenas duas alternativas: partir para o exilo ou morrer. Em outras palavras, o Contrato Social afirma que, para um homem ser realmente livre, deve deixar de querer livremente, e a sua vontade deve se conformar à vontade da maioria, sob a ameaça de pena capital.

A História mostra como, realmente, uma parte da Revolução Francesa, aquela que tentou obrigar os cidadãos a serem livres, realizou o programa rousseauniano com as baionetas, a guilhotina, os afogamentos, os estupros, as torturas e os pelotões de execução. Quem, tendo apenas um conhecimento superficial e sectário da História, continua atribuindo os horrores da Revolução Francesa ao ateísmo, deveria considerar que Rousseau era cristão e que, na sua opinião, do ponto de vista legislativo as leis deviam ser aprovadas pela religião e utilizadas de forma cívica considerando que "Um bom cidadão será um bom religioso". Até o próprio Robespierre (o líder sedento de sangue que reintroduziu a tortura abolida pelo pacífico rei Luís XVI), maior responsável do derramamento de sangue na França revolucionária, estabeleceu o Culto do Ser Supremo condenando o ateísmo dos radicais, Jacques Hébert e Joseph Fouché, entre outros.

Rousseau abriu o caminho à maioria dos pensadores contemporâneos justamente quando convidava os filósofos a elaborar suas teorias desconsiderando os fatos concretos. Nesse sentido, o marxismo representou a máquina mais eficiente para eliminar os dados objetivos em prol da ideologia. Não precisa listar novamente as monstruosidades do marxismo-leninismo que, ao longo do século XX, irão produzir cerca de cem milhões de mortos, mas é oportuno esclarecer que considerar o cristianismo como sendo antitético ao totalitarismo revolucionário (francês ou russo), não corresponde à verdade não apenas porque, come acabamos de ver, a religião cristã gerou o primeiro totalitarismo histórico, mas, principalmente, por motivos de continuidade ideal.

De fato, assim como Rousseau, também Marx reproduziu fielmente o esquema judaico-cristão de culpa e redenção. Para Jean-Jacques Rousseau, a culpa era a propriedade; para Robespierre, Marat e Fouché, era a classe dos ricos; para Marx, era o capitalismo e, para Lenin, a burguesia. Por outro lado, a salvação consiste na igualdade que, segundo Rousseau, é estabelecida pela lei mediante o Contrato Social; em seguida, a "salvação" foi atuada com os canhões de Fouché, com a guilhotina de Marat, com o Tribunal revolucionário de Robespierre, com a redenção na revolução de Marx e com o arame farpado dos campos de concentração do marxismo-leninismo.

Pensando bem, a base teorética do totalitarismo deísta ou ateu é, basicamente, a mesma do cristianismo e consiste na convicção da existência de um pecado original, entendido como desobediência a Javé na visão judaico-cristã, e na propriedade para Rousseau e Marx; para eles o resgate é realizado com o triunfo do proletariado por meio do comunismo que representa o ponto final da História da humanidade. Os propósitos da escatologia incluem -para os discípulos de Cristo- a ressurreição da carne e o paraíso. Para os rousseanos e os marxistas a redenção se concretiza com a vitória do proletariado, o desaparecimento das classes e o fim do estado. Destarte, de uma certa forma, o proletariado desempenha o papel que Cristo desempenha na cristandade.

Para o cristianismo como para o marxismo, o tempo é linear e escatológico, direcionado à realização de um grande projeto humano ou divino. Portanto, a História nunca pode regredir e há somente progresso, mesmo que isso signifique violência, guerras, cruzadas, mortes e Gulag: a Inquisição é progresso, a guilhotina é progresso, o massacre na Vendeia é progresso, a polícia política é progresso, o terror de massa (elaborado por Lenin já em 1905) é progresso porque tudo converge na direção privilegiada da História, a única possível. Isso mostra que o cristianismo, mesmo sendo oponente do ateísmo marxista, não é a sua antítese, mas um ramo diferente da mesma árvore, a constituída pelo conceito de culpa e redenção.

O leitor interessado poderá facilmente verificar como os cinco pontos que definem o totalitarismo sejam plenamente satisfeitos no caso dos regimes comunistas, a partir de Lenin para chegar à atual Coreia do Norte, passando por Stalin e Mao Tse Tung.

Resta a definir o caso do nazismo, outro grande totalitarismo do século XX. Ele se diferencia do regime stalinista por alguns pontos importanes, principalmente no que diz respeito ao terror de massa, atuado, come reconheceu a própria Hannah Arendt, somente depois do começo da Segunda Guerra Mundial com o extermínio dos Judeus. Pelo resto, também para Hitler há um pecado original representado pela presença dos israelitas na sociedade europeia, por eles constantemente deturpada e corrompida: a redenção se realiza facilmente com o aniquilamento físico de todos os Judeus. Destarte, a sociedade ariana, finalmente livre da causa de todos os seus males poderá alcançar a felicidade. Em suma, o marxismo coincide com a fase final e suprema da luta de classe; o nazismo com a fase terminar da luta de raça, mas os métodos são os mesmos e se resumem no extermínio do inimigo.

Antes de terminar, é oportuno esclarecer uma questão que ainda hoje é usada por muitos crentes para discriminar entre cristianismo e nacional-socialismo. Se, por um lado, é verdade que muitos dos hierarcas do Terceiro Reich como, por exemplo Himmler e Rosenberg, cultuaram um paganismo de matriz nórdica, o mesmo não se pode dizer de Hitler. O Fuhrer jamais foi ateu, pagão ou anticristão. Já nas primeiras páginas do Mein Kampf, ele afirma que a instrução católica e a educação religiosa tiveram um papel fundamental na sua formação e nunca escreveu ou disse nada contra Jesus chegando, sempre no Mein Kampf, a mostrar admiração por Cristo quando caça os mercantes (mercantes judeus!) do templo. Lembramos, “en passant”, que esse livro nunca entrou no Índice dos Livros proibidos pela Igreja Católica.

