O ATEÍSMO, A CONVERSÃO E A GITA

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No Dicionário Aurélio lemos a seguinte definição de conversão:

“O ato de passar dum grupo religioso para outro, duma para outra seita ou religião”

E, realmente, é nesse sentido que as pessoas entendem o significado dessa palavra. Se diz, por exemplo, que o imperador Constantino I converteu-se e tornou-se cristão recebendo o batismo pouco antes de falecer; que os missionários loiolistas converteram muitos índios no Brasil; que um famoso ator hedonista e depravado converteu-se e passou a frequentar a Assembleia de Deus. No entanto, no entendimento de muitas pessoas esclarecidas, é mister investigar melhor esse vocábulo, passando a analisar o seu significado mais verdadeiro e profundo. De qual forma? Vou explicar mediante um exemplo.

Uns dias atrás assisti o filme “Andando sobre as águas”, protagonizado pelo ator israelense Lior Louie Ashkenazi cujo roteiro é o seguinte. Depois da morte de sua mulher, que cometeu suicídio, Eyal, um killer do Mossad (o serviço secreto israelense), recebe a incumbência de achar e eliminar um ex-oficial nazista, criminoso de guerra que ainda está vivo. Sua única pista é o neto do procurado, o jovem alemão Axel, que visita Israel para encontrar sua irmã Pia. Inesperadamente, o agente se torna amigo dos dois irmãos e começa a questionar seus valores. Enfim, Eyal consegue localizar o carrasco nazista em Berlim, mas se trata de um velho de mais de 90 anos de idade, praticamente moribundo. Entretanto, em vez de cumprir a ordem de seu superior, bramoso para que o Mossad chegue “antes de Deus”, o agente desiste de cumprir pela enésima vez o seu papel de anjo da morte e, desobedecendo ao seu chefe, poupa a vida do velho que, porém, é morto pelo próprio neto Axel. A partir daquele momento, repudiada a cultura de morte, a vida de Eyal não será mais a mesma.

Bom, esse ato de Eyal é o que eu chamaria de conversão. Conversão não significa passar de um rito para outro e nem passar do ateísmo ao cristianismo ou qualquer outra religião abraâmica. Uma sincera e profunda conversão nada tem a ver com rituais, cultos, manifestações exteriores, dogmas, hierarquias e sacramentos. Muito menos com atitudes histéricas e milagres imaginários! O ato da conversão envolve unicamente o lado interior do ser humano, a sua consciência, a sua firme vontade de expulsar o mal de seu coração, substituindo-o com o amor. Nesse sentido até um ateu pode se converter, mesmo continuando a não acreditar em alguma Divindade.

Objetivamente, o conceito de Bem nunca foi monopólio de uma religião em particular. Os homens não precisam de mandamentos explícitos revelados aos profetas, pois eles já estão gravados dentro de seus corações desde a noite dos tempos, e quem afirma que as pessoas irreligiosas são ímpias, profere uma grande mentira. É cem mil vezes melhor um ateu assumido, mas rico de valores éticos, respeitoso da vida e da dignidade dos outros, do que um cristão hipócrita prono a ostentar apenas símbolos exteriores de uma fé intolerante, um daqueles que não admitem opiniões divergentes das suas. Até papa Francisco, na primeira Audiência Geral de 2019 declarou que: "As pessoas que vão à igreja, ficam lá todos os dias e depois vivem odiando os outros e falando mal das pessoas são um escândalo: é melhor viver como um ateu do que dar um contratestemunho de ser cristão." Felizmente existem não poucos cristãos que, em sintonia com o pensamento do Santo Padre, valorizam justamente esse tipo de conversão. Mas muitos outros, intransigentes ao extremo, ainda acham sacrossanta a famosa frase de São Cipriano: “Salus extra Ecclesiam non est”. Ou seja, “Fora da Igreja não há salvação” e o inferno vai engolir todos aqueles que se recusam de acreditar no cristianismo, independente de seus sentimentos e atitudes em relação ao próximo. Acredito que esses indivíduos intolerantes são os que mais necessitam de uma urgente conversão!

Banir o mal do coração é apenas um primeiro passo indispensável para a conversão a qual pode e deve continuar com a busca de um percurso que aproxime o ser humano ainda mais à fonte da vida, ao Absoluto. Uma das formas mais nobres de progredir na conversão é aquela contida na Bhagavad Gita (B.G.), texto clássico hinduísta na qual o próprio Krishna, expressão visível do Absoluto, explica ao amigo e discípulo Arjuna os vários percursos para alcançar a perfeição espiritual, sem necessariamente seguir o caminho da “renúncia” proposto pelo budismo, mas vivendo no mundo e oferecendo os frutos de sua conduta e de suas ações não aos interesses pessoais, mas à Divindade, segundo os ditames da Karma-yoga, o yoga da ação. De fato, o Karma-yoga é o caminho do "agir sem agir", do desapego dos frutos da ação; em outras palavras, enquanto o indivíduo comum age impulsionado pela cobiça de ter (sucesso, renome, dinheiro, poder, etc.), quem põe em prática esse tipo de yoga age sem ser impulsionado pelo desejo de receber alguma forma de gratificação.

