A história de Adão e Eva
A história de Adão e Eva
Certa vez fomos ajudar em um curso de “teologia” popular numa comunidade do interior do Rio Grande do Sul. O bloco “Teologia da Criação” foi assessorado (dois dias) por mim e um frei capuchinho, Doutor em Teologia Bíblica. Dias depois, recebi o feedback dos organizadores, que informou que uma senhora, participante do evento não gostou do curso, porque o teólogo (eu) não tinha fé, e o frei (o capuchinho) não entendia nada de Bíblia. É para ver como o temas controvertidos e certas idéias científicas, por sua complexidade, nem sempre são bem digeridas por alguns auditórios literalmente “leigos”.
Quando fizemos catequese (há muito tempo atrás!) ouvimos falar da humanidade começando através de um casal: Adão e Eva. Depois, um pouco mais esclarecidos, muitas vezes nos perguntamos como seria possível, geneticamente falando, a procriação das gerações a partir da união incestuosa dos filhos daquela “proto-família”. Embutido num contexto maior inegável que é a criação divina, cuja mecânica teremos oportunidade de tecer considerações mais adiante, o aparecimento do homem sobre a terra tem criado perguntas, hipóteses e teses de muitos cientistas, antropólogos, teólogos, ateus, humanistas entre outros menos votados. Dentro de uma análise científica gestada dentro da própria Igreja, hoje se pode identificar algumas correntes sobre a geração e continuidade da raça humana; ou melhor, das raças humanas.
Desponta então a evidência de duas correntes chamadas de monogenismo e poligenismo. A teoria monogenista é aquela que aprendemos no catecismo, fruto de uma análise fundamentalista das Escrituras, em que as afirmações são levadas ao entendimento ao pé-da-letra, sem o desconto da época em que foram escritas, das realidades humanas daquele tempo, dos meios literários e de imagens que possuíam os hagiógrafos. Assim, por exemplo, temos o livro do Gênese rico em antropomorfismos, ou seja, de criações literárias adaptadas às formas humanas que o escritor sagrado conhecia. Neste contexto, podemos notar a atuação de Deus como jardineiro, pedestre que passeava pelas alamedas do paraíso, oleiro, anestesista, cirurgião e alfaiate. È claro que Deus tem poder para fazer isto e muito mais, mas a escrita dessas atividades é que caracteriza o antropomorfismo, que dá formas, atitudes e ações humanas à práxis divina.
A teoria monogenista, então, é aquela que nos mostra o gênero humano descendente de um só berço (criação divina) e um só casal (Adão e Eva). O poligenismo (poli = muito, genes = geração) nos apresenta o homem criado de um só berço (criação divina, criado por Deus), mas a partir de muitos casais. Os defensores desta teoria, (teólogos e institutos uma vez que Adam, em hebraico, significa homem, substantivo, e não nome próprio. Por conseguinte, quando o autor sagrado diz que Deus criou Adam, está dizendo, criou o homem, e não um homem, individualmente. Em Gn 1,27 verificasse que o substantivo adam não designa um indivíduo, mas a espécie humana criada por Deus e incumbida de crescer, multiplicar-se, encher a terra e dominá-la. O verbete adam aponta para “algo feito de barro”. O nome Eva (iša, hawwa), também não é próprio, e significa, no hebraico, mulher ou “mãe de muitos” (Gn 3,20). Esta teoria poligenista, bem mais racional do que a outra, em nada contraria, desmerece ou põe em cheque a nossa fé. É claro que os primeiros pais (dois ou dez ou cem) foram elevados à filiação divina (justiça original) e que, submetidos a uma prova, não conseguiram manter o estado de amizade com Deus. O poligenismo ganha hoje um estado de maior aceitação. Eu falei isto num “congresso de catequistas”. Deu um chilique geral!
Também Caim e Abel são substantivos, e significam lavrador e pastor. A eliminação do segundo pelo primeiro seria, segundo correntes mais progressistas (dignas de maiores cuidados) a tensão existente entre aquelas duas classes. A ciência até hoje ainda não tocou na estaca zero do homem. Dizem que o homem tem 250 milhos de anos. É possível. A Bíblia estabelece sua primeira cronologia bem depois da Torre de Babel, com Abraão, só entre 2000/1800 a.C. Estas teorias são desposadas pelos grandes biblistas contemporâneos. É sempre bom se estudar as Escrituras pelo ângulo místico, pelo científico e pelo social. Todos se completam. Visões isoladas levam ao fanatismo. E não há nenhum mal para a fé. Num passado não muito remoto, se costumava ouvir, sem maiores discussões, teses relativas ao surgimento do homem, com base numa análise fundamentalista das Sagradas Escrituras, através da expiração de Deus num boneco de barro. O Antigo Testamento tem narrativas antropomórficas, ou seja, para reforçar a pobreza das línguas antigas, se utilizava muito de formas, expressões e situações humanas comparativas.
