TENHO SEDE
“TENHO SEDE”
Quem já andou por campos de batalha, no meio de soldados feridos, lembra-se de ter ouvido um único grito de todos os lábios: Água! Água! Água! Os feridos não se queixam das suas dores, por mais atrozes, só sentem o tormento dos tormentos, a sede. A perda de sangue e de humores vitais produz no organismo uma espécie de ressecamento interno. Mais de 90% do corpo humano é água; todas as nossas células, diversos bilhões, são como outros tantos peixinhos que nadam na água, e, quando diminui notavelmente essa linha vital, começa nelas uma vibração crescente, que aumenta na razão direta do esvaimento do sangue, atingindo intensidade insuportável. Entra o organismo numa tortura tão indizível que, não raro, a pobre vítima acaba na loucura antes de ser libertada pela morte.
Os que opinam que Jesus não tenha sofrido realmente, ante as dores resultantes dos ferimentos que precederam sua morte – uma vez que podia anestesiar mentalmente o seu corpo – dificilmente poderão explicar esse grito doloroso: “Tenho sede”. Não adianta querer interpretar essas palavras em sentido místico – “tenho sede de almas”, o crucificado se refere a uma sede física, e aceitou o ligeiro alívio que um dos soldados lhe ofereceu, chegando aos lábios uma esponja presa numa cama e embebida em vinagre. Um ingênuo devocionalismo sentimental explorou esse gesto do militar no sentido de ter sido mais um ato de crueldade, pois, o que deu de beber ao crucificado não era água, mas “fel e vinagre”, pra lhe aumentar a tortura. O fato, porém, é que se costumava oferecer aos moribundos crucificados uma poção de vinho azedo misturado com uma essência amarga, afim de lhes mitigar a sede e ao mesmo tempo produzir uma espécie de anestesia, causada pelo ingrediente amargoso. Não era, pois, um ato de crueldade, mas sim um gesto de benevolência. Jesus tomou um pouco do vinho, mas não todo, porque não queria morrer semi-inconsciente.
“Tenho sede”.....
Com este brado revela o Nazareno, mais uma vez, a sua verdadeira e autentica natureza humana, e os evangelistas que narram esse episodio dão a entender que não tem intenção alguma de endeusar o seu biografado, emprestando-lhe atributos de herói insensível aos tormentos do corpo. Do contrário, deviam ter passado em silêncio que o seu mestre se queixou de sede – como também que, no Getsêmane pediu consolação a seus discípulos e até suou sangue em face da morte. Mas não interessa aos historiadores sacros fazer do seu mestre um super-homem, nem este deu um passo para se fazer tal. Os relatos evangélicos são documentos tão ingenuamente objetivos, que nenhum leitor imparcial pode neles descobrir o menor vestígio de tendências da parte dos seus autores. Parece que lhes é indiferente o que a posteridade pense do Nazareno; só lhes interessa relatar os fatos objetivos favoráveis ou desfavoráveis ao mestre. Se os evangelistas quisessem fazer de Jesus um super-homem, algum Hércules ou Siegfried, deviam apresenta-lo em atitude de desafiar friamente os horrores da morte, sem ceder às “fraquezas” dos outros mortais.
Entretanto, nenhum dos discípulos de Jesus está interessado nessa apoteose. O Nazareno é o mais humano dos homens, precisamente por ser o mais divino deles. Não hesita em se mostrar a seus amigos, e até a seus inimigos, o que ele é de fato: um homem acessível a tudo que é genuinamente humano, menos aquilo que está abaixo da natureza humana. Os seus atos externos são sempre o reflexo fiel da sua atitude interna. Não vê motivos para não ser por fora o que é por dentro. A sua segurança interna é tão grande que não acha necessário aparentar pseudo-seguranças externas, mediante fictícias camuflagens e jactâncias de insensibilidade. Quem é realmente forte não necessita de aparentar força. No Getsêmane pede consolação a seus amigos. No Gólgota revela o tormento da sede e o abandono em que se sente, num momento de desolação interior. Ele é sempre integralmente fiel a si e sincero consigo mesmo.
Pouca vontade teria eu de aceitar a divindade do Cristo se ela não viesse envolta nessa genuína humanidade de Jesus. O “filho de Deus” não desmente jamais o “filho do homem”.
E assim continua a ser através dos séculos e milênios, entre seus discípulos: os mais divinos entre os homens são sempre os mais humanos, suposto que por “humanidade” se entenda a íntima natureza do homem, seu Eu crístico, o “espirito de Deus que habita no homem”, e não apenas os seus invólucros externos. Quando alguém julga dever desumanizar-se afim de se divinizar, perde o que tem de humano e não alcança o que de divino julgava conquistar; porque Deus não se contradiz em suas obras e o Criador está presente em cada uma das suas criaturas. Nunca o homem encontra tão seguramente o Deus do mundo como quando o procura no mundo de Deus.
Não há, nunca houve nem jamais haverá super-homens – que seriam pseudo-homens – há, todavia, pleni-homens, homens integralmente realizados. E o pleni-homem é um “filho de Deus” – precisamente por ser o “filho do homem” por excelência.
“Tenho sede” ... porque sou filho do homem.
“Tenho sede” ... porque sou filho de Deus.
O Triunfo da Vida Sobre a Morte - Huberto Rohden