MATERIA E ESPÍRITO: EXISTE DIFERENÇA?

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Tenho certeza que vários de meus colegas do Recanto das Letras gostariam de saber se professo alguma religião ou se sou seguidor do ateísmo, e esse novo artigo visa justamente dar uma resposta a essa pergunta. Uma resposta que vale também para mim mesmo, sendo útil para marcar um ponto firme na minha busca pessoal da Verdade.

Começo afirmando que não sigo nenhuma religião, principalmente aquelas “reveladas” e, muito menos, as abraâmicas que, como bem sabe quem acompanha os meus textos, reputo origem e causa das maiores tragédias e desastres desses últimos dois mil anos de história, inclusive os totalitarismos. Isso, porém, não significa que seja um materialista. Muito pelo contrário, considero a espiritualidade a expressão mais alta e nobre do pensamento e, nesse meu pensar, estou em boa companhia. Entre muitos pensadores e filósofos (Platão, Buda, Giordano Bruno, Unamuno, etc.) se destaca uma figura muito conhecida e decerto amada pela grandíssima maioria do público lusófono: a poetisa Cecília Meireles que, apesar da profunda espiritualidade, jamais aderiu a algum credo particular e até lutou contra o ensino religioso nas escolas públicas do Brasil.

Afirmo, portanto, de ser moderadamente Deísta acreditando na existência de algo que se põe à origem de todas as coisas, algo que existe desde sempre o do qual originou o nosso Universo. Não sei dizer se essa fonte é um Ser pessoal, mas duvido que o seja e, caso exista, gosto de imaginá-lo parecido ao “Um” hipotizado por Plotino, um Absoluto indefinível por meio de simples atributos humanos que não interfere em nossas vidas embora seja a origem de todas elas. Nesse sentido é até possível que, sendo plausível a existência de um projeto segundo o qual tudo se encaixa até nos mínimos detalhes para que a matéria informe se organize visando gerar a vida inteligente, o Absoluto possa representar não tanto o Alfa, quanto o Ômega, o ponto final dum processo evolutivo coletivo e universal. É um conceito difícil de se explicar, principalmente para a nossa cultura ocidental e cristã onde o tempo é considerado igual uma reta que vai do início até o fim. Entretanto, esse estranho conceito que acabei de expor ficaria mais compreensível para as filosofias orientais segundo as quais o tempo é circular, sem começo e sem fim e pode ser representado por um “Ouroboros”, um símbolo que contém as ideias de movimento, continuidade, auto fecundação e, em consequência, de eterno retorno.

O que vai ser de nós após a morte isso não sei, e ninguém sabe e quem afirma saber está mentindo. Posso apenas raciocinar e considerar que a mera existência física, que sempre acaba com o horror da decomposição, frequentemente é precedida por sofrimentos prolongados de uma maneira que contrasta com a beleza, a perfeição e o explendor do Cosmo. Tudo isso resulta num paradoxo que só pode ser superado admitindo a continuação da vida em outro plano mas, como não tenho elementos que comprovem essa afirmação, ela permanece no campo da metafísica e deve ser vista apenas como mera hipótese, uma tênue esperança. Entretanto, o ato de cogitar o prosseguimento da consciência em outra dimensão é, de uma certa forma, uma fé, não tanto num Ser, mas na lógica e corresponde a admitir que o próprio Universo sabe o que faz. Obviamente, com a palavra Universo me refiro não apenas ao Cosmo visível, mas ao Tudo que o constitui, não acreditando numa criação do nada, mas na emanação oriunda duma hipóstase (como diria Plotino) cujo atributo fundamental é a existência.

A carta que segue foi escrita pelo filósofo espanhol Miguel de Unamuno a um amigo chileno que lhe perguntava qual fosse a sua religião. Como achei excelente a resposta de Unamuno, resolvi publicá-la sendo que, em boa parte, a visão religiosa desse grande pensador, com algumas ressalvas, coincide com a minha. As poucas diferenças derivam, entre outros elementos culturais, das descobertas científicas desconhecidas na época em que a carta foi redigida (1907), quando ainda nada se sabia de galáxias, de Big Bang, de núcleo atômico, de relatividade, de mecânica quântica, etc. Consequentemente, acho absurdo estabelecer uma diferença escolástica entre matéria e espírito que, a meu ver, são apenas categorias da Filosofia. Como se pode falar em “espírito puro” se ainda nem sabemos como é feita a matéria a qual, examinada em seus componentes ultramicroscópicos, deixa de ser “material” para se tornar algo de impalpável que só pode ser descrito mediante equações matemáticas que, afinal das contas, representam ideias (no sentido de Platão) ou seja pensamento puro?

