DEUS ESTÁ NO KOMMANDO

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Leio num blog duma jornalista cristã: “Se o desânimo tomou conta de você e você pensa em abandonar o barco, lembre-se: Deus está no controle de tudo. E se ele está no comando, é porque o barco está seguindo para o caminho certo e você não deve desistir. [...] A carga sobre os seus ombros parece mais pesada do que se pode aguentar, mas é nessa hora que você precisa se mostrar mais forte e retirar de dentro de suas entranhas o suspiro exato para sair desse momento. Não há ninguém melhor do que Deus para te ajudar nesta missão. [...] Deus não gosta de ver ninguém em sofrimento e tem um caminho de felicidade à sua espera. Ele só quer que você confie nele, que navegue ao seu lado, enfrente a tempestade com a coragem de um capitão do mar, siga com determinação até encontrar o caminho que ele tem guardado para você. E não desistir jamais.”

Belas palavras, né? Pena que a verdade histórica aponta para uma realidade mensos poética e mais medonha.

Durante a Segunda Guerra Mundial cerca de oito milhões de pessoas perderam suas vidas nos campos de concentração nazistas, entre elas 1,5 milhões de crianças absolutamente inocentes.

Surge, espontânea, uma pergunta: por que Deus permitiu tanta violência e tanto horror?

Muitos cristãos irão responder que Deus não tem culpa alguma, pois todo esse mal decorreu do “livre arbítrio” que, no entanto, não passa de uma quimera pois ninguém pediu para nascer e muitos, conhecendo de antemão o ambiente no qual teriam nascido e os sofrimentos que os esperavam, provavelmente teriam recusado o nascimento. Afinal, como dizia Nietzsche, é a vida que decide pelo ser humano e não vice-versa.

Mais recentemente, o psicólogo estadunidense Roy Baumeister da Universidade Estadual da Florida escreveu, na revista científica Perspectives on Psychological Science, que “No centro da questão do livre arbítrio está o debate sobre as causas psicológicas da ação. Em outras palavras, se a pessoa é ou não é uma entidade autônoma que escolhe genuinamente como agir entre uma infinidade de opções possível. Ou se a pessoa é apenas mais um passo na cadeia de aleatoriedade, e por essa razão suas ações são nada mais do que o produto inevitável de uma série de causas derivadas de eventos anteriores e ninguém em sua posição poderia ter agido diferente".

No caso do Holocausto houve uma cadeia de comando que, partindo do chefe do Terceiro Reich, Adolf Hitler, e passando por fanáticos da pureza racial como Heydrich, chegava até os comandantes dos campos da morte e, mais em baixo, aos soldados das SS e até aos próprios prisioneiros que, organizados em pequenos grupos denominados Sonderkommando, faziam o “trabalho sujo” nas câmaras de gás e nos fornos crematórios antes deles mesmos serem eliminados pela máquina do extermínio. Não todas essas engrenagens agiam por puro sadismo ou por convicção ideológica, e não poucos, como demonstrou o próprio Adolf Eichmann durante o seu julgamento em Tel Aviv, simplesmente calaram a sua consciência conformando-se à situação para mostrar eficiência e disciplina diante de seus superiores e/ou por admirar incondicionadamente o líder supremo. Então é evidente que se Hitler não tivesse tomado o poder a Shoá não teria acontecido. Se realmente Deus, sendo onisciente, conhece o futuro, por qual motivo permitiu todo esse derramamento de sangue? Decerto as alternativas não lhe faltaram. Vejamos o que poderia ter sido feito:

• Hitler, quando líder, sofreu não menos de 15 atentados e nenhum deu certo; era suficiente que Deus tivesse permitido que uma das bombas preparadas para o ditador explodisse na hora e no lugar certo para resolver o problema, mas várias vezes o detonador falhou. Para um Ser todo-poderoso não teria sido um grande milagre fazer com que pelo menos uma das espoletas defeituosas funcionasse devidamente. No atentado à bomba de 20 de Julho de 1944, Hitler saiu com vida devido, no último instante, ter realizado a conferência entre os seus oficiais numa cabana (e não num bunker) em consideração do clima quente. Mas se Deus tivesse enviado uma pequena frente fria, o monstro não teria escapado.

