CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS

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Durante a sua longa história, a Humanidade tem procurado uma resposta à mais angustiante de todas as perguntas: “A vida termina com a morte ou continua em outra dimensão?”. É evidente que essa resposta fica subordenada a outra ainda mais intrigante: “Deus existe?” pois a existência dum qualquer tipo de Divindade, pessoal ou não, seria quase uma garantia de vida no além; digo quase porque os antigos Hebreus, mesmo acreditando cegamente na existência de Javé, achavam que tudo tivesse fim com a morte física. Já na Antiguidade filósofos como Parmênides, Platão e Aristóteles procuraram demonstrar a existência de um Ser supremo mediante o Argumento Ontológico e o mesmo fez Santo Agostinho, pelo qual esse Ser coincidia com o próprio Deus cristão. Em seguida, na Idade Média, surgiram verdadeiras Provas ontológicas como as de Anselmo de Aosta e de Tomás de Aquino, mais tarde reforçadas por pensadores como René Descartes, Spinoza e Leibniz; no entanto, outros filósofos como David Hume e até Miguel de Unamuno reconheceram que essas “provas” não passam de petições de princípio e não demonstram absolutamente nada. Portanto, a única maneira para demonstrar a existência de Deus é procurar dados objetivos e científicos, principalmente no campo da Cosmologia. Em outras palavras, se conseguirmos demonstrar que o Universo teve uma origem, principalmente uma origem do nada, teremos resolvido a metade do problema.

Entre as várias hipóteses, a mais popular é a do Big Bang segundo a qual o universo se originou há cerca de 13,7 bilhões de anos a partir de uma violenta explosão que gerou espaço, tempo e toda a matéria. Tudo o que existe hoje estava contido em um ponto, denominado “singularidade” sob condições de pressão, densidade e temperatura teoricamente infinitas. A explosão foi seguida por uma expansão vertiginosa (chamada “inflação”), durante a qual a matéria acelerou ultrapassando de muito a velocidade da luz; em seguida a velocidade de expansão tornou-se bem mais vagarosa. Como este moto expansivo continua sendo observado e é possível medir uma fraca radiação cósmica de fundo (comprovando a explosão inicial), temos a prova que o modelo do Big Bang não é uma simples conjectura, mas representa um modelo confiável da origem do Universo. O primeiro cientista a desenvolver esse modelo foi, em 1927, o padre jesuita Georges Lemaître cuja descrição matemática estava de acordo com as equações escritas por Einstein do qual o padre belga era colega e amigo. É interessante notar que, apesar de ser um padre católico, Lemaître jamais considerou a Bíblia como fonte de ensinamento científico e, quando tornou-se presidente da Pontifícia Academia das Ciências, a respeito da sua teoria da expansão ilimitada do Universo declarou: “Essa teoria fica totalmente fora de qualquer questão metafísica ou religiosa. Ela deixa o materialista livre de negar qualquer Ser transcendente ... Desencoraja o crente de qualquer tentativa de familiarizar com Deus.” Apesar desse convite à prudência, em 1951, papa Pio XII utilizou os resultados de Lemaître para elaborar uma versão moderna da antiga doutrina da “criação do nada” (ex nihilo) feita por um Deus transcendente. Em seus últimos anos de vida, Lemaître tentou em vão de aconselhar o Papa de não pontificar sobre esses assuntos distorcendo o significado puramente científico de suas descobertas cosmológicas.

