A patrística Latina - Carta 041

A PATRÍSTICA LATINA

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Depois da publicação de “A patrística Grega” vários leitores solicitaram que se escrevesse outro trabalho sobre a Latina, o quer agora de concretiza.

A teoria mais aceita é que a doutrina Patrística do Ocidente (é também referida como Patrologia) começa a existir a partir do Concílio de Nicéia (325), e logo a seguir fortalecida pelas obras dos santos Jerônimo (Homilias) e Agostinho (Confissões), consideradas as mais conspícuas exposições sobre o cristianismo. Alguns autores contemporâneos de peso defendem ferrenhamente a premissa de que já havia “Pais da Igreja” a partir do final do primeiro século, ocasionando como que uma interpenetração entre os períodos apostólico e patrístico.

É oportuno lembrar que os verbetes patrística e patrologia são sinônimos. A literatura cristã antiga começou a ser desenvolvida em paralelo com a história da Igreja, e em alguns casos, divergentemente desta. Numa obra de São Jerônimo (De viribus illustris), escrita no fim do século IV, escrita para rebater a arrogância dos pagãos romanos, quando à sua cultura, o tradutor da Vulgata apresenta um significativo apanhado da vida e dos escritos de 135 autores cristãos.

A teoria hoje mais aceita, a que tem melhor trânsito na Igreja universal, é aquela em que a Patrística começou a partir dos Padres Apologistas e Apostólicos, e teve como marco final, no Ocidente, a morte de Santo Isidoro de Sevilha (636) e no Oriente, a de São João Damasceno (750). Entre quase uma centena de escritores latinos, se poderia apontar a seguir, os oito principais:

 AGOSTINHO, de Hipona († 430)

Filho de pai pagão e mãe cristã, Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste, norte da África, em 354. Homem inteligente, de espírito inquieto, procurou nos prazeres da vida aquilo que tanto angustiava sua busca existencial. Depois de uma vida desregrada, moral e intelectualmente, converteu-se (por conta das orações e lágrimas da mãe, Mônica e da pregação do bispo Ambrósio), ordenando-se presbítero aos 37 anos. Posteriormente, em 397, foi consagrado Bispo, designado titular de Hipona (hoje Bona, na Argélia).

A teologia agostiniana gira em torno de dois eixos, até então considerados irreconciliáveis, a razão (a filosofia aristotélica) e a fé, que apontam para Deus (“a primeira verdade”) e o homem (“destinatário da misericórdia divina”). Sua metodologia teológica aponta para a adesão à fé que dimana da Escritura (inspirada, inerrante e sempre atual). Sua teologia é dogmática, eclesial e também social:

O supérfluo dos ricos é essencial aos pobres (superflua divitum

necessaria pauperum est). A partilha é um ato de justiça, pois

visa reparar uma fraude já ocorrida ou um furto praticado

(Sermo 302, 22)

Se desses o que é teu seria liberalidade. Como dás o que é dele

(Jesus presente no pobre), fazes uma mera restituição (Sermo

303).

Os bens terrenos são desprezíveis se comparados com os

tesouros da vida eterna (De Civitate Dei; A Cidade de Deus).

Além de sua intransigente defesa da ortodoxia da fé, de seu senso de justiça e exortação à partilha, é notável o processo de conversão de Agostinho, retratado em sua magistral obra Confissões, relato incrível de como um pecador empedernido se transforma num santo. O exemplo serve para demonstrar o poder da graça de Deus, agindo no homem que vive – mesmo no pecado – uma atitude de busca. Abaixo, selecionamos alguns trechos das famosas “Confissões”:

Senhor, criaste-nos para ti, e nosso coração não tem paz

enquanto não repousa em ti (cap. 1);

É acaso pequeno, Senhor, o castigo de não te amar? (c. 5);

Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde demais eu te

amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de

fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas

criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo (...) Tu me

tocaste, e agora estou ardendo no desejo da tua paz (c. 27)

Ensinaste-me a considerar os alimentos como remédio. No entanto,

quando passo da ânsia da fome ao repouso da saciedade, é nesta

mesma passagem que me aguarda a cilada da concupiscência (c.

