A Igreja e o problema fundiário - Carta 037
Carta 037
Assunto: A Igreja e o problema fundiário no Brasil
Resposta à consulta de um pastor Metodista de São Paulo, que
gostaria de saber a visão católica sobre o tema.
A terra não deve ser objeto de negócios, mas pertence a todos
os que nela desejam trabalhar, pois é dom de Deus.
(João Paulo II, Recife 1979)
As questões de terra são tão antigas quanto o êxodo do povo escolhido, do Egito para Canaã, um movimento migratório seguido de tomada de terra que ocor-reu no século XIII a.C. Toda a Palestina era habitada. Havia povo, infiel, mas povo, morando lá... A tradição mostra que Deus fez uma “reforma”, tirando aquela terra dos antigos proprietários, que não a utilizavam de acordo com o projeto divino, dando-a a um povo escolhido, capaz de trabalhar conforme o desejo de Deus. De lá para cá, a história está cheia dessas “reformas”, umas pacíficas, outras cooptativas, muitas violentas. No Brasil, três episódios próximos, Mucker e Canudos (século XIX) e Contestado (séc. XX) revelam, por detrás da luta do poder oficial contra a influência dos beatos, uma cobiça surda por terras, até então ociosas, cultivadas pelos “vagabundos”, liderados por Jacobina, Conselheiro e João Maria, respectiva-mente.
Os neoliberais de hoje, muitos que se apresentam como “cristãos de carteiri-nha” ou pertencentes a esses “movimentos leigos” de elite, tacham a reforma agrá-ria e a mudança de políticas fundiárias de marxismo, subversão, baderna e outros encômios. Até prelados da minha Igreja, infelizmente, pensam e falam assim. Falar em “reforma agrária” em certos ambientes celestiais é cometer heresia. Em fins de 97, a Igreja, através do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” lançou um documento, “Para uma melhor distribuição da Terra - O desafio da Reforma Agrária”, que em alguns círculos da elite se tornou letra morta. O documento até estaria a merecer um estudo mais aprofundado, tamanha a sua riqueza, da qual respiguei alguns textos: “O modelo de desenvolvimento das sociedades industrializadas é capaz de produzir enorme quantidade de riquezas, mas evidencia graves insuficiências quando se trata de redistribuir os frutos e favorecer o crescimento das áreas menos desenvolvidas”.
Um dos erros principais foi imaginar que a reforma agrária consiste essencialmente na simples repartição e atribuição da terra. E este é o grande erro do Brasil. Há mais de vinte anos, os governos acham que assentar – sem dar as estruturas devidas – é fazer reforma agrária. Em meu livro “Terra, dom de Deus” (Ed. Paulinas, 1994) há um fecho que acho que ajuda a reflexão do assunto:
Uma estrutura agrícola caracterizada pela apropriação indébita ou pela concentração de terra no latifúndio prejudica gravemente o desenvolvimento e-conômico de um país. Essa concentração, em longo prazo é causa de pobreza e de estragos que tendem a perpetuar-se, agravando-se.
Esse não é mais o discurso das “esquerdas marxistas”, mas um desabafo ba-seado na novidade do evangelho. Na vida humana, muitas vezes, somos levados, como o antigo povo da Palestina, a ver as coisas superficiais, sem notar o essencial. Uma nação que fecha os olhos para a concentração de terras, para a má distribui-ção de renda e pelo abandono dos agricultores, com e sem-terra, merece todos os percalços sociais que acontecem. Os culpados não são os invasores, mas os omissos do Governo, da Sociedade e das Igrejas. Pouco enxergaram o profeta João Batista – assim como não tem olhos para os profetas de hoje – e tudo de bom que ele trazia em sua bagagem de denúncias.
As pessoas, em geral, não gostam de denúncias; preferem a concordância. É mais cômodo; desinstala menos. A história bíblica nos revela, por mais paradoxal que possa parecer, que Herodes é o preso e João Batista o homem que goza de liberdade absoluta. A razão é porque um, embora no cárcere, está na graça de Deus enquanto o outro chafurda em seu pecado, a despeito de morar em palácios e vestir roupas finas.
Jesus envia a João Batista um recado, como uma mensagem em código: “Os cegos enxergam, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres e anunciada a boa notícia”. Estes sinais evidenci-am que os tempos do Messias começam a se fazer presentes. O caniço e o profeta representam extremos de uma linha de juízos. O caniço agitado pelo vento é o símbolo do homem fraco, que vive de modas, conforme o foro de sua cabeça, sem capa-cidade de enxergar. O profeta é o autêntico homem de Deus, que não tem medo, que anuncia e denuncia, e não faz questão de posar de bonzinho.
Há um versículo que é o tropeço dos não-iniciados: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do céu sofre violência, e são os violentos que procuram tomá-lo”. Há quem afirme referir-se à violência que o Reino sofre por tentar modifi-car as estruturas. As correntes mais credenciadas referem-se à violência da conver-são e da mudança de atitudes. Só obtêm o Reino os “violentos”, ou seja, aqueles que praticam contra si mesmo a suprema violência da opção pelo Reino ao invés das fábulas do mundo. O evangelho ora em reflexão retrata as d6uas teses: o ho-mem-caniço, agitado pelo vento, volúvel à moda e às tendências, e o homem-profeta, testemunha autêntica.
