O Papa Jogou a Toalha
Há notícias que nos chegam quando jamais pensaríamos que elas pudessem chegar. Por exemplo, essa de agora, ou seja, em pleno Carnaval o Papa jogou a toalha. E deixou de calça arriada no meio do salão um monte de católicos ou não.
Ouvimos alguma coisa a respeito de problemas com a próstata. Ou terá sido artrite-reumatóide, Alzheimer, Parkinson, etc., ou um outro tipo de degeneração com que são sempre contemplados os da “melhor” idade? Mas será que foi essa a efetiva razão?
Jamais saberemos. Muito menos em seus detalhes, como costuma acontecer com os assuntos considerados da máxima importância para a Igreja. Que vem escondendo do mundo, católicos ou não, tudo o que ela acha que não precisaríamos saber. Por que assim é melhor. Ou então faríamos uma algazarra danada, uma confusão danada e não nos manteríamos comportados, quietinhos e em ordem, sem trazermos quaisquer preocupações para as classes dominantes. Inclusive o clero, sempre mais perto de quem manda do que de quem obedece. Desobedecendo assim Jesus Cristo que, muito antes do que sugeriu a Igreja, já tinha feito a sua “Opção Pelos Pobres”.
Além da idade avançada e dos problemas a ela inerentes, pode ter havido várias razões para que o Papa desistisse de levar a sua gestão até o fim. Que se daria com o fim físico dele.
Há algum tempo noticiou-se nas primeiras páginas dos jornais em todo o mundo (Brasil, Portugal, Alemanha, Austrália, Espanha, Bélgica, França, Reio Unido, Irlanda, Canadá e Estados Unidos) o “abuso sexual de menores por membros da Igreja Católica”, isto é “o abuso sexual de crianças por clérigos”. O que pode estar acontecendo ainda nos dias de hoje. Na Ásia, África ou América Latina.
Em março de 2010, os sucessivos escândalos relativos a crimes de pedofilia cometidos contra menores e crianças por padres e clérigos, fizeram com que católicos em Londres se juntassem em frente à Abadia de Westminster para pedir a saída do nosso Bento XVI. “Na Suíça, na mesma época, a presidente Doris Leuthard defendeu a criação de um ‘cadastro de padres pedófilos’, como medida cautelar, e nos EUA o jornal The New York Times acusava o Papa de ter diretamente se omitido nos casos de pedofilia ocorridos naquele país e na Alemanha na década de 1980”, nos informa a Wikipédia, a enciclopédia livre.
Estamos em 2013 e as notícias de crimes dessa natureza têm se multiplicado. O que acabou levando Bento XVI a ser “acusado de encobrir vários casos de padres pedófilos”, acusação que não deveria ser apenas a ele atribuída, mas que naturalmente recai com mais peso sobre quem é o responsável maior pela Igreja Católica.
Vemos agora, veiculada pela Rede Globo de Televisão, um pouco antes do Carnaval, o caso da denúncia feita por um número expressivo de senhoras, na Inglaterra, que quando mais jovens ou menores teriam sido vítimas de arbitrariedades, torturas físicas e abusos sexuais cometidos por padres em instituições ou conventos sob a administração de freiras, possivelmente com a participação delas. O que mais uma vez deve ter mexido com a cabeça do “santo padre”.
Fora desse plano de libidinagens e prazeres físicos indevidos, porque perpetrados sob coação e constrangimento contra menores na maior parte das vezes indefesos, atitudes expressamente condenadas pela igreja, temos os casos de possíveis operações ilegais a cargo do Banco Ambrosiano, principal parceiro do Banco do Vaticano, conforme rumores surgidos com a morte súbita do Papa João Paulo I, em 1978. O que chegou a ser tema do filme O Poderoso Chefão III. Devendo ser lembrado ainda que “o Banco do Vaticano foi acusado de desviar verbas secretas dos Estados Unidos, do Sindicato Solidariedade, da Polônia, e dos Contras, da Nicarágua, através do Banco Ambrosiano”.
Tivemos também, em outubro de 2012, o caso da condenação do mordomo do Vaticano por roubo de documentos oficiais. Certamente versando sobre assuntos privativos do Papa. Ou até papéis comprometedores que o próprio Pontífice desejava destruir. O mordomo, nesse aspecto, poderia representar um espião do Papa dentro do Vaticano. A serviço de quem?
Sem dúvida são razões mais do que suficientes para que Bento XVI desista de corrigir os desacertos de uma instituição que se apresenta aos olhos do mundo como capaz de a todos corrigir e orientar. Mas que vai assumindo o aspecto de “incorrigível”, no sentido do acobertamento de ações totalmente contrárias à sua própria doutrina ou aos ensinamentos de Cristo.
