O ANO EM QUE NASCEU JESUS

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Quando nasceu Jesus? Vamos começar pelo dia e pelo mês.

A data tradicional do dia 25 de dezembro é puramente mitológica. Nesse dia era celebrado também o nascimento do Sol Invictus e de Mitra, mas já na Antiga Roma, séculos antes de Cristo, entre os dias 17 a 24 de dezembro eram comemorados os Saturnais em honra de Saturno, deus da agricultura. A constituição formal da festa litúrgica do Natal, como aniversário do nascimento de Jesus e sua localização no dia 25 de dezembro, foi estabelecida entre os Cristãos somente a partir do ano 336 d.C. Ademais, como nos Evangelhos se fala textualmente de "pastores que estavam no campo, e guardavam durante as vigílias e as noites o seu rebanho" (Lucas 2:8), é evidente que isso teria sido impossível em pleno inverno. Portanto, de acordo com muitos estudiosos, o mês mais provável para o nascimento de Jesus deve ter sido outubro, no outono.

E o ano? Para responder a essa pergunta temos unicamente poucos versículos, respectivamente: “E, tendo nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo de rei Herodes...” (Mateus 2:1) e “Aconteceu naqueles dias que saiu um decreto de parte de César Augusto, para que todo mundo se alistasse. E esse primeiro alistamento foi feito sendo Quirino presidente (sic!) da Síria” (Lucas 2:1-2) dos quais se deduz que Jesus teria nascido em Belém durante o reinado de Herodes. Acontece, porém, que o censo mencionado acima foi ordenado pelo governador romano Publius Sulpicius Quirinius nas províncias da Síria e Judeia no ano 6 d.C. quando os territórios de Herodes Arquelau passaram sob administração romana direta. Sendo que Herodes morreu no ano 4 a.C. é impossível que Jesus tenha ao mesmo tempo sofrido a perseguição de Herodes e nascido uma segunda vez dez anos depois.

Quanto ao massacre dos inocentes (Mateus 2:16), não há nenhuma evidência contemporânea desse fato e o historiador Flávio Josefo, que relata a vida de Herodes até nos mínimos detalhes, nada diz em relação a esse episódio. Ainda mais significativo é que o próprio Lucas ignora totalmente essa barbaridade atribuída a Herodes e, enquanto para Mateus a família de Jesus, alertada por um anjo, foge para o Egito e lá permanece durante alguns anos, para Lucas ela reside tranquilamente em Belém durante seis semanas e, em seguida, vai nada menos que a Jerusalém, cidade onde residia o rei malvadíssimo. Por outro lado, a narração mitológica dos Reis Magos é importantíssima para demonstrar a messianidade de Cristo e o seu direito de se tornar rei no lugar de Herodes que, por esse motivo, tenta matá-lo.

Atualmente, a grande maioria dos historiadores, incluindo muitos estudiosos cristãos competentes como John Dominic Crossan (especialista em arqueologia bíblica) e o teólogo Rudolf Karl Bultmann, acredita que Lucas -que muitas vezes não parece ser um historiador confiável- confundiu o único censo historicamente realizado nesse período, o de 6 d.C., antecipando-o no nascimento de Cristo, durante o reinado de Herodes, o Grande. Até os exegetas da École Biblique et Archéologique Française (curadores da Bíblia Católica em Jerusalém) ao sublinhar, com relação ao censo, como "a cronologia do nascimento de Jesus fornecida por Lucas não concorda com a de Mateus", apontam como Lucas, em Atos, enfatize a concomitância do censo que ele citou no seu Evangelho com a primeira revolta antiromana liderada por Judas, o galileu, ocorrida em 6 d.C., com essas palavras: “Depois deste [Teudas] levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento...” (Atos 6:37). Mas também os curadores e exegetas do "Novo Grande Comentário Bíblico" católico observam que "Lucas, como também mostra em Atos 6:37, não tinha lembranças claras desse censo" e o teólogo e sacerdote católico Raymond Brown afirma que essa narrativa é relatada apenas por Luca e "é baseada em memórias confusas dos censos romanos", além de "duvidosa em quase todos os aspectos, apesar das tentativas elaboradas dos estudiosos em defender a precisão de Lucas".

