O DOGMA DA IMACULADA CONCEIÇÃO

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Antes de abordar diretamente esse dogma, proclamado pelo papa Pio IX aos 8 de Dezembro de 1854, é oportuno analisar outro dogma, o da virgindade de Maria, adotado pela Igreja cristã já no II século da nossa era e ratificado durante o Sínodo do ano 649, liderado pelo papa Martinho I.

As fontes aptas a demonstrar a falsidade e a falta de fundamento desses dois dogmas se encontram diretamente na própria Bíblia, em particular nas edições mais modernas obtidas traduzindo diretamente os textos originais em hebraico do Antigo Testamento e, no caso do Novo Testamento, os códices em língua grega. No intento de dar o carimbo da oficialidade a esse artigo resolvi consultar uma moderna edição da Bíblia editada pela Elledici Leumann de Turim (em 2000), que é uma tradução em italiano do livro da Aliança Bíblica Universal (ABU). Para que não surgiam críticas de conservadores dizendo que me apoiei em fontes apócrifas, transcrevo aqui abaixo a advertência que aparece na segunda página da capa interna onde está escrito o seguinte:

«Il testo finale di questa traduzione è stato approvato dall’Alleanza Biblica Universale (Direzione Europa) e, da parte cattolica, dalla autorità ecclesiastica (Conferenza Episcopale Italiana).»

ou seja, em português: “O texto final desta tradução tem sido aprovado pela Aliança Bíblica Universal (Direção Europa) e, pelo lado católico, pela autoridade eclesiástica (Conferência Episcopal Italiana).” No intento de agilizar a leitura desse meu texto, traduzi pessoalmente em português os versículos e as notas que aparecem na Bíblia que acabei de citar.

Pois bem, o alicerce fundamental do dogma da virgindade de Maria é o Evangelho de Mateus que é tido, pela tradição, como sendo o primeiro dos quatros sinóticos. Entretanto, nas páginas dedicadas à “Introdução ao Evangelho de Mateus”, está escrito o seguinte: «Antigamente foi sempre considerado o primeiro dos evangelhos escritos; porém, desde mais ou menos um século, não temos mais essa segurança: muitos estudiosos pensam que tenha sido precedido por aquele de Marcos.» Voltarei a expressar as minhas considerações sobre este evangelista daqui a pouco; por enquanto vamos entrar no vivo da matéria citando os dois versículos fundamenteis para enfrentar o tema:

«E assim se realizou o que o Senhor havia dito por meio do profeta Isaias: Eis que a virgem ficará grávida, e dará à luz um filho que será chamado Emanuel» (Mateus 1:22-23). Na nota no rodapé se especifica que “Aqui é citado Isaías 7:14 assim como pode ser lido na antiga tradução grega”. Vamos então conferir o que diz esse profeta no A.T. da ABU: «O próprio Senhor dará um sinal. Acontecerá que a jovem grávida dará à luz um filho e o chamará Emanuel (Deus conosco).» (Isaías 7:14) que não é exatamente o que estamos acostumados a ler nas Bíblias mais velhas, tanto que no rodapé, os autores explicam o seguinte: «a jovem: a palavra hebraica assim traduzida indica uma mulher em idade fértil; provavelmente se trata da jovem esposa do rei Acaz, futura mãe do rei Ezequias. A antiga tradução grega usava a palavra “virgem” que será utilizada por Mateus 1:23.»

Trata-se portanto de uma jovem que já está grávida e não de uma virgem que ficará grávida. Os autores da ABU observam, também, que o verdadeiro nome de Jesus era Josué, mas esses são pormenores.

Voltando agora à consideração que encerrava o parágrafo anterior, é muito estranho que o judeu Mateus, que obviamente tinha o hebraico como língua materna, tenha citado um versículo de Isaías não no idioma em que foi originariamente escrito, mas na sua tradução em grego. Seria como se um escritor português citasse num de seus livros não uma frase original de “Os Luzíadas” de Camões, mas a sua tradução em alemão. Isso é uma contradição que só pode ser explicada admitindo que o autor desse evangelho não era um judeu, mas um grego, tanto que os únicos textos originais do N.T. que existem são os Codex Vaticanus e o Codes Sinaiticus, ambos da metade do IV século e escritos em grego.