As que seguem são as exatas palavras que Krishna dirige ao príncipe Arjuna: “Não é por se abster de realizar todas as ações que o homem pode libertar-se dos laços da ação e suas consequências. E nem a simples renúncia de seus frutos pode elevar o homem à perfeição. Na verdade, ninguém pode permanecer, nem por um momento completamente inativo. Todos são forçados a agir sob a influência dos Guna, os fatores que constituem a natureza. Se um homem ficar parado, mesmo dominando seus órgãos da ação, mas a sua mente ainda continuar sendo ligada aos objetos dos sentidos, ele se engana ou é um simulador” (B.G. III, 4-6). E ainda: “Oh Arjuna, ao contrário, destaca-se quem é o dono de seus sentidos e de sua mente, e se empenha no karma-yoga, usando os órgãos dos sentidos sem apego. Complete, portanto, as ações que são necessárias apenas por dever e de acordo com o sua natureza, porque agir é melhor do que não agir. Até a sua vida corporal não poderia ser mantida sem você agir. Este mundo está todo preso em si pelas restrições e as consequências das ações, do karma. A única exceção a isso é a ação realizada com a intenção de oferecê-la em sacrifício. Oh filho de Kunti [Arjuna], execute portanto as suas ações, cumprindo-as com o espírito de oferecê-las em sacrifício.” (B.G. III, 6-9).

Quem pretende percorrer o caminho da perfeita conversão mediante esse tipo de yoga (seja bem claro que o yoga não é algum tipo de ginástica) deverá deixar morrer o ego empírico, junto com todo o seu conteúdo de posse e de aquisições, e envolver-se com o Princípio para fins universais, atuando nos diversos campos da atividade humana: destarte, o adepto se tornará um instrumento da vontade divina. Krishna, na Bhagavad Gita, incita continuamente o seu discípulo a buscar refúgio nele, para nele encontrar a sua verdadeira identidade, e essa sua insistência é, sem dúvida, necessária devido a ação do Karma-yoga requer um impulso saudável de dedicação completa, fidelidade e devoção à vontade do Ser universal. Krishna não se cansa de reiterar o conceito que a nossa finalidade é a liberdade e o altruísmo que, segundo o Karma-yoga, será alcançado mediante a ação. De fato, todos temos o direito e o dever de agir, de praticar o bem e, quando a ideia de espalhar o Bem se tornará parte integrante do nosso ser, já não precisaremos buscar nada fora de nós. Por outro lado, é fundamental esclarecer o conceito que jamais devemos procurar colher os frutos das nossas ações: nós fazemos o bem porque é bom fazer o bem; aquele que faz o bem em vista de outro propósito, mesmo que seja para ganhar o Céu, torna-se um escravo. Qualquer trabalho feito sob o estímulo do egoísmo, em vez de nos libertar, nos tornará ainda mais escravos. Então, a única solução será renunciar de antemão aos frutos da ação, de manter uma postura indiferente, de trabalhar sem se preocupar com os resultados e, ainda mais, com o julgamento da sociedade.

Gandhi, como ferrenho seguidor dos preceitos da Bhagavad Gita, além de valorizar ao máximo o trabalho braçal, considerava toda e qualquer entidade viva como parte do Absoluto e, nesta perspectiva, ferir, ofender, prejudicar um ser significava fazer o mesmo a si e a Deus. Para ele, os seres mereciam apenas respeito, amor e serviço; coerentemente, ele colocou em prática esses princípios rechaçando a intocabilidade, as diferenças e a oposição entre as religiões e qualquer expressão ódio ou violência contra outrem, inclusive contra aqueles que nos perseguem. Atualmente o Mahatma é considerado como o pai da moderna tolerância religiosa, mas é oportuno esclarecer o seu pensamento analisando atentamente o que ele escreveu: “Eu nao gosto da palavra tolerância, mas não consegui pensar num melhor termo. Tolerância pode implicar a suposição da inferioridade de outras crenças em relação à nossa, enquanto a Ahimsa [não-violência] nos ensina a oferecer o mesmo respeito às crenças religiosas dos outros conforme consentimos para com a nossa própria, admitindo a imperfeição dela. Essa posição será prontamente aceita pelo verdadeiro buscador da Verdade que siga a lei do amor. Se atingirmos a plena visão da verdade, não mais seríamos meros buscadores, mas teríamos nos tornado um com Deus, pois a Verdade é Deus. Mas por sermos apenas buscadores, continuamos nossa busca e somos conscientes da nossa imperfeição. E se somos nós mesmos imperfeitos, a religião como concebida por nós deve ser imperfeita [...] sempre sujeita à evolução e reinterpretação. [...] Se todas as fés concebidas pelo homem são imperfeitas, a questão do mérito comparativo não pode surgir.”

