A espiritualidade que brota da cruz

A ESPIRITUALIDADE QUE BROTA DA CRUZ

Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, escândalo para

os judeus e loucura para os pagãos (1Cor 1,13).

A cada ano, a Semana Santa evoca aos cristãos o mistério da cruz redentora de Jesus, que traz consigo sinais da ressurreição. De fato, no conjunto da paixão, o evento maior é a ressurreição, mas isto não deve nos levar a omitir uma reflexão sobre a cruz. Jesus retira da cruz o símbolo horrendo de um mal irreversível, pu-nição ou pathos, e converte aquele tétrico instrumento de tortura em um distinti-vo de amor e de vitória. A cruz é um dos grandes mistérios da humanidade. O fato perpassa todos os tempos, lugares e culturas, na constatação de um Deus encarnado que morreu, através de uma forma cruel e injusta, na cruz, para realizar, por esse veículo, a redenção da humanidade. A lição é do amor vencendo o ódio e a morte.

Os grandes mestres afirmam que só à luz da cruz é possível compreender a missão de Jesus. Assim se pode inferir que é impossível entender a redenção ope-rada por Cristo fora do mistério da cruz. Morrendo na cruz, Jesus é imolado para salvar, para dar vida. É aquela vida abundante (cf. Jo 10,10) que ele anunciou. Seu sangue generoso sela essa nova, eficaz e definitiva aliança. No Livro do Apoca-lipse há uma doxologia endereçada ao Cordeiro:

Digno és tu de receber o livro e de abrir os seus selos, pois

foste imolado, e por teu sangue resgataste para Deus homens

de todas as tribos, línguas e raças (Ap 5,9).

Esse generoso sangue vertido na cruz é o preço do resgate. A obra da reden-ção, de reparação, só pode ocorrer a partir de uma dádiva oferecida à justiça divi-na. Ora, se o pecado rompe a ordem normal e o equilíbrio de toda a criação, tor-na-se necessária uma retratação quanto ao pecado cometido. Cristo, qual um ser-vo sofredor da antiga profecia, assumiu sobre si o castigo que, pela desordem do pecado, a humanidade fez por merecer. Ao fazê-lo, cumpriu a justiça, restabeleceu o direito defraudado pelo pecado, e reintegrou o ser humano a Deus.

O castigo, no entanto, não teria nenhum efeito redentor se não tivesse sido amorosa e voluntariamente aceito por Cristo. A dignidade da vítima não deve ser entendida no sentido de um valor mágico atribuído ao evento, mas compreendida pela visão do Filho de Deus que se fez homem, e assim humanado, sofreu o casti-go que nós merecíamos. Fiel e obediente ao projeto do Pai, Jesus se deixou pregar na cruz. Ele foi obediente em tudo, humilhando-se até a morte. E morte de cruz! (cf. Fl 2,8).

Em tudo há que se enxergar o projeto misericordioso de Deus, superando certa morbidez com que às vezes revestimos a cruz do calvário. A cruz só seria compreendida após a ressurreição, quando deixa de ser algo cruel e fatalista para se tornar um ato de entrega, coragem e amor. Por causa do sofrimento e da priva-ção de Jesus, nosso ser-cristão não admite viver entregue à leniência das paixões dos prazeres mundanos.

A vida, a cada instante reserva a todos, momentos de alegria, festas e celebrações dos eventos naturais da existência humana. Mesmo assim, há eventos em que as coisas não acontecem do modo que a gente deseja. São os problemas do cotidiano, das dificuldades no convívio social (até mesmo na família e na igreja), das doenças, da violência urbana, do descaso pelas dores do homem do campo, do desemprego, pela ausência de políticas sociais, da fome e da morte. O discipulado, o verdadeiro modo de seguir a Jesus, implica em alegria, em expectativas/certezas de salvação, mas também em fidelidade à cruz:

Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua

cruz cotidiana e me siga (Mt 16,24).

Muitas vezes eu tenho me surpreendido refletindo sobre esse renunciar a si mesmo, chegando a imaginar Cristo me convidando apenas a suportar sem recla-mações as contrariedades do dia-a-dia. Julguei que a cruz fosse coisa que aconte-ce por acaso na vida humana, uma provação que é preciso aguentar de forma pa-ciente e estóica, como um cálice amargo que a vida me oferece e fica feio rejeitar.