A maioria dos estudiosos modernos, leigos e cristãos, sustenta que o autor do Evangelho segundo Lucas cometeu um erro ao relacionar o censo de Quirino, que ocorreu em 6-7 d.C., com os eventos do nascimento de Jesus, colocado antes da morte de Herodes, o Grande (em 4 a.C.). Uma primeira explicação dessa falta de precisão histórica decorre do fato que Lucas, como reconhecido até por estudiosos cristãos, além de não ter sido um dos Apóstolos, nem sequer foi companheiro de viagem de Paulo "porque Lucas nos Atos mostra ter pouca familiaridade com a teologia de Paulo e não conhece as epístolas". Ele nem sequer esteve na Palestina e, em seu Evangelho, cometeu uma montanha de erros históricos, geográficos e culturais. Em geral, conforme o pensamento do teólogo e padre católico Raymond Brown, os Evangelhos canônicos são todos de autores desconhecidos que jamais foram testemunhas oculares da pregação de Cristo, fato que, para o Evangelho segundo Lucas, é deduzido pelas próprias declarações do autor. Segundo vários estudiosos, o erro foi causado pela necessidade de estabelecer o nascimento de Jesus em Belém unicamente para satisfazer uma profecia do Antigo Testamento e essa é a segunda explicação.

Basicamente, todo o N.T. não representa um relato histórico de um fato mais ou menos real, mas é apenas um texto apologético cuja função era de reforçar a fé entre as primeiras comunidades cristãs mostrando a elas como os acontecimentos narrados eram basicamente a realização de profecias do A.T., muitas delas usadas de forma enganosa. Vejamos alguns exemplos...

• O nascimento virginal e o nome de Jesus derivam de Isaías: “Pois sabei que o Eterno, o Senhor, ele mesmo vos dará um sinal: Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho, e o Nome dele será Emanuel, Deus Conosco!” (Isaías 7:14). No texto massorético da Bíblia, se encontra a palavra “almah” que não significa virgem, mas jovem moça, erro de tradução reconhecido até pela Conferência Episcopal da Alemanha. De alguma forma o nome Jesus significa “Deus salva”.

• O lugar onde Jesus teria nascido vem do profeta Miquéias: “No entanto tu, Bete-Lechem, Belém, Casa do Pão; Ephrathah, Efratá, Frutífera, embora pequena demais para figurar entre os milhares de Judá, sairá de ti para mim aquele que será o governante sobre todo Israel, cujas origens são desde os dias da eternidade!” (Miquéias 5:2).

• A “Fuga para o Egito”, evento imaginário e absolutamente inútil devido Cristo ter nascido dez anos depois da morte de Herodes: “Quando Israel era menino, eu o amei muito, e do Egito chamei o meu filho” (Oséias 15:1).

• De novo o Massacre dos Inocentes. “Assim, pois, declara Yahweh: “Ah! Eis que um clamor se ouviu por toda Ramá; lamentação, amargura e muito pranto: É Raquel chorando por seus filhos; e de nenhum modo se deixa consolar, porque já não existem!” (Jeremias 31:15).

Inclusive grande parte da narração relativa à Paixão procede como se tivesse sido construída justamente para que as profecias se cumprissem. Basta lembrar episódios como a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Zacarias 9:9), a reação do povo (Salmo 117), as trinta moedas de Judas (Zacarias 15:11), a divisão dos vestidos (Salmo 21), as ofensas dos soldados (Salmo 68), o fato de não terem quebrado as pernas de Cristo (Êxodo 12:46), a duração da sepultura (Livro de Jó ) e a ressurreição (Salmo 15). Devido a Bíblia ser um livro muito extenso, nela pode ser encontrado de tudo e não seria difícil encontrar versículos aptos a construir profecias relativas a outros personagens históricos.

Enfim, é oportuno lembrar que os Evangelhos foram escritos, em grego, muitos anos depois da morte de Jesus: o mais antigo, o de Marcos, foi redigido em torno do ano 70 d.C., os de Mateus e Lucas entre o 70 e o ano 100 e o de João por volta do final do I século. Mas disso já falei amplamente no outro meu texto intitulado “O Problema Central do Cristianismo” em 08/04/18.

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.