Outro ponto importante é que, enquanto Unamuno mostra “uma forte tendência ao cristianismo”, quem escreve não sente nenhuma atração para uma fé que reputa ter sido construída durante os séculos juntando elementos oriundos de religiões anteriores (em boa parte pagãs) e dogmas oportunos, assim como as crianças fazem com os tijolinhos da Lego. Apesar desses pontos de vista diferentes, posso fazer minhas as palavras de Unamuno e afirmar que: “minha religião é buscar a verdade na vida e a vida na verdade”.

Antes de deixar a palavra a Miguel de Unamuno, considero oportuno explicar ao leitor o significado da expressão “petição de princípio” (petitio principii, em Latim) por ele usada na carta. Trata-se duma retórica falaciosa que consiste em afirmar uma tese, que se pretende demonstrar verdadeira na conclusão do argumento, já partindo do princípio que essa mesma conclusão seja verdadeira em uma das premissas. Por exemplo, “A Bíblia diz a verdade pois é a palavra de Deus, e a Bíblia é a palavra de Deus pois diz a verdade”. Nesse caso a falácia ocorreu duas vezes, uma dando suporte à outra, mas sempre colocando conclusões nas premissas, de tal forma que nunca se demostra como válida conclusão alguma.

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<<Escreve-me um amigo desde o Chile me dizendo que lá se encontrou com algumas pessoas que, referindo-se aos meus escritos, lhe disseram: “Bem, de modo resumido, qual é a religião deste senhor Unamuno?”. Pergunta análoga me foi dirigida aqui várias vezes. E vou ver se consigo, não respondê-la, coisa que não pretendo, mas expor melhor o sentido desta pergunta. Tanto os indivíduos como os povos de espíritos preguiçoso; e pode ocorrer preguiça espiritual junto a atividades de ordem econômica muito fecundas e de outras ordens análogas -tendem ao dogmatismo, saibam-no ou não, queiram-no ou não, propondo-se a ele ou não. A preguiça espiritual escapa da posição crítica ou cética.

Cética digo, mas tomando a voz do ceticismo em seu sentido etimológico e filosófico, porque cético não quer dizer aquele que duvida, senão aquele que investiga ou vasculha, por oposição ao que afirma e crê haver achado. Há quem esquadrinhe um problema e há quem nos dá uma fórmula, acertada ou não, como solução dele. Na ordem da pura especulação filosófica, é uma precipitação pedir-se a alguém por soluções prontas, sempre que tenha adiantado a exposição de um problema. Quando se faz um cálculo errado, apagar o que foi feito e começar de novo significa um progresso relevante. Quando uma casa ameaça ruir ou se faz completamente inabitável, o que se faz é derrubá-la, e não há mais o que pedir senão que se edifique outra sobre ela. Cabe, sim, edificar a nova com materiais da velha, mas derrubando-a antes. Entretanto, as pessoas podem se abrigar numa barraca, se não têm outra casa, ou dormir ao relento.

E é preciso não perder de vista que para a prática de nossa vida, raras vezes temos que esperar pelas soluções científicas definitivas. Os homens viveram e vivem sobre hipóteses e explicações muito descartáveis, e mesmo sem elas. Para castigar a um delinquente não definiram se ele tinha ou não livre-arbítrio, assim como para espirrar ninguém reflete sobre o dano que lhe pode fazer o pequeno obstáculo na garganta que lhe obriga ao espirro. Os homens que sustentam que por não crerem no castigo eterno do inferno seriam maus, creio, em honra deles, que se equivocam. Se deixaram de crer numa sanção além-túmulo não se tornariam piores por isso, mas buscariam então outra justificativa ideal para a sua conduta. Aquele que sendo bom crê numa ordem transcendente, não é bom tanto por crer nela, mas nela crê por ser bom. Proposição esta que haverá de parecer obscura ou enviesada, disto estou certo, aos inquisidores de espírito preguiçoso.

Bem, me dirão, “Qual é a tua religião?”. E eu responderei: minha religião é buscar a verdade na vida e a vida na verdade, mesmo sabendo que não hei de encontrá-las enquanto viva; minha religião é lutar incessante e incansavelmente contra o mistério; minha religião é lutar contra Deus desde o alvorecer até o cair da noite, como dizem que contra ele lutou Jacó. Não posso transigir com este negócio de Inconhecível ou Incognoscível, como escrevem os pedantes; nem aquilo de “daqui não passarás”. Rechaço o eterno ignorabimus. E em todo caso, quero ascender ao inacessível.

“Sede perfeitos como vosso Pai que está no céu é perfeito”, disse-nos o Cristo, e semelhante idéia de perfeição é, sem dúvida, inexequível. Mas nos impôs o inacessível como meta e termo de nossos esforços. E isto ocorreu, dizem os teólogos, com a graça. E eu quero combater meu combate sem preocupar-me com a vitória. Não há exércitos e até mesmo povos que vão na direção de uma derrota certa? Não elogiamos aqueles que se deixaram matar lutando antes de render-se. Pois esta é minha religião.