A conversão, a opção pelos fracos e a mudança das idéias, tudo pode ser visto como violência. No bom sentido, é claro! A Bíblia lembra que se deve aceitar os sofrimentos e confiar em Deus. Mais adiante, e os evangelhos no-lo revelam, Jesus Cristo responde desta forma na cruz. Ele aceita o sofrimento, mergulhando no mais profundo do mistério, sabedor que lá adiante está o projeto do Pai. Só a causa do sofrimento do inocente, daquele que não con-correu em nada para o efeito danoso, que fica, muitas vezes, sem uma resposta que satisfaça.
Que não se diga, em momento algum, que esse ou aquele evento foi “vontade de Deus”. Seria a associação de uma blasfêmia com uma heresia. Deus quer o ho-mem feliz. Para isto ele nos deu seu Filho (cf. Jo 3,16). O que, volta-e-meia, foge à compreensão é a questão em que, sendo Deus Todo-Poderoso e ciente de tudo, por que ele não impede certos males? Teria o mal sua origem na liberdade? Nem sem-pre... Será que o sem-terra, o que não tem casa para morar, o endividado estão as-sim porque Deus quis? Mesmo que sejamos pessoas de fé, nosso lado filósofo às vezes nos faz pensar.
Não se trata de acusar Deus, mas como humanos, coleciona-mos, com coragem, questões, próprias ou escutadas da boca de terceiros, em geral pessoas inocentes, assoladas pelas tragédias do cotidiano. Às vezes caímos na he-resia de questionar Deus sobre o sucesso dos opressores e a desgraça dos oprimi-dos. Pela lei moral, a pessoa sabe que nem tudo o que fisicamente pode fazer, eti-camente deve ser feito. Os preceitos que integram a lei moral estão contidos: a) na Lei Eterna; b) na Lei Natural; c) na Lei Positiva; d) nas leis humanas. Lei, diz Santo Tomás, na Suma Teológica, é a ordenação da razão dirigida ao bem comum, promulgada por quem tem autoridade.
A lei eterna é “uma ordenação ética pensada e projetada por Deus desde toda a eternidade”. Já lei natural é a própria lei eterna enquanto participada na criatura racional. Dotado de inteligência, o homem é orientado por essa norma natural gra-vada por Deus em seu coração. Deus não se contentou em gravar sua lei no cora-ção humano, mas decidiu, através de ensinamentos aos patriarcas, aos profetas, de mandamentos, e pelas Escrituras, tornar Positiva essa lei, isto é, uma lei comunica-da ao homem por meio de uma revelação divina.
Este assunto, não se trata de filosofia, mas sim de teologia moral, pois encerra em si a comunicação recíproca entre Deus e o homem. As leis humanas, são aquelas ditadas por autoridades legislativas, civis ou eclesiásticas, igualmente em ordem ao bem comum. Para uma boa acolhida das leis eterna, natural e positiva, é indispensável que o ser tenha liberdade de consciência. Deste modo, toda a atitude humana fica sujeita ao juízo da consciência, antes, porém, iluminada pela lei mo-ral, que avaliará o suporte ético da conduta.
Hoje, estímulos dos mais variados, conseguem manipular a consciência, le-vando à absolvição de atitudes, sob as mais diversas excludentes, ao arrepio da lei moral. “Agir na dúvida – já diziam os antigos teólogos moralistas – é pecado!”. As-sim como violar uma lei humana, caracteriza um delito, ir contra a lei eterna ou natural, é um pecattu, isto é, um delito. Os “pecados que bradam aos céus”, sanci-onados na teologia moral católica, segundo os clássicos, e com fulcro nas Escritu-ras, são: o homicídio (e aí se inclui o aborto), a sodomia, a opressão dos fracos e a retenção do salário dos operários. São aqueles cuja influência nefasta na ordem social reclama providências do Alto.
O problema da terra, a ganância do latifúndio, a corrupção da justiça, a omissão da sociedade, o comprometimento da mídia e a inércia dos governos, tudo configura um pecado contra o humilde, o despossuído, o que sofre, e como tal está clamando, a exigir “providências do Alto”.
É lamentável observar que a Igreja no Brasil, historicamente, sempre foi omissa com relação aos problemas da terra. No terreno da sociopolítica também revolta ver que um país como Brasil, com a quantidade de terra disponível, ainda não tem uma política agrária desde as “capitanias hereditárias”.
A natureza nos revela que a seiva é a vida da árvore, escondida dentro da so-lidez de seu tronco. Assim também o amor é a força, a energia e o dinamismo que movimenta a vida humana, dando-lhe sentido e proporcionando que emirjam daí os valores mais preciosos para o ser, a sociedade e a natureza humana. Como o fruto contém a semente de uma nova árvore, o amor traz consigo o germe de uma vida nova. Trata-se de um germe de transformação.
Fique com Deus!
O autor é Filósofo e Doutor em Teologia Moral. Possui mais de 100 livros publicados no Brasil e Exterior, entre eles “Terra, dom de Deus”, Ed. Paulinas, 1995.