Mais recentemente, entre os cientistas ganhou espaço uma nova teoria denominada Multiverso. Para que o leitor possa ter uma ideia pelo menos intuitiva do nascimento do Multiverso, pense na formação de bolhas de vapor numa panela de água fervente. Imagine as bolhas (que aparecem e depois se expandem com velocidade acelerada) como pequenos universos gerados por flutuações quânticas. Algumas bolhas colapsam e desaparecem, outras sobrevivem. Analogamente, em um universo primordial, devido às pequenas inomogeneidades presentes, a força de atração gravitacional consegue agregar a matéria causando o seu colapso com consequente formação de estrelas e galáxias. Nos inúmeros universos possíveis, as constantes físicas fundamentais para que neles possa surgir a vida serão aleatórias e diferentes mas, devido o número gigantesco desses universos, alguns deles –ou pelo menos um- terão a sorte de apresentar as condições favoráveis à vida inteligente sem necessitar de um único “Universo bem-afinado” que, obviamente, estaria ligado a alguma forma de projeto inteligente, defendido pelos teístas. O exponente mais importante da teoria do Multiverso foi o britânico Stephen Hawking que, junto com o colega James Hartle publicou um trabalho baseado sobre a mecânica quântica no qual se hipotetiza a existência de muitos universos coexistindo com o nosso, cada um com suas próprias leis físicas, suas próprias constantes fundamentais e suas oportunas dimensões espaço-temporais. Além disso, no conceito de Hartle e Hawking o Big Bang não derivaria duma singularidade gravitacional inicial, mas de um "estado inicial sem fronteiras". Em outras palavras, o nosso universo era originalmente composto por quatro dimensões espaciais, mas sem a dimensão temporal. Sendo atemporal, não houve mudança por um tempo infinito. Mas quando, de acordo com o modelo Hartle-Hawking, uma dessas dimensões -como efeito duma flutuação do falso vácuo do tipo quântico- se transformou espontaneamente em uma dimensão temporal, o universo começou a se expandir. A consequência mais significativa é que o universo é autosuficiente e auto-criado sem necessitar de um Entidade criadora sobrenatural. Apesar de suas sólidas bases matemáticas, para muitos cientistas, essa hipótese não passa de pseudociência faltando provas concretas que a sustentem; inclusive ela não supera o conceito de falseabilidade proposto pelo filósofo da ciência Karl Popper na década de 1930.

Mesmo assim, é oportuno sublinhar que o alicerce do modelo Hartle-Hawking é a famosa Teoria-M, a qual afirma que tudo, matéria e campo, é formada por membranas, e que o universo flui através de onze dimensões, ou seja, três dimensões espaciais (altura, largura, comprimento), uma temporal e sete dimensões recurvadas, sendo a estas atribuídas outras propriedades, como massa e carga elétrica. Hawking, em seu livro de 2010 intitulado “O Grande Projeto” (em co-autoria com Leonard Mlodinow), declara que “A ciência mostra que o universo pode ser criado a partir do nada ... Não é necessário apelar a Deus ... A criação espontânea é a razão pela qual há algo em vez de nada”. Entretanto um dos físicos e matemáticos europeus mais importantes, Sir Roger Penrose, professor da Universidade de Oxford e colaborador de Hawking no desenvolvimento da teoria do Big Bang, mesmo sendo declaradamente ateu desmentiu a teoria da "não-existência de Deus". Durante uma entrevista radiofônica, Penrose descreveu o novo livro de Hawking como "enganoso", acrescentando que a Teoria-M, usada por Hawking para demonstrar a futilidade de Deus, "não é nem uma teoria, não é ciência, mas um conjunto de esperanças, ideias e aspirações”.

Outra afirmação de Hawking que merece ser aprofundada é a seguinte: “a ciência mostra que o universo pode ser criado a partir do nada, com base nas leis da física”. Tudo bem, mas isso não resolve o problema, apenas gera outras perguntas do tipo: “De onde vêm as leis naturais? E essas leis independem do universo físico?”. Obviamente alguém poderia responder que as leis nasceram junto com o universo, mas se foi assim, tais leis não poderiam explicar a gênese do universo sendo que elas não teriam existido até o momento em que o universo foi gerado.

