A figueira, a moeda e o templo

Jerusalém. Terça feira, 6 de abril de 27 (1)

Existe um professor espanhol muito conceituado em Filologia Bíblica chamado Antônio Piñera, vinculado às universidades Complutense de Madrid e de Salamanca, que trabalha com a hipótese de que na verdade os textos dos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas) provém de um presumido texto proto-Marcos (a chamada "fonte Q", desconhecido) e que tal autor teria possivelmente feito uma síntese da Paixão de Cristo na semana da Páscoa de Jerusalém de abril de 30 ou 33 (2), lá pelos anos 50, com objetivos litúrgicos, teológicos e literários, não históricos, agrupando na Semana Santa uma série de fatos que eram do conhecimento da tradição do cristianismo primitivo e ocorridos num período de tempo mais largo.

Claro que os estudos que fundamentam essa tese são bem mais amplos e complexos do que o resumo acima. Cabe dizer que, para Piñera, tomando por base o Evangelho de João e outras "pistas" no Novo Testamento e na história e geografia de Israel do período do primeiro século e do Segundo Templo, cabe a hipótese de que Jesus teria entrado em Jerusalém e sido preso em setembro do ano anterior, durante a Festa dos Tabernáculos, e seu julgamento na casa de Caifás ocorrido antes da Páscoa. Pode ser. Ou não. Isso muda algo em termos de fé? Penso que não. Quem pode ser assertivo quanto a exatidão dos fatos, fora do que os Evangelhos informam? O que se sabe de concreto é que o Jesus histórico existiu e que Paulo foi o grande responsável pela divulgação do Jesus Cristo, o Messias, pelo mundo. O cristianismo atual, o que perseverou histórica e teologicamente, é essencialmente paulino. Logo, seja do jeito que for, podemos dizer que é tanto "vero" quanto "ben trovato", parafraseando-se os italianos.

Então, na terça-feira daquela Páscoa, o que nos informam os Evangelhos? No dia anterior, segunda-feira, logo pela manhã Jesus e os discípulos levantaram cedo em Betânia e se tocaram para Jerusalém. Tiveram fome, passaram por uma figueira na qual não havia frutos e o Messias disse: "Nunca mais coma alguém fruto de ti". Dentre os ensinamentos e discussões daquele dia, tivemos o fato marcante que ficou conhecido como A cilada do tributo. Alguns fariseus abordaram ladinamente Jesus, mostrando-lhe uma moeda e lhe perguntando se era lícito pagar os tributos ao monarca romano.
- Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. De quem é essa imagem e inscrição?
- De César - responderam os fariseus.
- Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Bingo!

A terça-feira foi repleta de ensinamentos e de inúmeras parábolas. Podemos ver alguns acontecimentos desse dia. Já nas primeiras horas passaram pela mesma figueira da manhã anterior e ela estava seca, o que impressionou os discípulos. Disse-lhes Jesus:
- Eu lhes asseguro que, se vocês tiverem fé e não duvidarem, poderão fazer não somente o que foi feito à figueira, mas também dizer a este monte: "Levante-se e atire-se no mar", e assim será feito. E tudo o que pedirem em oração, se crerem, vocês receberão. E quando estiverdes orando, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai-lhe, para que também vosso Pai que está nos céus vos perdoe as vossas ofensas.

Falou sobre os maiores mandamentos:
- O primeiro é: o Senhor nosso Deus é o único senhor. E o segundo é este: amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que esses.
Sobre o Reino de Deus:
- O Reino de Deus não vem com aparência exterior, pois o Reino de Deus está dentro de vós.
Repreendeu duramente escribas e fariseus:
- Sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora parecem realmente formosos, mas por dentro estão cheios de osso e de todas as imundícies. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade. Serpentes, raça de víboras!
Profetiza sobre o futuro do Segundo Templo e de Jerusalém:
- Em verdade vos digo que não ficará no Templo pedra sobre pedra que não seja derrubada. E quando virdes Jerusalém cercada por exércitos sabei, então, que é chegada a sua desolação. Os que estiverem dentro da cidade, saiam. E os que estiverem nos campos, não entrem nela.
De fato, durante a Guerra dos Judeus, ocorrida entre os anos de 66 a 73 e relatada pelo historiador judeu romanizado Flávio Josefo, as legiões romanas comandadas por Vespasiano e seu filho Tito cercariam a cidade, destruiriam o Templo e matariam centenas de milhares de pessoas.

Interessante perceber como os ensinamentos de Jesus ainda são válidos até nosso tempo, falando a todos nós, não é mesmo? Não nos apeguemos morbidamente ao dinheiro, tenhamos fé, perdoemos e amemos o próximo, tenhamos Deus dentro de nós, não sejamos hipócritas e saibamos que o que importa não está sob as paredes de um prédio, mas sim dentro do coração e da mente. A Palavra é muito simples de entender e algo difícil de praticar, até hoje.


(1) - Datação conforme Juanribe Pagliarin no livro Jesus - A vida completa (São Paulo: Bless Press Editora, 2015). Aquarela de James Tissot (1836 - 1902).
(2) - São vários os estudos que se referem a datação da Páscoa em que Jesus foi crucificado. Além das datas de Pagliarin e Piñera utilizadas e citadas no texto, vale mencionar também uma instrutiva nota do livro de Simon Montefiore, Jerusalém - A biografia (São Paulo: Companhia das Letras, 2013): "Ninguém sabe exatamente quando Jesus foi a Jerusalém. Lucas começa o ministério de Jesus com o batismo administrado por João [Batista], por volta de 28-9 da Era Cristã, dizendo que ele tinha cerca de 30 anos, e sugerindo que sua morte ocorrera entre 29 e 33 da Era Cristã. João diz que seu ministério durou um ano; Mateus, Marcos e Lucas dizem três anos. Jesus pode ter sido morto no ano de 30, 33 ou 36. Mas sua existência histórica é confirmada não apenas nos Evangelhos, mas em Tácito e Josefo, que também menciona João Batista. Em todo o caso, sabemos que Jesus foi a Jerusalém na Páscoa depois da chegada de Pilatos como prefeito (ano 26) e antes de sua partida (ano 36) durante os reinados de Tibério (morto em 37) e Antipas (antes de 39) e o alto sacerdócio de Caifás (18-36) - muito provavelmente entre os anos 29 e 33. A figura de Pilatos é confirmada por Josefo e Fílon de Alexandria, e sua existência é atestada por uma inscrição descoberta em Cesareia".

"Tudo vale a pena, se a alma não é pequena" - Fernando Pessoa.