A Existência de Deus.
"Quino diz tudo: esta é a peça que Aristóteles pregaria em Santo Tomás de Aquino. (figura 1) Tomás de Aquino usou do argumento de Aristóteles para provar a existência de Deus. Aristóteles tinha utilizado do argumento em questão para provar a existência da Divindade, mas isso o conduziu a mais ou menos 47 a 55 deuses. Seria bom ver um religioso fervoroso, no âmbito judaico-cristão, bater na porta do Céu e ser recebido por santos cristãos, embora politeístas, claro, por uma razão óbvia: haveria uma necessária rotatividade no plantão celeste.
O cartunista Argentino Quino leu o filósofo Ortega Y Gassett, mas foi muito além de Ortega na crítica à religião e à política dogmáticas. E o quadrinho abaixo é mais um daqueles que, como a maioria de sua produção, estampa sua genialidade humorística. Pode ser aplicado a várias pessoas que conhecemos. Aqui, dá para aplicar jocosamente à relação de Tomás de Aquino com Aristóteles.
Aquino trabalhou com a prova da existência de Deus a partir da idéia de “motor imóvel” de Aristóteles. Haveria coisas que são movidas e várias outras que além de serem movidas também poderiam se mover. Então, tudo que é movido é movido por algo. Mas, para evitar o incômodo da regressão infinita, deve-se chegar a um tipo de coisa que move e, no entanto, não é movida. Pois bem, eis aí o “motor imóvel” – Deus. Por esse raciocínio, temos uma das “provas da existência de Deus”, que é a de Tomás de Aquino. Nada diferente da de Aristóteles.
Em Aristóteles, o motor imóvel pode mover as outras coisas sem chocar com elas, apenas atraindo-as. Aristóteles dá um exemplo em que a distinção entre causa e razão não entra, ambas funcionando no mesmo plano. O motor imóvel move o outro sem ser movido, isto é, sem se chocar, do mesmo modo que o amado move o amante, por atração, isto é, por amor e mesmo paixão. Aquino não muda isso. O que ele faz é eliminar uma parte da física de Aristóteles, que indica que esse raciocínio está ligado a uma cosmologia, ou seja, a astros que representam deuses, todos eles amados que atraem amantes – e isso é que contabiliza algo em torno de 47 a 55 deuses.
Há outras “provas” da existência de Deus na literatura produzida por Tomás de Aquino. São utilizadas até hoje por pessoas da hierarquia católica e, não raro, também da protestante. Mas a prova mais célebre da existência de Deus na filosofia não é esta. É a de Santo Anselmo. Na história da filosofia ela recebeu o nome de “prova ontológica”. Foi utilizada por Descartes e criticada por Kant. É um belo argumento.
Anselmo argumenta[1], primeiramente, pela necessidade de Deus. Deve existir uma natureza singular que é o sumo bem, que reúne todas as qualidades mais altas e, enfim, que possa ser a causa e a perfeição últimas. Até aí, o argumento é mais uma caracterização de Deus do que uma prova de existência. Anselmo utiliza então o famoso “argumento ontológico”: nós acreditamos que há algo pensado que é o máximo, e em relação ao qual nada de maior pode ser pensado; agora, se algo é o máximo, o mais perfeito, deve existir também fora da mente, para além do pensamento, caso contrário lhe faltaria algo – a propriedade de existência – e então não seria o máximo.
Por ser usado por Descartes e criticado por Kant, esse tipo de argumento ficou célebre na conta de Anselmo, todavia, ele não inovou nisso. Bem antes dele Cícero, Sêneca, Agostinho e Boécio utilizaram esse tipo de argumento.
A crítica de Kant é eficaz, e segue o estilo de rigor sempre adotado pelo filósofo.
Kant reconstrói o argumento da prova ontológica. A frase que tem de ser verdadeira é Deus é ou Deus existe. Essa frase é tomada como verdadeira, segundo o que segue: Deus, sendo Deus, tem todos os predicados, e então Deus não pode carecer do predicado da existência. Mas Kant não vê a existência como um predicado. Posso dizer que “Deus é boníssimo”, posso dizer que “Deus é realíssimo” etc. Para o sujeito Deus sempre tenho um predicado, boníssimo, realíssimo etc. Agora, se elimino todos os predicados, e fico apenas com “Deus é”, não posso afirmar que este “é” que aí está implica no predicado “ser” ou “existe” a Deus. Pois o papel do “é”, no caso, é o de um verbo que faz a ligação do sujeito com o predicado, nada mais que isso.
Outra maneira de pensar no sentido de derrubar a prova baseada no “argumento ontológico” também é dada pelo próprio Kant.
Penso em algo, e assim faço por meio de atribuir a esse algo alguns predicados (por exemplo: “Deus é boníssimo”). Então, acrescento a esse algo, além dos predicados, que ele “é”, mantendo isso no âmbito do pensamento ou da linguagem (“Deus é [boníssimo]”). Ora, mas isso não acrescenta de fato nada a tal coisa (o objeto Deus). Pois, caso contrário, o conceito pensado teria mais coisas do que o objeto do conceito. E se o conceito tem mais coisas que o objeto, então, ele não reproduz o objeto, não é conceito daquele objeto.
Kant deu combate a outras “provas da existência de Deus”. Mostrou que tais provas, todas elas no âmbito do raciocínio puro, careciam de consistência. Então, restaria encontrar “provas” por meio de um raciocínio empírico – mas isso seria contraria a própria natureza de Deus, que não é físico. O encontro com Deus por meio da empiria não seria filosofia, seria o que é chamado de milagre. Dessa forma, foi com Kant que Anselmo, Tomás de Aquino e outros realmente tomaram um bom tombo. A partir de Kant, e talvez somente a partir dele, Deus começou a ter de recolher-se ao campo da atividade prática e, portanto, no mundo liberal, a crença em Deus passou a ser algo que entendemos que está no âmbito da vida privada. Não foi difícil, então, para os liberais, começarem a dizer: “religião não se discute, cada um tem a sua”.
[1] Luscombe, D. Medieval thought. Oxford: OPUS, 1997. Ver também: Davies, B. Anselm and the ontological argument. In: The Cambridge Companion to Anselm.