Hoje, depois de meditar a fundo o “... e morte de cruz”, de São Paulo, eu penso diferente. Adquiri a convicção que a cruz não é um imprevisto na vida da gente. O fato é que Jesus não disse aguente a cruz, mas falou tome a sua cruz... Isto significa que ela faz parte da minha vida, e como tal deve será assumida de forma consciente, tomada, abraçada e amada. Voluntariamente.

Em um de seus mais belos e vigorosos hinos cristológicos, o apóstolo Paulo, com aquela inspiração que lhe é peculiar, nos revela que ele (Jesus) tinha a condi-ção divina, mas não se apegou a ela (sua igualdade ao Pai no mistério trinitário). Esvaziou-se, assumiu a condição de servo, humilhando-se e tornando-se obediente até a morte. E morte de cruz! (cf. Fl 2,6ss).

Muitas vezes nos passa despercebida a profundidade desse gesto de Jesus. Ele, redentor da humanidade, obediente ao plano do Pai até a morte, e nunca é demais recordar – morte de cruz. Quem tenta viver uma espiritualidade divorciada do mistério da cruz, está fora do caminho e vive distante dos ensinamentos do Verbo encarnado. Esses ficam no escuro, espiritualmente mortos, incapazes de avançar na direção da verdadeira e definitiva felicidade. O caminho que nos con-duz a Cristo passa pela cruz. Nela, cruz, ele nos mostrou o que é amar. Em outra de suas cartas, Santa Catarina de Sena enfatiza a palavra enxerto, para caracteri-zar a união indissolúvel entre o divino e o humano, obra da graça de Deus, atra-vés da cruz de Cristo, pois

... quem quiser salvar sua vida a perderá, mas quem perder

sua própria vida por mim e por causa do evangelho, a salvará

(Mc 8,35).

Para que esse mistério perpasse o coração e se torne uma constância de vi-da é necessário que o cristão se deixe penetrar pelo espírito do amor, obediência e serviço que dimana da cruz. Nós, geralmente, somos meio avessos à cruz. Tem gente que não gosta de crucifixos em casa, talvez para afastar-se da idéia de re-nuncia, entrega e sofrimento. Santa Tereza costumava dizer aos seus amigos e leitores, que nós somos mais amigos dos prazeres do que das cruzes, para caracte-rizar, nem vou falar em má-vontade, mas o desconforto que a imagem proporciona aos corações comodistas de muitos.

São Vicente Pallotti afirmou, em um de seus sermões, que nós temos pouco céu no coração, porque temos muita terra dentro dele. A teologia da cruz nos revela que uma espiritualidade divorciada do mistério da entrega de Cristo não terá muita coisa a dizer sobre o múnus salvador de Je-sus. Nunca poderemos entender as exigências do ser-cristão, missionário ou a-póstolo, se não compreendermos, pelo menos até onde nos é possível, o mistério da cruz. Falando ao papa, cardeais e bispos da Cúria Vaticana, o padre Raniero Cantalamessa assim se manifestou:

Deus nos amou com amor e generosidade, na criação, quando nos encheu de dons, dentro e fora de nós, e com amor de sofrimento na redenção, quando inventou sua própria entrega, sofrendo por nós os mais terríveis padecimentos, a fim de nos con-vencer de seu amor.

Uma qualidade que realmente resplandece em grau máximo no mistério da cruz, assinalou o pregador da Casa Pontifícia, que prosseguiu:

O amor de Cristo na cruz é um amor de misericórdia, que

desculpa e perdoa, que não quer destruir o inimigo, mas sim a

inimizade. É precisamente desta misericór-dia e capacidade de

perdão que temos necessidade hoje, para não afundar cada vez

mais no abismo de uma violência globalizada. A humanidade está

envolta por tanta escuridão e inclinada sob tanto sofrimento

que deveríamos também ter um pouco de compaixão e de

solidariedade uns com os outros.

Referindo-se à cruz, o teólogo alemão Romano Guardini chama de “abstra-ção do horror”, ou seja, o fato de os evangelistas, assim como São Paulo se ocupa-rem mais com o aspecto idealista e redentor da cruz do que do detalhamento cru-ento e doloroso da tragédia do Calvário. A morte de Jesus é um verdadeiro escân-dalo, capaz de romper todas as categorias com que interpretamos ordinariamente os fatos. Desde o tempo de Paulo grassava esse escândalo:

Nós pregamos um Cristo crucificado, escândalo para os

judeus, loucura para os pagãos (1Cor 1,23).

