A prova da fé.

A experiência da fé sempre intrigou o ser humano – ao mesmo tempo em que lhe é uma experiência possível, própria, escapa-lhe da compreensão total, e por vezes – a maioria, na verdade – gera um paradoxo. Toda a complexidade da fé fez com que, ao longo da história, à medida em que se tentou traduzi-la por conceitos, ela se esvaziasse, perdesse status. Infelizmente a fé passou a ser entendida como crença, no sentido mais supérfluo da palavra, como uma ação não refletida. Para recuperarmos o significado da experiência de fé, faz-se necessário um retorno às origens, um encontro com aqueles que fizeram dessa experiência a sua marca na história.
 
Na Tradição Cristã e Judaica o Pai da fé é um mesmo personagem, no qual podemos encontrar muitas referências de uma profunda experiência de fé, falamos de Abraão. O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard em uma de suas obras faz uma profunda análise da fé de Abraão a partir de uma perspectiva existencial-experiencial, e conclui: “E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio de si próprio.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 118)
 
As Sagradas Escrituras nos apresentam diversos episódios em que Abraão tem que viver uma verdadeira experiência de fé, das quais destacamos duas: “Ele o conduziu para fora e disse: “Ergue os olhos para o céu e conta as estrelas, se as podes contar”, e acrescentou: “Assim será a tua posteridade. Abrão creu em Iahweh, e lhe foi tido em conta de justiça”. Ele lhe disse: “Eu sou Iahweh que te fez sair de Ur dos caldeus, para te dar esta terra como propriedade.” Abrão respondeu: “Meu Senhor Iahweh, como saberei que ei de possui-la?” Ele lhe disse:” Procura-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um cordeiro de três anos, uma rola e um pombinho.” Ele lhe trouxe todos esses animais, partiu-os ao meio e colocou cada metade em face da outra; entretanto, não partiu as aves. As aves de rapina desceram sobre os cadáveres, mas Abrão as expulsou. Quando o sol ia se pôr, um torpor caiu sobre Abrão e eis que foi tomado de grande pavor. [...] Quando o sol se pôs e estenderam-se as trevas, eis que uma fogueira fumegante e uma tocha de fogo passaram entre os animais divididos. Naquele dia Iahweh estabeleceu aliança com Abrão. (Gn 15, 5-12.17-18a)”. Nessa passagem é interessante ressaltar alguns aspectos que podem nos ajudar a delinear a experiência da fé. Primeiramente, trata-se claramente de uma experiência humana. Abraão havia deixado sua terra com sua família, seguia as ordens de Deus, e, no entanto, se deparava constantemente com ‘as demoras’ de Deus. É interessante perceber a força da Palavra de Deus quando se dirige a Abraão e pede que conte as estrelas do céu – a fé é uma experiência humana, que precisa estabelecer um diálogo – em quem deposito a minha fé? A confiança de Abraão é firmada na experiência que Ele faz de Deus. A “prova” a que Abraão é submetido para estabelecer aliança com o Senhor é justamente a experiência da ‘solidão’, a ‘ausência’ de Deus. Observamos que Abraão mesmo tento feito a experiência do Senhor, mesmo tendo depositado sua confiança, sua fé em Deus, não se vê livre do torpor, do pavor, da escuridão que assume o ambiente e também sua alma. No entanto, o que permite a Abraão espantar as aves de rapina que querem impedir a aliança? O que impede que o terror faça Abraão fugir? O que impede que o torpor o domine e ele adormeça?
 