30);

Têm excepcional valor os tratados sobre 1Jo (Ep. Ad Parthos). Nesse contexto é especialmente notável seu famoso sermão Dillige et quod vis fac (Ama e faze o que quiseres), em que o mestre de Hipona revela que o bem é praticado à luz do amor, e quem tem esse sentimento, poderá fazer o que quiser, pois sempre fará o bem, segundo Deus.

Ama e faze o que quiseres! Se te calas, cala-te movido pelo amor;

se falas em tom alto, fala por amor; se corriges, corrige com amor;

se perdoas, perdoa por amor. Tens no fundo do coração a raiz do

amor: dessa raiz não pode sair senão o bem (Idem).

Em suas Confissões, o grande mestre de Hipona faz uma reflexão retrospectiva de sua vida, de como acolheu a graça de Deus, vivendo em sua presença como que uma profunda intimidade. Deixamos para o fim, o texto que julgamos o mais sugestivo da obra de Agostinho, no qual enxergamos como que uma síntese de toda sua conversão:

Louvarão o Senhor aqueles que o procuram. Quem o procura o

encontra, e tendo-o encontrado, o louvará. Que eu te busque,

Senhor, invocando-te; e que eu te invoque, crendo em ti: tu nos

foste anunciado. Invoca-te, Senhor, a minha fé, que me deste,

que me inspiraste pela humanidade de teu Filho, pelo ministério de

teu pregador (c. 1).

Há um texto agostiniano de densa teologia, empregado há vários séculos da dilucidação dos problemas de Teologia Moral, chamado “Livre Arbítrio”. É interessante observar nessa obra, uma visão atual e precisa da liberdade humana, bem como da origem do mal moral. O objetivo do livro, escrito no século V, hoje mote para tantas teses de Mestrado e Doutorado em Teologia Moral, é mostrar que Deus criou todas as coisas boas, sem a mínima imputação de erro ou pecado. Deus não criou o pecado, segundo o mestre de Hipona. Ele entrou no mundo por causa do mau uso que o ser humano fez/faz de sua liberdade. É tudo uma questão de “livre arbítrio”.

Agostinho foi considerado, junto com Paulo, Antão, Inácio, Francisco e Teresa, um dos “santos que abalaram o mundo”. Agraciado com o título de Doutor da Igreja e Santo (sua festa ocorre em 28 de agosto) é o mais insigne teólogo ocidental. Não podemos nos dizer cristãos de fato, teólogos, bispos, presbíteros, professores, pastores, leigos engajados, religiosos e demais estudiosos da doutrina, se não tivermos lido suas obras principais, como “Confissões”, “A Cidade de Deus”, “A Graça”, “A Trindade”, “O cuidado devido aos mortos” e “Livre-arbítrio”, entre outras...

 JERÔNIMO († 419/20)

Sofronius Eusebius Ieronimus nasceu na Dalmácia, filho de uma abastada família. Ordenado presbítero por volta de 378, partiu para Constantinopla, onde ouviu os sermões de Gregório Nazianzeno, tornando-se amigo, também, de Gregório de Nissa. Em 386 foi para a Palestina, onde terminou os seus dias. Lá traduziu a Bíblia, do hebraico para o latim (a vulgata). A polêmica nunca se afastou de Jerônimo Suas violências verbais não poupavam ninguém. Criticou, inclusive, Basílio e Agostinho. Morreu em Belém, da Judéia. É festejado pela Igreja em 30 de setembro. Foi declarado Santo e patrono dos biblistas. Sua “doutrina social”, fiel a seus contemporâneos, é breve, porém radical:

Todo o rico é injusto ou herdeiro de um injusto (Omnis dives iniquus

aut iniqui heres), pois toda a riqueza descende da injustiça.