Nem há dúvida alguma que Hitler acreditava em Deus; ele foi um deísta, mas também um católico, até um fideísta que nunca desistiu de citar a Providência que o guiava e o protegia, como em ocasião do atentado de 20 de julho de 1944, em Rastenburg, quando sobreviveu à bomba que matou quatro de seus colaboradores deixando-o praticamente intato. Se existe um lado da religião cristã que Hitler não gosta é o pacifismo dos Evangelhos, no entanto, quando imaginava o nacionalsocialismo, não o imaginava ateu, agnóstico e, muito menos, pagão, mas como uma forma de cristianismo agressivo, no estilo de S. Paulo, com a espada na mão, apto a conquistar o mundo para impor a superioridade da raça alemã representada pela figura ariana de Cristo: alto, loiro e de olhos azuis.

Quando Hitler cogiatava a criação do Terceiro Reich, ainda pegava como exemplo o cristianismo, que «não se contentou de construir o seu próprio altar: teve que proceder com a demolição dos altares pagãos. Apenas a partir desta intolerância fanática, soube forjar a fé apodíctica, da qual a intolerância é precisamente a premissa indispensável». A religião cristã era compatível com o Nacional-socialismo, ao contrário de Judaísmo, que Hitler considera acima de tudo uma religião separatista dentro da nação. Um católico e um protestante podiam ser antes de tudo bons alemães; um judeu, não, porque ele sempre será um judeu e, como tal, incompatível com o projeto de um o nacionalismo integral, até se tornar um obstáculo para a unidade orgânica do povo germânico. Falando do judeu, Hitler escreveu: «A sua vida está tão longe do nosso mundo, e o seu espírito longe do Cristianismo, assim como o era dois mil anos atrás em relação ao fundador da nova doutrina. Ele [Jesus] não escondeu a sua opinião ao povo judeu, e até pegou o chicote para caçar do templo do Senhor esses negadores da humanidade, que já naquela época viam na religião um meio para fazer excelentes negócios. Por esse motivo Cristo foi pregado na cruz». Objetivamente, há uma intenção anticristã nessas palavras? Uma declaração ateísta? Uma crítica ao clero? Uma diatribe pagã? Nenhuma!

Por outro lado, todo o Novo Testamento sustenta a postura antissemita do Fuhrer. No Evangelho segundo João, o próprio Jesus afirma que os judeus têm "o diabo por pai" (João 8:44). Os outros Evangelhos também abundam de versículos antissemitas: cerca quarenta em Marcos, oitenta em Mateus, cento e trinta em João e cento e quarenta nos Atos dos Apóstolos. Este Cristo que não ama os judeus torna-se, aos olhos do Fuhrer, o grande «fundador da nova doutrina» e esta nova doutrina, justamente por ser antissemita, é verdadeira. Portanto, a doutrina cristã não apenas é compatível com o Nacional-socialismo teórico e prático, mas é complementar. Com a diferença que, na ideologia nazista, o chicote de Cristo se transforma nas câmaras de gás.

Durante toda a Antiguidade pagã, nunca emergiu a ideia de um tempo linear (que não existe na natureza), e a orientação pitagórica era tudo menos que uma filosofia antropocêntrica. Tendo como referência os ciclos da natureza com seu horizonte intransponível também para o homem, o conceito cíclico do tempo obrigava os seres humanos à adesão sagrada a estes ciclos ao passo que sua distorção com base nos planos de "desenvolvimento" era impensável. Em última análise, os Antigos não podiam ter um conceito linear da História: a sua visão cíclica excluía desde o início algo semelhante ao progresso ilimitado da razão, excluindo, destarte, a arrogância, o titanismo, a ganância atávica que pode conduzir o homem à sua destruição.

Infelizmente, com a afirmação do pensamento judaico-cristão, ou seja das religiões abraâmicas, surgiu a visão de um tempo que flui segundo uma linearidade irreversível guiada pela Providência. A secularização do dogmatismo escatológico resultou na geração das modernas ideologias materialistas e, nesse aspecto, quase todas elas podem ser consideradas heresias cristãs. Isto porque é exatamente a partir da secularização da concepção cristã da história, hibridizada com o messianismo, que vieram o pensamento de Rousseau e de Marx (e, de uma certa forma, o de Hitler), baseados na convicção de que o devir histórico constitui a única realidade e que é com o progresso material e social que o homem é capaz de atingir a perfeição representada por um utópico paraíso terrestre. Custe o que custar, essa meta final deve ser alcançada com todos os meios até, se necessário, com milhões de mortos.

Entretanto, não todas as mentes se deixaram seduzir por essa filosofia distorcida; entre elas, é oportuno lembrar a postura de Cecília Meireles que recusou o tempo linear escatológico considerando-o gerador de sofrimento, de pessimismo e de fim inelutável. Na poesia de Cecília, o tempo se anula ficando como suspenso; o eu-lírico enfatiza a possibilidade de uma existência para além do mundo material, uma existência que se torna palpável e perceptível justamente por meio da materialidade. Destarte, a poetisa flutua acima dos sentimentos, flutua além do espaço e do tempo e, idealmente, se coloca no centro do instante que, para ela, não é estático, mas se estende para o infinito como expresso no poema “Motivo”:

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 15/04/2021
Código do texto: T7232754
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