Contemporaneamente, o escritor cristão C. S. Lewis, fez uma experiência parecida com a de Abraão, e em sua obra mais sombria relatou: “Nesse meio tempo onde está Deus? Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma ideia se via a necessitar dEle, tão feliz, que se vê tentado a sentir suas reivindicações como uma interrupção; caso se lembre e volte a Ele com gratidão e louvor, você será – ou assim parece – recebido de braços abertos. Mas, volte-se para Ele quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio.” (LEWIS, 2007, p. 33). Lewis está relatando sua experiência a partir do luto pela morte de sua esposa. A mesma ausência de Deus, a sensação de abandono, de uma demora de Deus no momento em que Ele é mais necessário. Mais uma vez, a fé se apresenta como uma experiência humana – uma abertura estruturalmente humana para um encontro com o transcendente. Mas não se trata de uma experiência simples – não é uma linha direta, uma chamada de telefone, uma mensagem instantânea. A nossa relação com Deus não pode ser reduzida a uma troca de dados. E todas as vezes em que esta ‘comunicação’ falha, convém verificarmos como nós estamos tentando chegar até Ele.
 
Temos aqui mais um trecho em que Abraão é colocado à prova: “Depois desses acontecimentos, sucedeu que Deus pôs Abraão à prova e lhe disse “Abraão!”  Ele respondeu: “Eis-me aqui!” Deus disse: “Toma teu filho, teu único, que amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, e lá o oferecerás em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei.” (Gn 22, 1-2). Não cabem aqui análises exegéticas profundas, mas a forma como Abraão se dirige a Deus “Eis-me aqui!”, denotando sua prontidão em seguir suas ordens, é a mesma forma com que ele se dirige ao próprio filho Isaac, mais adiante no texto. Mas por que Deus que provar Abraão? Ele não é onisciente? Fato! Deus conhece a fidelidade de Abraão. Mas, humanamente, até onde Abraão conhece a própria fidelidade a Deus? A prova da fé, a experiência paradoxal que não cabe em conceitos, Abraão, Lewis, você e eu – nós todos a realizamos diante de Deus, mas acima de tudo, é uma prova para nós mesmos.
 
Lewis, na mesma obra sobre o luto por sua esposa conclui: “Deus certamente não estava fazendo uma experiência com a minha fé nem com meu amor para privar sua qualidade. Ele já os conhecia muito bem. Eu é que não. Nesse julgamento, ele nos faz ocupar o banco dos réus, o banco das testemunhas e o assento do juiz de uma só vez. Ele sempre soube que meu templo era um castelo de cartas. A única forma de fazer-me compreender o fato foi coloca-lo abaixo.” (LEWIS, 2007, p.73). A fé se caracteriza como uma experiência profunda na existência humana, não se confundindo com algo não refletido, supérfluo. A complexidade que muitas vezes encontramos diante da fé está no fato que queremos provar a nossa fidelidade, confiança e prontidão à quem nós depositamos esta fé. No caso da relação de fé com Deus, Ele já nos conhece, muitas vezes somos nós que não sabemos nosso grau de comprometimento com seu projeto, com a aliança que Ele quer fazer conosco, com o chamado que Ele tem para cada um. A experiência da fé não nos isenta dos sofrimentos, mas tem a força de dar um novo sentido às experiências sofridas. Por quantas vezes for necessário derrubar nosso castelo de cartas, subir o monte de Moriá, espantar aves de rapina, nunca nos esqueçamos da experiência de encontro com Deus. A fé é nossa, um esforço humano de encontro com Deus, mas só pode ser verdadeiramente ativa diante de uma abertura, uma aceitação da ação dEle em nossa vida. A certeza do amor de Deus que elege, chama, faz aliança, cuida, faz com que todas as experiências possam adquirir sentido, faz com que todas as ‘provas’ sejam superadas.
 
 
 
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1ª Ed. 9ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2002.
 
KIERKEGAARD, Sören. Diário de um sedutor; Temor e Tremor; O desespero Humano. Tradução Carlos Grifo, Maria J. Martinho, Adolfo Casais M. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 109-185.
 
LEWIS, C. S. A anatomia de uma dor. Um luto em observação. Tradução: Alípio Franca Correia Neto. São Paulo: Editora Vida, 2007
 
Abra a Porta e Hiago Fonte Boa
Enviado por Abra a Porta em 19/06/2020
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T6982013
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