Ninguém faria fortuna se outros não tivessem empobrecido

(Homilias sobre Mateus).

 AMBRÓSIO, de Milão († 397)

Sua atuação, à testa da arquidiocese de Milão, foi mais pastoral que teológico-especulativa. Sua cristologia identifica em Cristo duas naturezas (humana e divina) bem como duas vontades. Defensor da leitura das Escrituras sob os aspectos literal, moral e alegórico-místico, escreveu, sob esse enfoque, mais de vinte obras exegéticas. Dentro do esforço pastoral, sua denúncia contra a exploração e avareza, como se vê a seguir, é parte importante do acerco daquilo que é chamado Ensino Social da Igreja, de todos os tempos.

Não dás de tua fortuna, ao seres generoso para com o pobre. Tu

dás aquilo que lhe pertence. Porque aquilo que atribuis a ti, foi dado

para uso comum de todos. A terra foi dada a todos e não apenas

aos ricos (...). Lamentavelmente, a cada dia nascem mais Acab e

morrem mais Nabot (De Nabuthe XII). A avareza dos homens,

contrária aos planos de Deus, gerou a repartição das propriedades

(Comentário ao Salmo 118). O bem privado é assim fruto da

usurpação (Comentário ao Salmo 118).

O drama dos pequenos agricultores da Itália, explorados pelos latifundiários do Vale do Rio Pó, faz o pano-de-fundo para a pregação de Ambrósio, que se reporta à Antigüidade judaica, fazendo alusão à história de Nabot (séc. IX a.C.), um camponês que por causa de sua pequena chácara tornou-se vítima da desenfreada cobiça do rei Acab (cf. 1Rs 18). Ambrósio é o primeiro a levantar a idéia da hipoteca social que pesa sobre toda a propriedade privada:

Quem está satisfeito com o que tem? Os poderosos não se

importam com o objetivo fundamental da lei. Os pequenos

agricultores são expulsos e inumeráveis famílias ficam entregues

ao desespero. Os ricos estão completamente obcecados. Qual é

o limite de sua louca cobiça? Será que vocês moram sozinhos no

mundo? Toda a terra tem uma função comunitária, a favor de

todos, tanto dos ricos como dos pobres. O comportamento dos

ricos é incompreensível! Por que é que vocês reivindicam a terra,

como se fossem os únicos com direito a dispor dela? É mistér

que se abram os olhos para a realidade (De Nabuthe, op. cit.).

Homem culto, inteligente e exímio pregador, é uma das maiores personalidades da Igreja. Ambrósio é um dos responsáveis pela conversão de Santo Agostinho, que o chamou de “apóstolo da amizade”. A Igreja elevou o arcebispo de Milão à honra dos altares, declarando-o Doutor da Igreja. Sua festa ocorre em 7 de dezembro.

 GREGÓRIO MAGNO († 604)

Nascido em Roma, Gregório foi, segundo J. B. Bossuet († 1704), “o modelo perfeito de como se governa a Igreja... talvez tenha nascido mesmo para ser Papa...”. Por volta de 573 foi aclamado com prefeito da cidade de Roma. Depois da morte do pai, fundou vários mosteiros nas propriedades que herdou. Em 575 foi ordenado diácono, designado para ser secretário do papa Pelágio, de quem foi nomeado sucessor em 590. Seu pontificado foi de conciliação com toda a Igreja, que vivia momentos difíceis. Em termos literários, Gregório tem mais de 850 cartas, além de várias homilias e diversos comentários de trechos bíblicos, onde destacamos:

Não é crime possuir bens. O crime é retê-los gananciosamente,

sem partilhar com os famintos (Regra Pastoral).