• Durante a Primeira Guerra mundial, o cabo Hitler foi o único de seu batalhão a sobreviver a um intenso bombardeio de artilharia; mesmo sem falecer, podia ter ficado mutilado de forma tal de exclui-lo para sempre da cena política, mas saiu indene e, por isso, foi condecorado. Parece até que quem “estava no comando” o tenha protegido. Aliás, Hitler sempre afirmou de gozar da proteção divina.

• Outra solução, ainda mais simples e incruenta, era fazer com que Hitler não tivesse sido gerado ou gerado com um DNA diferente tendo, por exemplo dois cromossomos X: nesse caso teria sido uma mulher. Como os cromossomos sexuais se unem de forma aleatória, esse teria sido um “milagre” até mais simples que salvar a vida de um animal de estimação.

• Deus poderia até ter tocado o coração dos professores da Academia de Belas-Artes de Viena que, em 1907 e 1908 recusaram Hitler como estudante. Se o tivessem admitido, o mundo teria tido um péssimo pintor a mais e um carrasco a menos. Mas “quem estava no comando” achou correta esta escolha.

Quanto ao digno parceiro do ditador alemão, o sanguinário Stalin, aos cinco anos de idade teve varíola, chegando perto de falecer assim como aconteceu com muitas outras crianças do seu vilarejo; mais tarde foi atropelado por uma carroça que lhe deturpou o braço esquerdo mas não o matou. Infelizmente sobreviveu a outro atropelamento chegando a liderar a União Soviética onde provocou a morte de vinte ou trinta milhões de seres humanos inocentes. Se Deus estava no comando, como foi que tudo isso pôde acontecer?

Durante os Julgamentos de Nuremberg, Severina Scmaglevskaya, supérstite di Auschwitz, contou que uma noite foi acordada por gritos desumanos que continuaram durante várias horas. Como ela tinha um conhecido que fazia parte do Sonderkommando do campo, no dia seguinte perguntou a ele o que havia acontecido e ele explicou que, devido uma improvisa falta de gás venenoso (o Ziklon-B), muitas crianças haviam sido arrancadas dos braços de suas mães e jogadas vivas dentro dos fornos crematórios.

Nessas alturas, sem faltar de respeito a quem fé, queria fazer ao leitor três simples perguntas:

1) Onde estava a Divina Providência naquela noite de terror?

2) O que estavam fazendo os Anjos da Guarda que nada viram e nada ouviram? Se esses anjos nada fizeram para salvar as crianças de tanto sofrimento, qual a função deles: assistir impotentes a qualquer tipo de atrocidade? Ou servem apenas para, ocasionalmente, fazer com que um menino não perca o ônibus que o leva para a escola ou passe numa prova mesmo sem ter estudado?

3) Se você tivesse a possibilidade de encontrar uma daquelas mães que tiveram suas crianças queimadas vivas num crematório, teria ainda a impudência de dizer pra ela que sempre “Deus está no comando” e que há “um caminho de felicidade à sua espera”? Cuidado, porque ela poderia lhe responder que Deus, em vez de “estar no comando” estava no (Sonder)kommando!