De fato, as carnificinas infligidas ao mundo em nome da religião têm muito pouco a ver com a genuína religião e, durante os séculos, as pessoas lutaram por doutrinas e dogmas provando que as “guerras religiosas” são, na realidade, egoísmo enfurecido em larga escala. O filósofo indiano Swami Prabhavananda (1893-1976), fundador da Vedanta Society of Southern California, disse: “Se você colocar Jesus, Buda e Maomé juntos numa mesma sala, eles se abraçarão; mas, se colocar seus seguidores juntos, eles poderão matar-se uns aos outros!” Quem entendeu perfeitamente a importância da Ahimsa no âmbito da filosofia contida na Bhagavad Gita, tendo-a estudada ao ponto dela ter influenciado toda a sua imensa produção poética, foi Cecília Meireles. Grande admiradora de Gandhi, Cecília visitou a Índia em 1953 onde, entre outras coisas, se deparou com a silenciosa humildade das mulheres indianas executando tarefas pesadas como, por exemplo, varrer as ruas, seguindo o seu dever social e ritual (dharma) sem apego aos resultados e sem esperar recompensa alguma, conforme as prescrições da B.G. III, 6-8. Em seu poema “Humildade”, a poetisa retrata justamente uma dessas mulheres:

Varre o chão de cócoras.

Humilde.

Vergada.

Adolescente anciã.

Na palha, no pó

seu velho sari inscreve

mensagens ao sol

com o tênue galão dourado.

Prata nas narinas,

nas orelhas,

nos dedos,

nos pulsos.

Pulseiras nos pés.

Uma pobreza resplandecente.

Toda negra:

frágil escultura de carvão.

Toda negra:

e cheia de centelhas.

Varre seu próprio rastro.

Apanha as folhas do jardim

aos punhados,

primeiro;

uma

por

uma

por fim.

Depois desaparece,

tímida,

como um pássaro numa árvore.

Recolhe à sombra

suas luzes:

ouro,

prata,

azul.

E seu negrume.

O dia entrando em noite.

A vida sendo morte.

O som virando silêncio.

O significado desses versos nos quais se descreve uma varredora silenciosa que “varre seu próprio rastro” e, enfim, desaparece silenciosa, é que o trabalho manual corresponde a um ritual, a fazer uma oferenda, a executar um sacrifício. Inclusive, pelo menos no caso desse poema, a pobreza material é vista como sendo uma atitude positiva, pois é aceita e vivenciada como oportunidade de ascensão espiritual por meio do desapego pelas posses materiais que contribui para uma contemplação meditativa. Trata-se, obviamente, daquela que a própria Meireles definiu de “pobreza voluntária”, típica dos ascetas cristãos da Idade Média. A esse respeito, a estudiosa Raffaela de Souza Corrêa escreve: “O desapego, uma atitude capaz de amansar os desejos do Eu, surge não como uma aceitação integral, mas como a capacidade de se livrar daquilo que não é fundamental para existir ou daquilo que te faz mal. As personalidades marcantes para Cecília representavam o desapego, mas não significa que esses mestres eram sem emoções, inatingíveis ou impassíveis para as dificuldades da vida.” Sempre segundo essa estudiosa, “uma visão essencialmente cristã, na qual o indivíduo é julgado e conduzido ou à salvação ou à condenação, não correspondia às expectativas de Cecília sobre seu fascínio natural pela relação entre vida e morte, por exemplo. Essa dicotomia foi logo cedo abandonada pela autora, que encontrou em Tagore e Gandhi uma grande parceria estética e espiritual”.

Em resumo, o Karma Yoga, de acordo com a opinião do místico indiano Swami Vivekananda (1863-1902), “é um método ético e religioso cuja finalidade é de fazer com que o adepto possa conseguir a liberdade por meio do altruísmo e das boas ações. Quem pratica essa forma de yoga não precisa seguir nenhuma doutrina particular e nem ter a obrigação de acreditar em Deus, na alma ou em alguma especulação de ordem metafísica. O seu objetivo primacial é de se livrar do egoismo e de se realizar mediante as suas próprias forças”. Em outras palavras, o que realmente ocorre é um verdadeiro e profundo ato de conversão mediante o qual “Alcança a paz o homem que, renunciando aos desejos, vive sem cobiça de possuir, sem morbosidade e sem egoismo” (B.G. II, 71).

BIBLIOGRAFIA

Raphael. Essenza e scopo dello yoga. Le Vie iniziatiche al Trascendente. Edizioni Asram Vidya, Roma, 1990.

Gisele Pereira de Oliveira. Cecília Meireles e a Índia: Das provisórias arquiteturas ao “êxtase longo de ilusão nenhuma”. Universidade Estadual Paulista, Assis (SP), 2014.

Raffaela C. S. Corrêa. Panos flutuantes de todas as cores: a não-dualidade (advaita) do olhar nos poemas escritos na Índia, de Cecília Meireles. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora (MG), 2018.

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 07/07/2019
Reeditado em 08/07/2019
Código do texto: T6690542
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