Outra contradição diz respeito ao sonho de José em Mateus 1:20 quando o anjo diz: “José, descendente de Davi, não tema receber a tua mulher…” Portanto, posto que quem descende do rei Davi é José e não Maria, como pode Jesus ser descendente desse Rei sem a intervenção de José?

Atualmente, eminentes teólogos como Schnackenburger, Pesch e Lohfink, em oposição à encíclica Redemptoris Mater (1987) de João Paulo II, afirmam que a conceição virginal biológica de Maria não é uma verdade de fé bíblica e, consequentemente, não se pode descartar a possibilidade que Jesus tenha tido verdadeiros irmãos e irmãs.

A Igreja, não satisfeita com a virgindade de Maria antes do parto, decretou também (no Concilio de Trento de 1555) a virgindade após o nascimento de Jesus que teria passado pelo hímen da mãe sem quebrá-lo, da mesma forma com que um raio de luz passa livremente por um vidro. A justificativa se encontraria nesse versículo: «Esta porta deve permanecer fechada. Não deverá ser aberta; ninguém poderá entrar por ela. Deve continuar trancada porque o Senhor, o Eterno Deus de Israel, entrou por ela» (Ezequiel 44:2), mas os antigos teólogos esqueceram que a porta era aquela de um templo o não a vagina de Maria! A Bíblia da ABU, muito honestamente, nada fala a respeito desse dogma e, em cima do versículo, mostra até um desenho daquela porta.

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O dogma da Imaculada Conceição obriga os cristãos a acreditar que, única pessoa na história da Humanidade, Maria foi concebida sem o pecado original. Segundo a doutrina, esse pecado teria sido originado pela desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden. Entretanto, lendo com atenção a Bíblia, descobrimos que esse pecado é inexistente e a própria exegese católica o refuta. Para se convencer disso, basta ler uma nota que se encontra na Bíblia de Jerusalém, redigida pelos estudiosos dominicanos da Escola Bíblica de Jerusalém, os quais, a respeito da expulsão de Adão e Eva, afirmam o seguinte: «Não se trata de um castigo para o homem devido uma culpa já cometida, mas de uma medida preventiva» e também: «Não se deve buscar aqui [no Gênesis] tudo o que foi dito sucessivamente, seja que se trate de releituras bíblicas, por exemplo a de Paulo em Romanos 5 ou em Coríntios I, seja das formulações dogmáticas da Igreja.»

Para os Judeus, que são os melhores estudiosos do A.T., o suposto pecado original significa pouco ou nada, assim como declarado por um importante rabino chefe duma comunidade judaica na Itália. Mas também um biblista protestante afirmou claramente que «Entre Gênesis 3 e Romanos 5, onde o apóstolo Paulo diz que por causa de um homem a morte entrou no mundo, evidentemente não existe coincidência. Pelo contrário, um leitor de Paulo pode se perguntar onde ele encontrou aquela ideia».

Mas talvez, o mais interessante seja o que disse um teólogo católico, professor junto à Faculdade de Teologia da Itália do Norte: «Eu tiraria o conceito de pecado original duma visão clânica do pecado, isto é, que um pecou, que os pais pecaram e os filhos sofrem as consequências. A meu ver, uma concepção desse tipo é totalmente desmentida no Novo Testamento, mesmo que, infelizmente, tenha sido bastante usada em teologia».

Se a própria exegese cristã desmente a realidade de pecado original, como foi possível que papa Pio IX chegasse a promulgar a bula “Ineffabilis Deus” na qual é proclamado o dogma da Imaculada Conceição? Ainda por cima, esse dogma foi o fruto de um referendo entre os bispos e não o resultado de um estudo bíblico aprofundado. Tinha razão Nietzsche quando dizia que “na teologia não existem fatos, apenas opiniões”. Então, se como vimos o pecado original não existe, o que raios esse dogma dogmatiza? Obviamente dogmatiza o nada porque todos nós nascemos sem a mancha do pecado original.