Em síntese, se Deus fosse um Ser pessoal e, portanto, “humanamente” sensível à dor de suas criaturas, em particular das crianças (símbolo da inocência total), a dor não existiria. Mas a dor é apenas o momento negativo da existência biológica. Se Deus fosse onipotente e, portanto, capaz de impedir a dor do mundo permitindo o único polo positivo –prazeroso- da vida biológica, iria de encontro às leis que ele mesmo criara: obviamente, nesse caso teria sido mais lógico não criá-las. Tudo quanto exposto até agora implica apenas duas possibilidades: ou Deus não existe ou é um conceito muito mais abrangente daquilo proposto pelas religiões e mais parecido com o elemento panteísta de Espinoza compartilhado também por Einstein. Em ambos os casos, decerto Deus NÃO está no comando e a Providência é fruto da imaginação de quem necessita duma divindade qualquer à qual se agarrar nos momentos de tristeza, de medo e de perigo. Os religiosos dizem que o homem ama a Deus, mas na verdade ama apenas a si mesmo e garanto que se a dor e a morte não existissem, ninguém se importaria com ritos, orações, sacramentos, missas e penitências. Quanto à vida eterna, o filósofo britânico Bernard Willimas considerava a perspectiva duma vida infinita como sendo um melancólico futuro de repetição infinita das mesmas experiências, um tédio insuportável que tornaria a vida eterna simplesmente abominável.

Mas, voltando ao assunto, é fácil imaginar as objeções dos crentes: eles vão dizer que a Providência existe de verdade e o fato é comprovado pelos milagres que continuam ocorrendo. Pois bem, se todos esses milagres são tão frequentes assim, como se explica que não apenas nunca assisti um sequer, mas nunca ouvi falar num verdadeiro milagre? E, quando digo “milagre” me refiro a um evento que quebre as regras da física, da química ou da biologia. Por exemplo, alguém já viu uma perna amputada crescer de novo? Ou um prédio desabado durante um terremoto se erguer novamente? Um navio afundado voltar sozinho à superficíe do mar? Um anão crescer em poucas horas ou uma criança Down se tornar geneticamente normal?

Os religiosos contra-atacam afirmando que Deus não opera esse tipo de milagre justamente para nos deixar a liberdade de acreditar ou não. A meu ver, não poderia existir desculpa mais estúpida do que essa. Por qual estranho motivo uma pessoa qualquer deveria se sentir ofendida ou ameaçada se Deus, digamos em cada 50 anos, se manifestasse à Humanidade com um milagre espetacular? Ele nem precisaria reconstruir uma cidade arrasada por um tsunami e ressuscitar todos aqueles que perderam suas vidas na catástrofe: bastaria que alertasse, em sonho, alguns milhares de pessoas espalhadas pelo mundo. Essa seria não apenas a prova que Deus existe, que nos ajuda por meio da sua Providência, mas também que a vida de todos não termina com a morte e continua no além. As consequências positivas sobre a sociedade seriam fantásticas: provavelmente a grande maioria dos meliantes deixaria de cometer crimes, dificilmente haveria guerras e todos estaríamos mais dispostos a suportar os nossos sofrimentos cotidianos na perspectiva segura de uma felicidade eterna e comprovada.

Na verdade, porém, o que os religiosos chamam de “milagres” são apenas curas que ocorrem de forma aleatória mas seguindo uma estatística regular; por exemplo, a medicina ensina que um doente de câncer tem uma probabilidade em cada 60.000 de sarar de forma espontânea e definitiva. Isso idependentemente de seu credo religioso, de seu comportamento, de orações, bênçãos e outros rituais. Por enquanto o mecanismo de cura permanece desconhecido, mas um dia será descoberto pela Ciência.

Gostaria, portanto, de citar três casos absolutamente verídicos aptos a desmentir a ação milagrosa da Providência e mostrar ao leitor que certos fatos comprovam apenas a extrema resistência do corpo humano e a sua capacidade descomunal de sobreviver a traumas considerados extremos. São casos que conheço muito bem, pois estão ligados a pessoas da minha família.

