Incômoda Misericórdia: Uma pequena hermenêutica de Jonas 4,1-11*

A misericórdia de Deus incomoda. Não há como ler as Sagradas Escrituras, de maneira atenta, sem se questionar acerca de algumas atitudes assumidas e reveladas por Deus. Assim acontece com o livro de Jonas. Este pequeno texto da Sagrada Escritura traz para nós questionamentos profundos. A curta extensão do livro (apenas quatro pequenos capítulos!) nos revela que, verdadeiramente, tamanho não é documento. O seu conteúdo é estonteante, no que diz respeito às nossas concepções acerca de Deus e da salvação. Jonas é um antiprofeta que faz de sua própria vida e relação com Deus um anúncio e uma denúncia das nossas projeções e idéias de Deus.

Jonas é um profeta que ao ouvir o chamado de Deus se recusa a a cumprir o desígnio divino. Ele, embora sendo pertencente ao povo de Deus, de princípio não se volta todo para o Senhor. No seu livro, aqueles que mais revelam a obediência a Deus são os estrangeiros. Para falar a verdade, a mensagem deste Livro Sagrado é como um forte soco no estômago do nosso exclusivismo salvífico. Para aqueles que acham que somente um grupo será salvo, que somente o povo eleito cumpre a vontade de Deus, o livro de Jonas funciona como uma grande advertência. Não basta pertencer ao Povo de Deus, é preciso cumprir a vontade do Senhor. Não raras vezes, aqueles que estão fora são mais solícitos no cumprimento da lei de Deus e na mudança de vida, pedida pelo Senhor, do que os membros do Povo eleito.

No final do livro de Jonas (Jn 4,1-11), encontramos uma grande lição acerca da misericórdia divina.

O profeta que anunciara a destruição de Nínive, devido aos seus pecados, questiona Deus por, diante da conversão da cidade, ter perdoado os pecados dos ninivitas. O Profeta reconhece que Deus é misericordioso, contudo não aceita esta característica do Senhor. A misericórdia divina incomoda o profeta. Ela inclusive é utilizada como desculpa pela primeira recusa do profeta em anunciar a palavra de Deus. Como pode o Senhor perdoar os piores inimigos do seu povo? Como pode Deus não destruir a capital da Assíria? Não foi esse povo que subjugou e destruiu o Reino de Israel e transformou a Samaria num lugar profanado, habitado por estrangeiros? O hagiógrafo está consciente desses fatos e, nas palavras de Jonas, não aceita tal atitude da parte de Deus.

A resposta divina, porém, é prática. Deus não conversa com Jonas de modo teórico explicando Suas razões. Diante da queixa do Profeta e do refrão macabro, eu prefiro morrer a viver, Deus, o Senhor da vida, faz da situação do profeta uma ilustração da misericórdia divina. O Senhor faz brotar uma planta para abrigar o profeta e, depois, faz essa mesma planta morrer. Isso ensina que Deus é o Senhor da vida. Ele não se alegra com a morte do pecador. Somente Deus tem autoridade para dar a vida e tirá-la. Se ficamos abatidos pela morte daquilo que não criamos e que não gastamos tempo cuidando, como Deus poderia se alegrar com a morte e a destruição de uma cidade inteira repleta de seres humanos que ele criou à sua imagem e semelhança?

O livro de Jonas, assim como Livro de Jó, termina com um questionamento de Deus onde o profeta não dá nenhuma resposta. O Silêncio do profeta, após a colocação divina, ensina-nos que Deus tem a última resposta acerca da vida humana. De fato, a misericórdia divina nos incomoda e silencia.

Que a nossa oração abra o nosso coração para que possamos sempre entender melhor os desígnios de Deus para nossa vida.

Frei Michel da Cruz
Enviado por Frei Michel da Cruz em 16/10/2019
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