Antes de prosseguir, é oportuno esclarecer que, apesar da linguagem usada por Hawkings, o universo não teria nascido no “nada” (ex nihilo) porque, nesse caso, somente um ato de vontade criativa de um Ser todo-poderoso teria tido tanto poder. Na verdade sabemos que existem as flutuações quânticas do vácuo e de fato o universo (ou os universos) poderia ter se originado como uma flutação do vácuo de acordo com o Princípio de incerteza de Heisenberg, uma lei comprovada pela Física. Devemos, outrossim, considerar que a que definimos “matéria” na verdade é uma substância que foge ao conceito experimentado pelos sentidos sendo, no fundo, algo de extremamente imaterial que pode ser expresso unicamente por meio de fórmulas matemáticas. Eis que a diferença entre lei e matéria desaparece deixando lugar unicamente a uma única realidade que se encontra à base de tudo. Então tinha razão Plotino quando ensinava que a realidade verdadeira é o Absoluto (o Um) e que o resto é apenas aparência? Surpreendentemente a metafísica de Plotino, um neoplatônico que viveu no III século, fica extremamente parecida àquela ensinada pela Advaita Vedanta, também conhecida como doutrina da não-dualidade, segundo a qual a única realidade objetiva é o Brahman e que tudo o resto é apenas ilusão dos sentidos (maya). Isso significa que, no âmbito da não-dualidade, é mister reconduzir tudo o que existe a uma única fonte que não discrimine entre matéria e espírito que, na verdade, são a mesma coisa: algo de extremamente sutil e impalpável que, dependendo das circunstâncias, pode ser massa, energia, luz, campos, e até a própria consciência tanto individual como universal.

Voltando ao assunto inicial, falta ainda responder à pergunta “Deus existe?”. Por um lado teríamos que imaginar um Deus pessoal e inteligente surgido do nada, mas nesse caso alguém poderia justamente perguntar quem criou esse Deus: afirmar simplesmente que ele existe desde sempre é basicamente a mesma coisa que admitir a existência eterna do universo. Por outro lado, o Um de Plotino ou o Brahman dos livros sagrados do Hinduísmo, cuja origem não é explicada, necessitam, respectivamente, de suas hipóstases ou de manifestações sensíveis para interagir com o mundo material. Ambas as soluções são insatisfatórias sendo que o impasse vem da nossa forma de raciocínio na qual é aceita de modo acrítico a existência de um tempo linear escatológico ensinado pela religião cristã. Entretanto, admitindo que o tempo seja circular, Deus não seria nem o ponto de partida (o alfa), nem o ponto de chegada (o omega) de um processo evolutivo no qual a presença de bilhões de consciências não representa um simples ato de amor, mas uma necessidade evolutiva. Ciente de que seria bastante complicado resumir essa minha hipótese em poucas linhas, convido os leitores interessados a ler o artigo intitulado Universos Pessoais, publicado na minha escrivaninha em data 24/03/19 onde, em forma de diálogo descontraído –e até divertido- entre um homem e Deus, enfrento e explico nos detalhes essa linha de pensamento (o mesmo artigo se encontra no meu E-livro “Viagem ao centro do Cristianismo”). Objetivamente, porém, é correto reconhecer que a existência de Deus não pode ser comprovada pela Ciência e nem, muito menos, pela filosofia ou, pior, pela Revelação ou outras mitologias. Acreditar numa Divindade criadora é exclusivamente um ato de fé. Consequentemente, devemos lidar com a possibilidade que Deus não exista. Essa inexistência implicaria necessariamente o fim de tudo com a morte física do indivíduo?

A resposta é não e surge de um raciocínio simples e lógico. Sabemos, pela Ciência, que a vida inteligente necessita de um ambiente favorável denominado “Universo bem-afinado”. Vamos supor que os ateístas tenham razão e que esse universo tenha aparecido por acaso entre bilhões de outros universos inidôneos ao desenvolvimento da vida. O fato é que a vida existe, que nós estamos vivos e não vejo por qual motivo -sem temor de cometer blasfemia- não se possa chamar de “Deus” o vázio quântico (se é que realmente existe) do qual tudo teria tido origem. O que mais importa é que no nosso universo as constantes da Física e da Química são reguladas até nos mínimos detalhes para que a matéria inorgânica evolua em direção da vida humana. Não seria portanto ilógico admitir que as características desse nosso universo fossem tais de permitir o prosseguimento da vida além da morte biológica. Já tive a oportunidade, em outro texto, de citar a opinião de Roger Penrose segundo o qual a consciência seria o resultado dum efeito de tipo quântico dentro do nosso cérebro. A tese de Penrose tem sido criticada de vários pontos de vista, seja filosófico que científico, sendo que o cérebro foi considerado inadequado para a ocorrência de efeitos quânticos. Essa última crítica, no entanto, foi superada pela descoberta de que vários mecanismos, do olfato à fotossíntese, são influenciados pela mecânica quântica. Recentemente Penrose publicou um artigo na prestigiosa Physics of Life Reviews, na qual ele relança sua teoria com base em novas evidências.