Este é o ápice da espiritualidade cristã! Assim, o discípulo deve completar em sua carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor do seu corpo que é a I-greja (c. Cl 1,24). A compaixão pelo crucificado se traduzirá então em gestos de efetiva solidariedade para com os membros do seu corpo místico, crucificado ao longo dos séculos da história. Esta forma de espiritualidade propicia nossa adesão ao projeto divino. A Igreja celebra a cruz como um instrumento de vitória, ao dizer ave crux, spes nostra (salve cruz, nossa esperança!).

O viver a cruz, para nós, pode surgir pela renúncia ao pecado, pelo botar abaixo nossas “idéias próprias”, aniquilando o orgulho pela negação à vaidade e ao individualismo. Crucificamos nossa carne, renunciando à concupiscência, às paixões e às más inclinações. O arrependimento, que é essencial à verdadeira conversão (cf. At 2,38; 17,30) envolve morte ao pecado (cf. Rm 6). Arrepender-se é viver a cruz. A Bíblia compara o arrependimento (e a conversão) com a morte e a ressurreição de Cristo. Tem que haver uma mudança radical no nosso estilo de vida. As Escrituras usam termos como matar o homem velho e revestir-se com o novo, e descreve com minúcias as mudanças exatas que precisam ser feitas (cf. Ef 4,17-32; Cl 3). Maus hábitos – embriaguez, imoralidades, ira, ganância, orgias, etc. – precisam ser eliminados da própria vida, ao passo que devem ser acrescen-tados o amor, a verdade, a pureza, o perdão e a humildade. Esse conjunto de va-lores é o resultado do arrependimento.

Muitas pessoas tentam ser convertidas e converter outras, sem se dignarem ao arrependimento. Elas ensinam um cristianismo indolor, que não exige sacrifí-cio, mais prazeres que cruzes... Suas atitudes salientam as emoções, a felicidade e as bênçãos, porém pensam pouco sobre as mudanças reais que a conversão exige na vida diária das pessoas.

Não há conversão sem transformação. Aquele que crê e foi batizado, aquele que até mesmo foi aceito numa Igreja e participa assidua-mente das atividades religiosas, mas que não se arrependeu, não é salvo. O arre-pendimento é um compromisso sério e determinado, para mudar a vida de cada um.

O dom do “temor de Deus” aponta, não para o fato de termos medo de Deus. Ninguém pode temer um Pai rico em misericórdia, lento na cólera e rápido no per-dão. O dom, na verdade, indica aquele receio, como que um constrangimento de não amá-lo e servi-lo como se deve. Vivemos nossa espiritualidade calcada na ri-queza do mistério da cruz, quando matamos em nós o homem velho, corroído pe-las seqüelas do pecado, dando à luz o homem novo que anseia a ressurreição e a vida eterna. Neste caso, o dom do temor nos conduz ao resguardo de não que-brarmos a aliança. Tudo está ligado ao desenvolvimento da nossa espiritualidade.

A cruz – conforme ensina Leonardo Boff (In: Paixão de Cristo. Paixão do Mundo. Ed. Vozes, 1990) – não evoca nenhum dolorismo malsão, mas convoca para a luta contra a dor e as causas produtoras da cruz. Faz-se mister, na pieda-de e na teologia, recuperar a densidade histórica da cruz de Jesus Cristo contra sua transformação em puro símbolo de resignação e de expansão, com todas as manifestações que o símbolo está sujeito. Às vezes nos detemos na visão do sím-bolo e esquecemos a contemplação do fato que ele significa. O mistério da cruz é uma grandeza teo e cristológica, cujo estudo e debate nunca vão se esgotar, tama-nha a riqueza e atualização de seu manancial cada vez mais impregnada de novos e reveladores enfoques.

A cruz, pelo somatório de eventos que promovem a nossa salvação, é um mistério que nos redime a partir do inusitado sacrifício de um Deus, Jesus Cristo, que se deixou pregar e matar para que todos tivéssemos vida. É a partir dali que tomamos consciência que ninguém ama mais do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (cf. Jo 15,13). Jesus, com sua morte transformou um instrumento de horror e tortura num símbolo de vitória e vida.

O autor é Filósofo, Biblista e Doutor em Teologia Moral. Texto da pregação que realizou em um retiro de padres-religiosos que realizei em 2009 no Mato Grosso do Sul.