Estes, os que me dirigem esta pergunta, querem que eu lhes dê um dogma, uma solução na qual possam descansar o espírito da sua preguiça. E nem isto querem, apenas buscam classificar-me e meter-me em um dos quadrados em que colocam os espíritos, dizendo de mim: é luterano, é calvinista, é católico, é ateu, é racionalista, é místico, ou qualquer outra destas alcunhas, cujo sentido claro desconhecem, mas que os dispensa de seguir pensando. E eu não quero me deixar classificar, porque eu, Miguel de Unamuno, como qualquer outro homem que aspire à consciência plena, sou um espécime único. “Não há enfermidades, apenas enfermos”, soem dizer alguns médicos, e eu digo que não há opiniões, apenas opinadores. Na ordem religiosa não há quase nada que eu tenha racionalmente resolvido, e como não o fiz, não posso comunicar logicamente, porque só é lógico e transmissível o que é racional. Tenho, sim, com efeito, com o coração e com o sentimento, uma forte tendência ao cristianismo sem ater-me à dogmas especiais desta daquela confissão cristã. Considero cristão todo aquele que invoca com respeito e amor o nome do Cristo, e me repugnam os ortodoxos, sejam católicos ou protestantes estes costumam ser tão intransigentes quanto aqueles que negam o cristianismo a quem não interpreta o Evangelho como eles. Conheço cristão protestante que nega que os unitários sejam cristãos.

Confesso sinceramente que as supostas provas racionais a ontológica, a cosmológica, a ética, etc. da existência de Deus não me demonstram nada; que quantas razões se queira dar de que existe um Deus me parecem razões baseadas em paralogismos e petições de princípio. Nisto estou com Kant. E sinto, ao tratar disto, não poder falar aos sapateiros em termos de sapataria. Ninguém conseguiu me convencer racionalmente da existência de Deus, mas tampouco de sua não-existência; os raciocínios dos ateus me parecem de uma superficialidade e futilidade ainda maiores do que os de seus contraditores. E, se creio em Deus ou, pelo menos, creio crer Nele, é, sobretudo, porque quero que Deus exista, e depois, porque se revela a mim, por via cordial, no Evangelho e através do Cristo e da História. É coisa de coração. O que quer dizer que não estou convencido disto como o estou de que dois mais dois são quatro. Caso se tratasse de algo que não mexesse com a paz da minha consciência e com o consolo de ter nascido, talvez não me ocupasse do problema; mas como nele vai toda a minha vida interior e o estímulo de todas as minhas ações, não posso contentar-me em dizer: não sei nem posso saber.

Não sei, é certo; talvez não possa saber nunca, mas “quero” saber. Quero-o, e basta. E passarei a vida lutando contra o mistério e ainda sem esperança de nele penetrar, porque esta luta é meu alimento e meu consolo. Sim, meu consolo. Me acostumei a extrair esperança do próprio desespero. E não gritem “Paradoxo!” os mentecaptos e os superficiais.

Não concebo a um homem culto sem esta preocupação, e espero muito pouca coisa na ordem da cultura e cultura não é o mesmo que civilização daqueles que vivem desinteressados do problema religioso em seu aspecto metafísico e somente o estudam em seu aspecto social ou político. Espero muito pouco para o enriquecimento do tesouro espiritual do gênero humano daqueles homens ou daqueles povos que, por preguiça mental, por superficialidade, por cientificismo, o pelo que seja, se apartam das grandes e eternas inquietudes do coração. Não espero nada dos que dizem: “Não se deve pensar nisso! ”; espero ainda menos dos que creem em um céu e em um inferno como aqueles em que acreditávamos na infância, e espero até menos daqueles que afirmam com a gravidades do néscio: “Tudo isto não passa de fábulas e mitos; quem morre é enterrado, e acabou”. Somente espero dos que ignoram, mas que não se resignam a ignorar; dos que lutam sem descanso pela verdade e põem sua vida na própria luta mais que na vitória.

E o maior dos meus trabalhos tem sido sempre inquietar aos meus próximos, remover-lhes a quietude do coração, angustiá-los, se puder. Já o disse em meu Vida de Dom Quixote e Sancho, que é a minha mais extensa confissão a este respeito. Que eles busquem, como eu busco, que lutem, como luto eu, e, entre nós todos, algum fiozinho de segredo arrancaremos de Deus, e, pelo menos, essa luta nos fará mais homens, homens de mais espírito.