Em outra de suas festejadas obras, Moralia in Job, um comentário em 35 livros sobre a história de Jó, o autor brinda seus leitores de todos os tempos com volumoso porém conciso trabalho de exegese histórica, alegórica e moral, e de suas aplicações práticas na vida daquele que crê em Deus. Seu pontificado durou quatorze anos. Santo e Doutor da Igreja, com sua festa ocorrendo em 3 de setembro, ele tem um recado aos governantes de todos os tempos:

Quem for incumbido da arte de governar, aplique-se no cuidado

de partilhar os bens comuns a todos (Homilia IX, 7, ano 604).

• HILÁRIO, de Poitiers († 367)

Bispo de Poitiers, Hilário nasceu na França, em 315 de família pagã. Sua busca, no estilo de Santo Agostinho, levou-o a estudar as Sagradas Escrituras, o que deu início a seu processo de conversão, que culminou com o batismo. A partir de 350, embora casado e tendo uma filha, foi ordenado presbítero e eleito bispo pelo povo. Foi um dos mais sérios adversários do arianismo, cujas heresias nunca deixou de combater.

Chamado de “alma do Concílio de Paris” (361) defendeu a ortodoxia da fé. Escreveu obras dogmáticas sobre a Trindade e sobre os Sínodos da Igreja, além de exegeses (Mateus e Salmos) e hinos. Foi um dos maiores conhecedores da Bíblia e dos mais insignes teólogos do Ocidente. Chamado de “Atanásio do Ocidente”, Hilário destacou-se pelo seu zelo apostólico e fidelidade à fé cristã. Sua cristologia baseia-se na fé da Igreja no Ressuscitado. Declarado santo e doutor da Igreja, sua festa ocorre anualmente no dia 13 de janeiro.

 LEÃO MAGNO († 461)

Nascido na Itália (Toscana) no fim do século IV, lutou contra as ameaças de quebra da unidade da Igreja. Enfrentou – com diplomacia – os hunos e os vândalos. Sua obra consta de 96 sermões e 144 cartas.

Não somos donos dos bens, mas administradores. A riqueza é um

dos meios que temos para alcançar a salvação, se a

comunicarmos aos indigentes, por um dever de justiça e de

piedade fraterna (Sermo XVI).

Foi mais jurista e diplomata do que propriamente um teólogo. Sua doutrina é apresentada mais de forma pragmática do que teórica, e em época de grande turbulência optou por uma política de união da Igreja universal a qualquer custo. Sua teologia é eminentemente cristológica. Para ele, Cristo é uma única pessoa: Unus enim idemque est. “Vere Dei filius et vere hominis filius”. Para ele, as duas naturezas (humano e divino) continuam existindo sem mistura alguma. Após sua morte, a Igreja declarou o papa Leão I, o magno, Doutor da Igreja e Santo. Sua festa é a 10 de novembro.

 ISIDORO, de Sevilha († 636)

É citado como o último dos Pais ocidentais. A data de sua morte marca o fim da Patrística Latina. Escritor enciclopédico, foi muito lido na Idade Média, por suas “Enciclopédias”. Presidiu, com invulgar zelo, o Concílio de Toledo (633). Com Boécio († 524) e Cassiodoro († 485), pertence ao rol dos grandes mestres da Antigüidade, exercendo, por suas obras literárias e teológicas, enorme influência religiosa e cultural nos séculos posteriores. O bispo de Sevilha foi considerado Santo logo após sua morte. Proclamado como eminente doutor.

 BEDA, o venerável († 735)

Embora toda a tradição afirme, com propriedade, que a Patrística Latina termina com Isidoro († 636), é impossível deixar de mencionar o presbítero e Doutor da Igreja São Beda, inglês da escola de York, que, mesmo não sendo considerado um Pai da Igreja, fez como que uma “ponte” da Patrística para a Escolástica. Sua obra “História eclesiástica do povo inglês”, escrita no ano 722, não pode deixar de ser lida.

O autor é Biblista, Doutor em Teologia Moral e Escritor. Escreveu mais de cem livros, entre elas “Quem são os Pais da Igreja” (Ed. Recado, 2010).