Entre outras possibilidades, Bento XVI pode ter abdicado do seu reinado papal para não ter que admitir que a igreja é, hoje, talvez mais do que nunca, uma instituição em crise. Na medida em que se observam cada vez mais profundas contradições entre aquilo que ela professa e o que ela pratica. E também na medida em que se processa uma verdadeira revolução espiritual, motivada, suscitada ou decorrente das transformações da vida moderna devidas em grande parte aos avanços tecnológicos. Tudo acarretando inevitáveis repercussões no campo psicossocial ou do comportamento humano, que a igreja simplesmente se recusa a considerar.
Nessas circunstâncias, o Papa vira as costas e vai embora, considerando-se incapaz de lidar com todas essas adversidades, além da cisão na hierarquia eclesiástica, o que na verdade sempre houve. Só que essa cisão se torna hoje mais aprofundada, em parte provavelmente pela ausência de respostas que pudessem satisfazer os interesses dos grupos formados em torno do Papa, sendo talvez o maior de seus interesses a eleição do sucessor do chefe do Vaticano. Tal como acontece nas repúblicas que chamamos de democráticas. Em que diferentes grupos brigam pelo poder ou para que ele seja exercido por um de seus representantes.
Nesse sentido, foi motivo de muitas risadas minhas o comentário de um amigo sobre o texto que a ele enviei, acho que um dia antes do anúncio da renúncia do Papa. Ele disse o seguinte: “cara, o teu texto derrubou o Papa”.
Reproduzo-o a seguir a título de eventual curiosidade:
o grande pastor
existem segredos que a igreja guarda
por anos a fio, de noite e de dia
o autoritarismo, eminência parda
que eles confundem com eucaristia
não dizem pra gente o que eles escondem
mas só o que podem dizer no domingo
e se por acaso perguntam, respondem
e não se preocupam que estejam mentindo
o grande pastor aboliu o mercado
mas se ele soubesse o que existe agora
conventos de freiras praticam o pecado
que a igreja queria do lado de fora
se o grande pastor estivesse acordado,
talvez nos dissesse “é melhor ir embora”
Maricá, 07/02/2013
A atitude sem precedentes do Sumo Pontífice reforça, no meu entendimento, a ideia de que o Vaticano nada mais é que um estado e o Papa um estadista. Sendo cada vez menor o aspecto de religiosidade que se deva atribuir ao sistema em que se fundamenta hoje a Igreja Católica. E sendo cada vez maior a distância que a separa dos ensinamentos de Cristo. Isso não quer dizer que se deva prescindir totalmente da religiosidade e admitir o ateísmo como uma alternativa cada vez mais inevitável. Nada disso, embora cada um deva ter a liberdade, diante de todas as experiências que vivencie e formulações que considere aceitáveis, de escolher o caminho que lhe seja mais satisfatório para o alcance do ponto de chegada.
Do mesmo modo que o Brasil necessita de uma profunda reforma política, em que seriam abolidos, entre outros procedimentos, o voto obrigatório e as inúmeras vantagens de que se revestem os mandatos parlamentares, à igreja é imprescindível uma ampla reforma religiosa.
Em primeiro lugar que a reaproxime dos exemplos e ensinamentos que nos foram legados pelo grande pastor Jesus Cristo. Que nunca imaginou que a sua igreja se transformasse numa casa de negócios ou que crescesse tanto a ponto de se tornar um estado sem nada dever, além de uma força militar com atribuições bélicas, às confederações que se espalham pelo planeta.
Em segundo lugar, uma reforma que lhe permita, sem se afastar um milímetro do que foi ensinado por Cristo, absorver as intercorrências que derivam da vida moderna, com os avanços (ou retrocessos) tecnológicos, com as transformações ideológicas, psicológicas e do imaginário humano, a partir de todas as mutações iniciadas bem antes do aparecimento de Jesus Cristo sobre a face da Terra.
Nessa reforma, possivelmente a Igreja faria muito mais pela humanidade, que se expandiu exponencialmente depois de Cristo, ou por seus seguidores, que muitas outras seitas ou religiões. Se discutisse com os fiéis os segredos que ela teme que eles descubram ou que deles os fiéis tomem conhecimento. Colaborando com a eliminação do sofrimento muitas vezes causado pela dúvida; com o autoconhecimento, já buscado por outras religiões ou por muitos individualmente; e com a possibilidade de maior esclarecimento dos seres humanos sobre questões que lhes parecem eternas, como a doença, a velhice e a morte – questões, por exemplo, que levaram Buda para as montanhas atrás de “iluminação”. Logicamente o Catolicismo se aproximaria de todas as religiões, muitas delas talvez com algumas das respostas que a Igreja se recusa a revelar, quando sabemos, ou pelo menos desconfiamos, que o fim ou o objetivo delas é basicamente o mesmo.
A título de ilustração, veja por exemplo o que diz um evangélico, amigo meu, na verdade (e felizmente) não tão fanático: “Se cobiçar a mulher do próximo fosse realmente pecado, no Inferno não haveria lugar pra tanta gente”.
Formulações desse tipo, que podemos preferir interpretar como piadas, revelam também a expressão de um raciocínio ou a demonstração de um espírito crítico.
Maricá, 14/02/2013