Para esta obra, obra religiosa, foi-me necessário em povos como estes povos de língua castelhana, carcomidos de preguiça e de superficialidade de espírito, adormecidos na rotina do dogmatismo católico ou do dogmatismo livre-pensador ou cientificista parecer por vezes impudico e indecoroso, em outras duro e agressivo, não poucas enrolado e paradoxal. Em nossa minguada literatura não se ouvia ninguém gritar desde o fundo do coração, descompor-se, clamar. O grito era quase desconhecido. Os escritores temiam fazer-se ridículos.

Acontecia-lhes e lhes acontece o mesmo que àqueles que suportam à uma afronta no meio da rua por temor ao ridículo de se verem com o chapéu no chão ou presos pela polícia. Eu, não; quando senti vontade gritar, gritei. Jamais me conteve o decoro. E esta é uma das coisas que menos me perdoam estes meus companheiros de ofício, tão comedidos, tão corretos, tão disciplinados até mesmo quando pregam a incorreção e a indisciplina. Os anarquistas literários se preocupam, acima de tudo, com a estilística e a sintaxe. E quando saem do tom o fazem afinadamente; seus desacordes conseguem ser harmônicos.

Quando senti uma dor, gritei, e gritei em público. Os salmos que figuram em meu volume de Poesías não são mais que gritos do coração, com os quais busquei fazer vibrar as cordas dolorosas dos corações dos outros. Se não têm essas cordas, ou se as têm tão rígidas que não vibram, meu grito não ressoará nelas, e declararão que isso não é poesia, pondo-se a examiná-los acusticamente. Também se pode estudar acusticamente o grito que lança um homem quando vê seu filho de repente cair morto, e quem não tem nem coração nem filhos, fica nisso.

Estes salmos de minhas Poesías, com outras várias composições que ali estão, são minha religião cantada, e não exposta logica e racionalmente. E a canto, bem ou mal, com a voz e o ouvido que Deus me deu, porque não posso raciociná-la. E quem veja nestes meus versos raciocínio e lógica, e método e exegese, mais do que vida, por neles não haver faunos, dríades, silvanos, nenúfares, “absintos” (ou seja, losna), olhos glaucos e outras jóias mais ou menos modernistas, que lá permaneça com os seus, pois não vou tocar-lhe o coração nem com arcos de violino ou martelos.

Do que fujo, repito, como da peste, é de que me classifiquem, e quero morrer ouvindo perguntar de mim os folgados de espíritos: “E este senhor, que é? ”Os liberais ou progressistas tontos me terão por reacionário e acaso por místico, sem saber, é claro, o que isto quer dizer, e os conservadores e reacionários tontos me terão por uma espécie de anarquista espiritual, e uns e outros, por um pobre senhor desejoso de singularizar-se e de passar por original e cuja cabeça é um pote de grilos. Mas ninguém deve se preocupar do que dele pensam os tontos, sejam progressistas ou conservadores, liberais ou reacionários.

E como o homem é teimoso e não costuma querer se informar e tem o hábito de depois de lhe haverem pregado sermões por quatro horas voltar aos passeios, os perguntões, se lêem isto, voltarão a me perguntar: “Bom; mas que soluções trazes? ” E eu, para concluir, lhes direi que se querem soluções, corram para a loja da frente, porque na minha não se vende semelhante artigo. Meu empenho foi, é e será, que aqueles que me lêem, pensem e meditem nas coisas fundamentais, e nunca foi de dar-lhes pensamentos prontos. Eu busquei sempre agitar e mais sugerir do que instruir. Se vendo pão, não é pão, mas levedura ou fermento.

Há amigos, e bons amigos, que me aconselham a deixar de lado este esforço e me recolher a fazer o que chamam de obra objetiva, algo que seja, dizem, definitivo, algo de construção, algo duradouro. Querem dizer algo dogmático. Declaro-me incapaz disto e reclamo minha liberdade, até mesmo de me contradizer, se for o caso. Eu não sei se algo do que fiz ou que venha a fazer na seqüência haverá de perdurar por anos ou por séculos após a minha morte; mas sei que se for dado um golpe num mar sem orla as ondas ao redor prosseguirão sem cessar, mesmo que se enfraquecendo. Agitar é algo. Se por conta desta agitação vier atrás de mim outro que faça algo duradouro, nele durará minha obra. É obra de misericórdia suprema despertar o adormecido e sacudir o inerte, e é obra de suprema piedade religiosa buscar a verdade em tudo e descobrir onde quer que seja o dolo, a necedade e a inépcia. Já sabe, pois, meu bom amigo o chileno o que tem que responder a quem lhe pergunte qual é minha religião. Agora, bem; se for um destes mentecaptos que creem que guardo ojeriza a um povo ou à uma pátria quando lhe cantei as verdades a algum de seus filhos irreflexivos, o melhor que pode fazer é não lhes responder.>>

Miguel de Unamuno - Salamanca, 6 de novembro de 1907.

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Viagem ao Centro do Cristianismo" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.