Assim, vamos encontrar Deus-jardineiro (...plantou árvores num imenso jardim…), Deus-oleiro (…fez um boneco de barro…), Deus transeunte (…passeava com Adão pelas alamedas…), Deus anestesista (…fez Adão cair em profundo sono…), Deus cirurgião (…retirou sua costela…), Deus-oficial-de-justiça (…e os expulsou…) e, por fim, Deus-alfaiate (…fabricou roupas para Adão e Eva…), tudo a justificar as narrativas que atribuíam a Deus atitudes semelhantes às humanas: “… Deus arrependeu-se…” ou “… o Senhor irou-se…” e outras expressões lingüísticas peculiares da práxis humana. Assim, o Deus-oleiro não passa de uma metáfora, uma tentativa humana de explicar coisas infinitas. Isto é antropomorfismo.
A Igreja não aceita as teorias evolucionistas por imaginar que elas possam contrariar a Bíblia quando esta afirma que Deus criou o homem, à sua imagem e semelhança. Ora, não esqueçamos, porém, que Deus é espírito, e o homem, criado à sua imagem e semelhança espiritual, pois Deus não tem corpo nem forma humana. Imagem e semelhança de um espírito divino, é graça, amor, solidariedade, liberdade, justiça.
O homem, dentro da equação aristotélico-tomista, é essência (seu espírito) e acidente (sua matéria). A imagem e semelhança com o criador tende à essência e não ao acidente. Ora, isto nos leva a uma primeira conclusão científica, que a fé já nos havia esclarecido: a essência do homem (semelhança de Deus) não provém de evolução, mas de criação direta de Deus, como geradora de um ser irrepetível. Também a mulher, eufemicamente tirada da costela, é metáfora, como representar uma união tipo carne-de-minha-carne. Seu princípio vital (a alma) só pode ser provido de um gesto criador de Deus.
O corpo, como veículo do espírito, pode ter tido diversas fontes, desde o clássico barro até a utilização de uma matéria viva, preexistente. Dizemos poder se afirmar como tese, uma vez que a especulação ainda emerge em névoas científicas. Seria, porém, aceitável alguém afirmar que a alma (a essência) criada por Deus foi agregada a alguma matéria viva já existente, não um macaco como os de hoje, que são adiantados e não evoluem mais, mas de algum primata mutante, possível ancestral (pelo acidente) do homem e do macaco.
São teorias a serem consideradas, que não podem ser jogadas fora, nem rejeitadas pelos que dizem: “não li e não gostei!”, pois tem fundo científico-antropológico e em nada, em absolutamente nada arranha a fé da Igreja e a interpretação da Bíblia. Para espanto meu, quando fiz um curso bíblico, li essas teorias em apostilas de tradicionais escolas bíblicas católicas e luteranas, como a mostrar que ciência e religião, pesquisa e fé podem caminhar juntas e se completar, sem choques, sem chiliques beatos nem tradicionalismos irracionais.
Concluindo, se poderia afirmar que a mistura do científico com o místico (e o mítico) nem sempre é bem digerida pelo povo simples das comunidades ou pelos fundamentalistas das seitas. Estes, em geral, preferem a interpretação religiosa, sem qualquer contestação da ciência ou da exegese mais moderna. Para muita gente, modernidade ou modernismo, é sinal de heresia. No que se refere à Criação do homem e do mundo, não existe uma história profana e outra sagrada, com linhas paralelas e até divergentes. Há apenas uma história de fundo com conseqüências religiosas, em cujo sulco aparece o homem e a natureza.
Todos os segmentos da teologia têm sua tarefa, assim como uma pedagogia específica, própria aos objetivos e ao estilo de quem a idealizou. Deste modo, modernamente se consegue divisar, como tarefa, quem sabe uma delas, da TC (Teologia da Criação) o ato de compreender a natureza como “criação”, mergulhada nos limitadores da finitude e da contingência, sem cair nos exageros maniqueístas, onde as “coisas” só podiam ser divinizadas ou demonizadas. O estudo desse segmento da teologia é um dos mais complicados. Outra tarefa que se nos surge é a de compreender a natureza como um “veículo de comunicação”, através do qual o Criador se comunica com as suas criaturas.