No entanto é interessante acompanhar o percurso idológico que levou um papa a emanar mais um dogma. Tudo veio de Paulo de Tarso e da reelaboração de seu pensamento efetuada por Agostinho de Hipona quatro séculos depois. Além disso, no A.T. está escrito: «Quando ainda não havia abismos, fui gerada, quando ainda não havia fontes carregadas de água» (Prov. 8:24). Durante séculos a Igreja atribuiu estas palavras a Maria, mas na verdade quem fala é a Sapiência personificada que descreve a si mesma, tanto que na edição da ABU, nenhum comentário relaciona a Sapiência com Maria mas, pelo contrário, é explicitado o fato que se trata justamente da Sapiência humana - e divina - e que, por sinal, os Proverbios resultam das reflexões dos sapientes de Israel que, por sua vez, incorporaram os ensinamentos dos sábios não israelitas do Antigo Oriente.

A Igreja desfrutou também outra parte do A.T. onde o texto diz: «És, portanto, toda bela, minha amada, e não tens um só defeito!» (Cânticos 4:7) como se estivesse falando da Virgem, mas o Cântico dos Cânticos não fala de virgens, sendo apenas um livro erótico cujo tema é o relacionamento entre dois namorados. Antigamente esse livro foi interpretado como sendo a representação alegórica do casamento entre Javé e o povo de Israel e, depois do advento do Cristianismo, foi novamente interpretado como símbolo das bodas entre Deus e a Igreja. Mas, na verdade, o exame dos versículos seguintes revela a natureza erótica desse cântico, principalmente quando o amado diz: «És como um jardim fechado, minha noiva e minha irmã em Israel; és jardim fechado, uma fonte lacrada. De ti brota um pomar de romãs graúdas, com frutos excelentes e saborosos; flores de hena perfumada e nardo puro» (Cânticos 4:12-13) e ela responde: «Desperta, ó vento norte! Aproxima-te, vento sul! Soprai em meu jardim, a fim de espalhar por toda a parte os teus perfumes. Ah! Que meu amado entre em seu jardim e coma os seus frutos deliciosos!» (Cânticos 4:16). Mais explícito do que isso seria impossível!

Um terceiro elemento, dessa vez do N.T., foi utilizado como respaldo pela falta de pecado original em Maria: «O anjo chegou ao lugar onde ela estava e ao se aproximar lhe declarou: “Alegra-te, mui agraciada! O Senhor está contigo”!» (Lucas 1:28). Esta palavra “agraciada” ou, em outras traduções “cheia de graça” foi interpretado como se se tratasse de graça divina e que, portanto, nada de pecaminoso podia estar na alma de Maria, nem sequer o pecado original. Entretanto, no texto original em grego, o anjo se dirige a Maria com essas palavras: “Caire, kecaritomene” a primeira das quais significa realmente “Alegra-te”, mas a segunda deriva de um verbo que quer dizer “tornar-se bonito”, “gracioso”, “cheio de graça estética” e nada tem a ver com qualidades espirituais, mas apenas físicas. Observamos, todavia, que o episódio da anunciação é presente só nos evangelhos de Mateus e de Lucas, mas falta nos de Marcos e de João.

Hoje sabemos que a Imaculada Conceição surgiu de crendice popular - apoiada pelos ingênuos Franciscanos mas hostilizada pelos cultos Dominicanos - desde a época de Tomás de Aquino. Mesmo assim, parece que até o Céu gostou das decisões do Vaticano, tanto que, apenas quatro anos depois do dogma ter sido proclamado, a Virgem teria aparecido (1858) a uma moça analfabeta de Lourdes dizendo, em dialeto, “Que soy era Immaculada Conceptiou” (Eu sou a Imaculada Conceição)… Dá vontade de pensar: olha só que coincidência! Apesar de Bernadette Soubirous ter encontrado a Senhora por 18 vezes seguidas, nada de teologicamente significativo foi revelado, a não ser a seguinte exortação: «Rezem e façam penitência para a conversão do mundo». O corpo de Bernadete, canonizada em 1933, permanece exposto aos fieis os quais acreditam piamente que seja imperecível, mas não sabem que as mãos e o rosto são feitos de cera.

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 21/12/2020
Reeditado em 25/12/2020
Código do texto: T7140829
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