Escrito em conjunto com Stuart Hameroff, o artigo levanta a hipótese de que a consciência é baseada em vibrações quânticas em microtúbulos dentro dos neurônios do cérebro. Essas vibrações não são apenas uma hipótese, mas foram efetivamente observadas no cérebro durante experimentos executados no National Institute for Materials Science no Japão. Roger Penrose também responde a seus críticos, argumentando que todas as previsões feitas com base em sua teoria foram confirmadas por observações experimentais. Os dois cientistas também observam que as vibrações quânticas dos microtúbulos podem estar relacionadas a certos ritmos eletroencefalográficos até agora inexplicáveis, demonstrando sua influência nos processos cerebrais. Penrose enfatiza que sua teoria pode estar de acordo tanto com aqueles que acreditam que o conhecimento é um produto da evolução, como com aqueles que pensam que a consciência é uma propriedade do Universo e preexistente à consciência humana. Além disso, a consciência quântica, que é imortal por definição, daria conta das EQM (experiências de quase-morte), fenômenos normalmente relatados após o indivíduo ter sido pronunciado clinicamente morto ou muito perto da morte.

Em definitiva, diante da pergunta “Deus existe”, a minha resposta é: “Não sei”, e ninguém o sabe. Quem afirma de saber mente porque saber significa ter a possibilidade de comprovar e, como vimos, faltam as provas objetivas. Há sim indícios interessantes, mas que não chegam a constituiu uma prova definitiva e substancial. Infelizmente acho que nunca iremos ter uma certeza absoluta sobre a existência duma Divindade e talvez seja melhor assim, de forma que cada qual tenha a liberdade de buscar a sua espiritualidade como melhor lhe agradar.

Também dessa vez gostaria de terminar o artigo citando um poema de Cecília Meireles no qual o eu-lírico expressa a sua dúvida e a sua indeterminação –sublinhada pelas numerosas reticências- a respeito duma hipotética vida no além. A poetisa se vê morta e sente-se acabada na busca da eternidade e de Deus, mas não consegue dar uma resposta definitiva e convencedora a respeito dessa pergunta fundamental; ela permanece flutuando numa condição de não-ser, suspensa entre alegria e tristeza:

Panorama do Além

Não sei que tempo faz, nem se é noite ou se é dia.

Não sinto onde é que estou, nem se estou. Não sei de nada.

Nem de ódio, nem amor. Tédio? Melancolia.

-Existência parada. Existência acabada.

Nem se pode saber do que outrora existia.

A cegueira no olhar. Toda a noite calada

no ouvido. Presa a voz. Gesto vão. Boca fria.

A alma, um deserto branco: -o luar triste na geada...

Silêncio. Eternidade. Infinito. Segredo.

Onde, as almas irmãs? Onde, Deus? Que degredo!

Ninguém.... O ermo atrás do ermo: - é a paisagem daqui.

Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto...

Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto...

Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri?

BIBLIOGRAFIA

-John D. Barrow. The Constants of Nature. From Alpha to Omega. Bodley Head, London (2002).

-John D. Barrow. The Book of Universes. Bodley Head, London (2011).

-Franco Saporetti. Il nulla…poi l’universo e la vita? Quando la fisica si spinge oltre l’osservazione scientifica. Scienze e Ricerche, Roma (2016).

-Marco Passarello. La coscienza è un effetto quantistico: Roger Penrose rilancia la sua teoria. Il Sole 24 Ore, Milão (2015).

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 28/07/2019
Reeditado em 29/07/2019
Código do texto: T6706700
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