O mais antigo se refere a meu avô que foi sargento de artilharia durante a Primeira Guerra Mundial. Durante a ofensiva inimiga de 1917 um shrapnel explodiu sobre a sua bateria e ele teve o cérebro atravessado por uma bola de chumbo que perfurou o osso frontal, a base craniana, o paladar e a língua. Com toda certeza uma ferida mortal, pois é muito difícil alguém sobreviver a uma bala transpassando a cabeça. Mesmo assim ele não morreu e nem ficou aleijado. O interessante é que meu avô vinha duma família socialista, era anticlerical, nunca ia à igreja, não rezava e nunca o ouvi falar em religião. Acredito até que fosse ateu. Ainda mais interessante é saber que dos 660.000 mil soldados italianos mortos naquela guerra a grande maioria, oriunda do Sul, era católica praticante: isso significa que, objetivamente, meu avô apenas teve muita sorte enquanto outros não foram tão afortunados quanto ele. Sorte, e nada mais do que isso.

Durante a Segunda Guerra Mundial, meu pai era motorista de caminhão na África do Norte. De noite, para escapar do frio do deserto, ele e um sargento também motorista, costumavam escavar uma pequena trincheira debaixo do motor, para ficar num ambiente morno e se abrigar aí até o sol nascer de novo. Acontece que uma noite o caminhão foi atingido por uma bomba inimiga que matou o sargento e arrancou uma perna de meu pai. Foi a Providência que escolheu? Se foi, fez a escolha errada porque, enquanto o sargento era extremamente religioso, meu pai nunca se interessou por essas coisas e não ligava minimamente para questões de igreja, santos, etc. Quando, conversando com ele, o assunto caía sobre questões de fé, sempre mostrou ser extremamente cético e desligado. Como se não bastasse, em 1997, ele foi levado ao hospital gravemente enfartado, ao ponto que os médicos nem queriam operar. Mas o chefe da equipe resolveu tentar e a cirurgia cardíaca deu certinho, tanto que meu pai veio falecer com quase 95 anos de idade. Ninguém, na família, pronunciou a palavra “milagre”, apenas todos reconheceram que ele era uma pessoa forte e sortuda.

Poucos anos atrás, à esposa ainda relativamente nova de um de meus cunhados foi diagnosticado um câncer de pele. Ela já havia sido operada pelo mesmo problema cerca de treze anos antes e o novo diagnóstico veio de forma totalmente inesperada pois a medicina ensina que, depois de dez anos, é muito difícil que o mesmo melanoma volte a atacar novamente. O marido, uma pessoa muito boa e devota, fez de tudo para salvar a vida da amada e, como ambos eram bastante religiosos, nada foi poupado para invocar a ajuda da Providência. Ele mandou rezar não sei quantas missas, fez inúmeras promessas, jejuou, fez romarias de joelhos e doações a uma igreja; uns familiares organizaram círculos de oração enquanto o quarto da mulher ficou tão repleto de imagens e estátuas de santos que mais parecia uma capela.

Mas tudo isso não adiantou. Ela continuou piorando ao ponto que um dia, não mais aguentando as dores, arrancou todas as sondas para morrer o mais rápido possível. As últimas semanas de vida –se é que aquela podia ser chamada de vida- foram horríveis e, enfim, os seus sofrimentos terminaram. Ela e o marido confiaram totalmente em Deus, mas Ele, apesar de estar no comando, nada fez para pelo menos aliviar as dores da pobre, cujos gritos ecoavam incessantes dia e noite.

Acredito que esses três casos que acabei de relatar sejam mais que suficientes para uma pessoa razoável e de mente aberta chegar à conclusão que o que acontece em nossas vidas só depende do acaso, da sorte, das circunstâncias históricas e de outras fatores imponderáveis, mas independe da vontade de um Ser que, segundo os religiosos, estaria no comando mas que, na verdade, em nada interfere nas coisas desse mundo. Aliás, intervir nos assuntos humanos iria significar não a perfeição da Divindade, mas a imperfeição duma criação que necessita de reparos em continuação.

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 16/06/2019
Reeditado em 19/06/2019
Código do texto: T6674499
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